2005/09/13

Águas Silenciosas


Um belíssimo filme que não tem tido a promoção que merece. Ainda está aí. Agora no Quarteto em Lisboa.
A ficha técnica:
Título original: Khamosh Pani.
Título em Portugal: Águas Silenciosas
Coprodução: Paquistão, França e Alemanha. 2003
Realização: Sabiha Sumar. Paquistanesa de Karachi.
Intérpretes: Kirron Kher (a mãe), Aamir Ali Malik ( o filho Saleem), Arsad Mahmud, Salman Shahid
Cinco prémios, em 2003, no Festival de Locarno, incluindo o Leopardo de Ouro para o melhor filme.
Estreia em Portugal: 18 de Agosto de 2005 (com 2 anos de atraso).

Ayesha é viuva, vive em Charkhi, uma aldeia do Punjab paquistanês, é muçulmana. Ganha algum dinheiro a ensinar o Corão a meninas da aldeia. Mas ela que pertenceu à comunidade de religião Sik ensina um Corão de amor a todos os homens e... a todas as mulheres.
Vive feliz, para o filho de 18 anos que procura ajudar a encaminhar-se na vida. Feliz tanto quanto o permitem os fantasmas do passado, as tenebrosas e ondulantes sombras da água funda do poço da aldeia, onde a mãe e irmãs foram afogadas para prevenir eventual desonra do pai e dos irmãos.
São histórias do passado, de 1947, quando a Inglaterra se vê obrigada a largar o império da India. A maioria muçulmana que habita o Paquistão, a Ocidente e a zona oriental que viria depois dar origem ao Bangladesh, contrariando os propósitos de Gandhi, separa-se da India com o agrado ou apoio da velha Albion.
Esta separação religiosa deu origem a milhões de deslocados de indus e siks para a India e de muçulmanos para o Paquistão. E a guerras e a disputas. Até hoje. Mais de meio milhão de mortos pelo meio.
Naquela aldeia a comunidade de religião Sik abandonou a sua terra que agora pertencia a um novo país chamado Paquistão para glória de Alá. Os siks abandonaram a sua terra mas antes que ela fosse ocupada pelos fiéis de Maomé e pudessem abusar das suas mulheres obrigaram estas, esposas e filhas a suicidarem-se atirando-se ao poço da aldeia. O odioso fanatismo sik à altura do odioso fanatismo muçulmano. Não estava lá o odioso fanatismo católico de antanho nem o mais actual das seitas evangélicas extremistas que apoiam (e se servem) de Bush.
Ayesha não consegue atirar-se ao poço. Ama a vida e não se submete. Perseguida pelos irmãos, pelo pai pelos siks ciosos da sua enorme honra de machos consegue fugir. Integra-se na sociedade muçulmana. Uma muçulmana multicultural, como hoje diríamos, que já sofreu e aprendeu muito para se submeter a ódios fanáticos.
O filho não tem emprego e está num momento instável da sua vida sem saber que rumo lhe dar, tão minguadas são as perspectivas. Apaixona-se por Zubeida que tem planos de estudos universitários que o ama e com ele quer casar.
Estão em 1979 (é essa a data dos acontecimentos) incomparavelmente mais livres que hoje no Afeganistão. Encontram-se a sós, trocam olhares com ternura, acaríciam-se as mãos, beijam-se, sonham sonhos de amor.
É então que chega à aldeia dois jovens clérigos fervorosos catequisadores que querem pôr a vida dos aldeões nos eixos. De acordo com o Corão, com a charia, de acordo com o poder delegado

 

pela Mesquita fundamentalista e pelo ditador Zia Ul Haq. Infiltram de intolerância e medo o quotidiano pacífico da aldeia, ameaçam e aliciam.
Saleem deixa-se ir. Afinal talvez tenha um futuro! Importante. Seguro. E talvez até poder. Quiçá pequeno ou não? E, paulatinamente, o que era amor e claridade o fundamentalismo islâmico vai transformando em ódio e trevas.

O general Ziha Ul Haq tomou o poder com um golpe militar há pouco mais de um ano e quer fortalecê-lo. Para isso conta com o clero da Mesquita, com a Idade Média, com a repressão em nome de Alá. Começou por mandar enforcar o 1º ministro Ali Bhutto e encetou uma reforçada islamização do Paquistão com o apoio entusiástico dos Estados Unidos.

Como que por ironia mandava então, o depois nobelizado, Presidente Jimmy Carter. Embaixador da paz chegado à reforma.
É que estava na mira o Afeganistão invadido pelos soviéticos que socorriam o Governo pró comunista ameaçado pelos EUA, Arábia Saudita e agora com maior empenho pelo Paquistão.
Criaram-se milhares de madrassas - escolas corânicas e de ódio. De ódio ao comunismo, de ódio ao Ocidente, de ódio às mulheres. Às suas mães, às suas irmãs, que desprezam e escravizam. Escolas de terrorismo. Ali se formou o exército dos Talibans, ali se organizou e treinou a Al Khaeda, ali se lavou o cérebro a dezenas de milhar de jovens sem trabalho, nem perspectivas, com o fanatismo religioso e as técnicas modernas do terror.
Especialistas norte-americanos, serviços secretos e exército do Paquistão, petrodólares da familia Saud que tem um país como sua quinta.
Exércitos de terroristas ao serviço do "Bem". O "Bem" segundo os cânones fundamentalistas do Islão Wahabista e conjunturalmente um "Bem" do Ocidente.
Primeiro no Afeganistão, depois ali ao lado na Cachemira disputada à India, na Tchechénia e Ásia Central, então ainda soviética, depois na Jugoslávia, na Bósnia e depois... já sem teatros de guerra e abandonados pelos Estados Unidos, em Nova York, nas Twin Towers, em Washington no Pentágono, e na Indonésia, e na Turquia, e na Arábia Saudita, por considerarem estes países ao serviço dos EUA, e num teatro de Moscovo, e numa escola de Beslam, que pertencem ao reino do diabo, nos comboios de Madrid, no metropolitano de Londres e o que falta vir.

Mas o filme não toca no contesto político nem em política, (como eu, ad contrario, faço aqui) salvo na recém chegada ao poder do ditador Zia Ul Haq.
E esse é um segredo que torna bom o filme. Não porque a ignorância acrescente algo, ciência ou arte, mas porque oferece a todos, de esquerda ou de direita, do centro ou agoniados com a política, acompanhar sem o campo de obstáculos dos preconceitos ideológicos, com a cabeça e o coração livre, o drama duma família (e duma aldeia e de um país!) o destroçar do amor, da fraternidade, da sanidade moral e intelectual de pessoas que começamos a amar.
Há que ir ver o filme. As salas estão vazias. Pode-se escolher o lugar. Antes que se vá.

2005/09/09

Fernando Botero

Nasceu em 1932, em Medelim, Colômbia e é um dos mais famosos artistas plásticos vivos.
Desde muito cedo começou a pintar e a expôr mesmo sem formação académica. Aos 20 anos estuda arte em Madrid que continua em Florença depois de passagem por Paris e vários centros artísiticos italianos onde se entusiasma pelos pintores renascentistas. Alguns dos seus quadros célebres são, como os quadros que a seguir se apresentam, réplicas de pinturas dos grandes mestres que admirava, Leonardo da Vinci com a Gioconda ou Piero della Francesca



mais tarde, em meados de cinquenta, estuda Rivera e Orosco no México e em seguida os modernos norte-americanos.
O seu estilo volumoso, homens rechonchudos, mulheres anafadas, animais e até naturezas mortas gordas, nasce nos anos 60 e torna-se desde então a sua marca distintiva.












2005/08/12

Olá Paulo!

Eh pá! li o teu artigo, ontem no Público, sobre "os incêndios do regime" ou sobre "a piolheira" como diria D. Carlos . Vou pô-lo ali para quem quiser ler . Que não perdem o tempo.
Então como é que vais aí em Podentes com essa cinza toda no teclado?
Fugiste da cidade, ao que dizes. Realmente há muito que não te via. Nem no Cristóvão de Moura!
Faxavor tira da cabeça essa ideia de emigrar. O país precisa é de mais Varela Gomes e não de menos. Gente rija. De boa cepa. De carácter.
Um abraço ao pai João, à mãe Gena, à Geninha e à tua irmã mais nova. Não me lembro do nome dela. Fui ao livro, ao "Tempo de Resistência" onde o teu pai fala das 750 cartas escritas à família nos sete anos em que o fascismo o encarcerou por ser um homem honrado e valente. Mas o teu pai só tratava a filha mais nova, ainda muito novinha, por Chuchu... pronto um abraço para a Chuchu.
Ah o livro é de leitura obrigatória (este e os outros que escreveu) para quem quiser conhecer o país que é o nosso e um grande Homem. [Tempo de Resistência, Varela Gomes - Ler, editora -Lisboa 1980.]

2005/08/06

Hiroshima - foi há 60 anos


8 e 15 minutos da manhã. A cidade já trabalhava. "Os comerciantes já tinham aberto as lojas, os estudantes estavam nas salas de aula, os escritórios e as fábricas funcionavam". A cidade, um tanto longe da guerra sentia-se um pouco mais segura do que outras por não ter valor militar.

Na Casa Branca, em Washington, o presidente Truman não partilhava as preocupações humanistas do seu antecessor Roosewelt e não pensava bem assim. Considerou que 343 mil pessoas, se mortas de uma só vez, poderiam constituir um muito aceitável objectivo militar.

Podia-se até adocicar um pouco as coisas. O avião B29 que faria "o trabalho" seria baptizado ternamente com o nome da mãe do piloto, Enola Gay e a bomba podia ter um nome carinhoso "Little Boy".

Às 8 e 15 da manhã um relâmpago entre branco e azul iluminou a cidade mais que o Sol e 5,5 milhões de graus Celsius levantaram um cogumelo róseo que cercou o céu e a cidade. Num raio de 500 metros ficou quase tudo reduzido a pó. 10 mil pessoas foram evaporadas mas de algumas ficou uma "sombra". À sua volta as pedras ficaram mais queimadas e escuras e desenharam assim a última posição no último momento das suas vidas.

Morreram cerca de 300 mil pessoas das quais 80 mil na primeira hora. Muitos milhares foram morrendo lentamente ao longo de muitos anos, com as radiações.

Washington desculpou-se com a poupança de sangue de militares americanos ao acelerar, assim, o fim da guerra. Outros acham que a guerra já estava decidida e fora uma forma de intimidar a URSS cujos exércitos levavam de vencida o grosso das tropas japoneses, destacadas na Manchúria.

Civis, longe dos combates, cidade sem valor militar, muitos não hesitaram em chamar a Hiroshima e a Nagasaqui (3 dias depois) o maior acto de terrorismo da história.
Washington achou que valeu a pena. Hiroshima e Nagasaqui não pensam assim e comemoram todos os anos a data do crime e exigem o fim das armas nucleares.

2005/07/16

Cunhal visto por Urbano

Urbano Tavares Rodrigues, "provavelmente o melhor amigo de Álvaro Cunhal" ofereceu-nos, na entrevista que deu a Judite de Sousa, na RTP, em 2005-07-13, não o Cunhal que todos conhecemos mas talvez o que ele - ilustre intelectual comunista não sectário - gostaria que Cunhal tivesse sido.

Urbano diz-nos que Álvaro Cunhal conhecia as chagas do socialismo real e que tinha para o socialismo que ambicionava para Portugal concepções muito diferentes, nomeadamente com democracia e pluralismo partidário. Questionado por Judite de Sousa explicou que nunca denunciou tais falências para não dar armas ao imperialismo.

Oh Urbano! (Intelectual, cidadão e amigo que muito admiro e estimo) isso eram coisas que Cunhal dizia mas... repetir isso não será diminuir o revolucionário? Aquele Cunhal de raízes bem assentes nos anos trinta, quarenta e sessenta do século passado? É pelo menos uma versão social-democratizante do Grande Cunhal e um labéu (no interior do partido de Jerónimo de Sousa) que praticamenmte o atiraria para o rol das "folhas secas".

Sugestionado pela amizade que o unia a Cunhal, Urbano Tavares Rodrigues conta-nos que Cunhal apoiou a Perestroica de Gorbatchev e que desta só condenou o rumo que, no final, este lhe deu?
Cunhal até podia dizer isso. Mas só para consumo externo. No entanto - oh meu querido amigo Urbano! - vistas as coisas com olhos que habitaram a Soeiro Pereira Gomes, nada mais longe da realidade!

Assisti dia a dia, durante os quatro anos que a Perestroica durou, às reacções de Cunhal e dos outros velhos (e novos!) dirigentes do PCP. Cunhal e a grande maioria daqueles continuavam, por necessidade a incensar a União Sóviética, a grande rectaguarda, mas tiveram relativamente à Perestroica sempre as maiores reservas e antipatia. Uma antipatia à flor da pele, reacção típica a um corpo estranho, seguida depois por uma crescente ainda que reservada condenação, muito antes ainda de se adivinhar a queda de Gorbatchov e o fim da União Soviética.

Outra coisa não seria de esperar. Nem é justo negar-lhes o "feeling", a clara percepção de velhos e experientes "revolucionários bolcheviques" de que aquilo ia desfigurar, senão acabar com o verdadeiro, o único, socialismo real existente, questionar a prática do PCP, pôr em causa a cartilha marxista-leninista, bíblia do partido e principalmente "retirar o tapete" à direcção do PCP, com Cunhal à cabeça, à semelhança do que sucedeu com todos os líderes comunistas que não se reciclaram imediatamente a seguir ao 20º Congresso do PCUS que denunciou o estalinismo.

Podemos anuir em que Cunhal e a direcção do PCP aceitaram a Perestroica nos seus primeiros (muito iniciais) momentos na estrita medida em que admitiam que ela não passava de mais uma operação de cosmética. Para mobilizar as massas. Mas muito cedo todos perceberam que a Perestroica não era, afinal, cosmética e que iria mudar "aquele socialismo".

Até 1989 ninguém admitia, nem os "sovietólogos", nem a CIA, nem mesmo Vasco Pulido Valente, com a excepção talvez do KGB, que aquilo ia dar no que deu. Cunhal e o PCP eram esclarecidos adeptos de um socialismo de rosto humano para Portugal. Não tanto por sensibilidade ou natural simpatia mas por óbvia estratégia. Se fosse possível!!! Assim como aquele pai portuga dizia ao filho que, no século passado, apertado pela miséria se via obrigado a emigrar para as Américas: filho vai. Vai e enriquece. Honestamente! Se possível.

2005/07/12

Alcatruzes...



Alcatruzes em descanso é o título desta fotografia em Click Portugal um blog que oferece Portugal em fotografias, de Platero um visitante e comentarista do Puxa Palavra.
Conheci estas armadilhas (que são armadilhas! Os polvos que o digam) na praia de Olhos de Água, no Algarve, no fim da década de 70.
O meu amigo Leonel, pescador, político e lídimo representante da sua classe, levou-me por gentileza, no barco àquele colar de brancas pérolas que pontuavam o mar, lá longe, numa extensão de um quilómetro.
Ali ele deixou de remar e enquanto o barquito se entretinha a baloiçar nas águas tépidas Leonel deitou mãos à corda que as águas escondiam e puxava como quem tira água de um poço, um alcatruz atado na sua profunda extremidade. Depois remava uns metros e puxava outra corda vertical atada à corda mestra sustentada à superfície por pequenas boias.
Alcatruz numa mão, a outra arrancava-lhe do fundo, cá para fora, um polvo que, fiado nos homens, ali se abrigara.
Os mil braços do polvo enrolavam o braço do Leonel e ele com a outra mão onde faiscava uma pontiaguda navalhinha, com a naturalidade de quem tem de tratar da vida e não tem tempo para pensar em tragédias de cefalópode enterrava-lha na cabeça, entre os olhos.
O polvo que gostosamente comemos grelhado com batata a murro, azeite e alho, então, rendia-se. Desfalecia. Os mil braços largavam lentamente o pulso do meu amigo pescador e uma onda branca crescia, em círculos, da cabeça para os tentáculos e desmaiava, deixando-o exangue, o incauto polvo.
Nem todos os alcatruzes tinham "peixe" mas muitos abrigaram traiçoeiramente quem deles, por um momento, teve necessidade.
Depois voltámos. Leonel conversava muito satisfeito com a sorte e eu que não o ouvia olhava ao longe a aldeia de pescadores donde largámos, a oscilar, para cima e para baixo, em tranquilo compasso.
Quantos quilos dará? Multiplicava Leonel.
Quantos de nós não passamos de polvos de dois braços? Esforçava-me eu por entender.

Um homem do mundo



O Alexandre Narciso tem belíssimas fotografias no EELKO VAN MULDER e no Crónicas de Um VagaMundo que lhe sucedeu e também interessantes relatos das sete partidas do mundo que ele
por razões profissionais incansavelmente percorre. Roubei-lhe a fotografia apesar de não ser fácil reproduzi-las. Boa viagem Caro Amigo.

2005/07/03

Ao cuidado do ministro António Costa

Ministro das polícias mas também da reforma da Administração Pública.
Já vos tenho confidenciado conversas, muito úteis aliás, com o meu vizinho, o Senhor Antunes. Este Sábado ia ler o jornal no aconchego de uma bica, no nosso café preferido, ali no largo e lá estava ele.
O Sr. Antunes mudou há pouco para este bairro e contou-me muito à puridade: não espalhe por aí porque o Governo já tem que baste, mas mudar de casa é uma odisseia!
- A trapalhada das mudanças, ajudei eu, fazendo-me entendido.
- Oh amigo não é nada disso, as mudanças foi um dia! São as formalidades para poder pôr tudo em ordem e viver em paz.
- Como assim?
- Olhe, tenho direito à isenção do IMI, a antiga siza, fui à repartição de finanças.
- E então? Uma bicha enorme...
- Isso foi o menos, nem tinha muita gente. Fui muito bem atendido mas a Senhora recomendou-me, tem de trazer uma declaração da Segurança Social que prove que não deve nada. Resolvi ir à Loja do Cidadão. Aí sim a bicha foi duas horas. Mas como há a senha, fui ao café, fiz umas compras e tal. A funcionária às tantas pergunta-me: também foi trabalhador independente (TI)?
- Também, mas coisa de nada, ao mesmo tempo que trabalhava para o patrão.
- Tem de ir às Finanças e trazer um comprovativo do período em que esteve inscrito como TI.
- Então e a Senhora não pode ver isso aí no computador?
- Tenho muita pena mas não há comunicação.
Na semana seguinte voltei às Finanças e lá me deram o papel. A troco de 4,46 € e duas bichas. Uma para comprar o papel na tesouraria e outra no andar de cima para o funcionário me atender. Foi muito simpático porque queria que eu lá voltasse no dia seguinte mas depois dum escarcéu dos diabos em que pus o Governo pelas ruas da amargura atendeu-me logo ali.
Na semana seguinte voltei à Loja do Cidadão. Para a Segurança Social, ali, as bichas são sempre de horas mas já levava um livro. Foi óptimo porque me atendeu a mesma funcionária já quase amiga. Dei-lhe triunfante o papel das Finanças e estendi-lhe logo a outra mão para ela me dar a declaração de que não devo nada.
- Ah... mas há aqui um problema. É que há um período em que você foi TI e não estava a descontar para a SS.
- Pois, aclarei logo, é que aí eu estava na função pública e descontei para a CGA. Ora veja lá!- pedi-lhe eu para ela ver no computador.
- Pois é, mas não temos comunicação, não temos acesso à CGA.
Face ao meu mortal desapontamento a Srª disse logo mas não há problema é só descer as escadas e em frente está o balcão da CGA.
Fui à mulher da CGA. Confirmou logo. Está, está sim senhor, está aqui.
- Óptimo - disse eu - então faça-me o favor de comunicar lá para cima para a sua colega da Segurança Social.
- Oh vizinho - dizia-me consternado o Senhor Antunes que, tão longa a história não me deixava ler o jornal - você não faz ideia a cara de espanto e reprovação da funcionária: Isso não é assim! O sr tem de ir ali comprar o impresso paga 7,05 € e eu preencho, e porque torna e porque deixa. Obedeci. Que remédio! Fiquei à espera mas ela depois de me pedir uns dados disse, agora o Sr recebe a informação em sua casa daqui a 10 dias. Aí amandei-me ao ar. Raios e coriscos mas em que m... de mundo estamos que não pode dizer ali para a sua colega! Então vou-lhe pedir para ela vir cá abaixo ver no seu computador.
- Advinhe o que aconteceu?
- ?
- Pois vai a mulher zanga-se comigo. Que há regras e as coisas não podem ser como eu queria e tal. Fui à outra lá de cima, à da SS, mas só para me queixar da colega da CGA e mais uma vez protestar contra o sistema.
O papel da CGA levou 15 dias a chegar e uns dias depois lá voltei à Loja do Cidadão e à SS. A senhora já me conhecia e com pena de mim fez de conta que não estava a ultrapassar ninguém, chamou-me ali de lado e disse vá dê-me lá o papel que despacho-o já. Aguardei. Pode ir embora já está tudo, disse-me ela.
- Tudo como? Quero o papel a dizer que não devo nada.
- Ah, não é assim. Vá descansado que vai pelo correio. Dez dias e tem-no lá.
Ela fez-me aquele favor não tive lata de protestar mais. Meti o rabo entre as pernas e vim embora.
- Sabe o que é que aconteceu?
- Eu não - respondi lépido ao Antunes, a adivinhar desgraça.
Passados não dez mas quinze dias veio o papel mas não dizia preto no branco, como eu queria, que não devia nada. Falava nuns decretos mais uns artigos e que agora estava tudo legal até que a situação se alterasse. Achei esquisito. Raio, será que me enviaram o papel errado?. Vou à loja do Cidadão ou vou às Finanças? Fui às Finanças. Assim como assim se o papel fosse bom ficava logo o caso arrumado.
Bicha, o costume. Agora diz-se fila, por causa dos brasileiros que acham que bicha é outra coisa. O Homem das Finanças até se rio, não é nada disto, conheço muito bem o papel, já hoje recebi três.
Escoroçoado voltei, uns dias depois, à Loja do Cidadão. Mas já sem força nem vontade para protestar. Já estava por tudo.
Esse papel - esclareu-me um homem, desta vez era um homem, depois de mais de uma hora de espera - essse papel é a dizer que depois da informação que nos trouxe das Finanças o seu registo na SS como TI está perfeito.
- E então o papel de que preciso para pedir a isenção do IMI?
- É porque ainda não chegou?
- Mas se era 10 dias e já lá vão mais de 15?
- Há-de chegar.
Em resumo, oh vizinho - contava-me o Senhor Antunes, já completamente insensível à burocracia, esvaído de forças - tinha um prazo de 60 dias para o IMI... julgava que era demais e afinal não me vai chegar. Já lá vão quase dois meses agora devia partir de férias e o papel não chega. Aqui para nós, conhece lá alguém no Governo?

2005/06/30

BA 3 Tancos (3)

No rescaldo da acção de Tancos a madrugada de 21 de Março ainda nos trouxe um grande susto. Eram cinco horas da manhã eu e a Maria fomos acordados em sobressalto com uma luz que invadia o quarto onde dormíamos. Alguém tentava levantar do exterior, sem sucesso porque lhe tínhamos montado um dispositivo especial, a persiana da janela do quarto, no nosso rés-do-chão e nos apontava pelos orifícios uma lanterna. Saltei da cama, convencido que era a PIDE e a Maria acendia um fósforo para pegar fogo a uns papéis num dispositivo incendiário sempre preparado para estas emergências, quando da janela nos chamam, com voz abafada, para não acordar os vizinhos do primeiro andar
– Sou eu, sou eu, o «Alfredo».
..............
[ Era Jaime Serra que me vinha avisar que a PIDE/DGS tinha publicado na televisão uma nota com a fotografia do Ângelo de Sousa a tentar colaboração para o prender.]
...............
A DGS tinha ordenado a todos os órgãos de informação a publicação duma nota que começou pela Televisão e a Rádio e continuou no dia seguinte em todos os jornais na qual acusava Ângelo de Sousa de ser suspeito da destruição dos aviões da Base Aérea de Tancos, que usava várias identidades e se intitulava falsamente de oficial da Força Aérea regressado do Ultramar. Receando que a primeira acusação transformasse o Ângelo num herói aos olhos de boa parte da população tentava «falsamente» fazer crer que sendo simples cabo andava por aí, talvez por bares e cafés, pavoneando-se de oficial.
Pelo sim pelo não a PIDE/DGS punha a fotografia do Ângelo, fardado e à civil, para que os seus informadores pudessem desde logo ficar de olho alerta.
Vesti-me rapidamente para ver se ainda iria a tempo de salvar o Ângelo de Sousa, pensando em simultâneo sobre a forma de não ser apanhado pela polícia se a casa já tivesse sido assaltada e para onde havia de levar o procurado piloto de helicópteros se estivesse são e salvo.
.....
Nem eu nem o Ângelo tínhamos televisão em casa por isso ambos dormíamos descansados. O Jaime Serra que tinha deixado o carro em que viera, longe da minha casa deu-me boleia até Lisboa e ficou no bairro de São Miguel a aguardar as minhas diligências. Se a polícia já tivesse descoberto a casa do Ângelo não seria fácil escapar-me. Era devido a esse perigo que ele decidira que ia eu e não ele. No entanto não era decisão que me passasse pela cabeça questionar. Sendo o Jaime Serra o mais responsável no Comando Central da ARA aceitava esta decisão com a mesma naturalidade com que permitia que fossem outros menos responsáveis que eu a executarem as acções e não eu. Apesar de ser improvável que em tão pouco tempo a polícia pudesse ter chegado ao Ângelo fui-me aproximando com todas as cautelas na tentativa de me aperceber a tempo de alguma coisa estranha. Avançava não demasiado rápido com um ar normal para que nenhum olhar de polícia ocasional desvendasse o destino dos meus passos. Felizmente ninguém se importava comigo e àquela hora madrigal só as árvores da rua António Patrício, atentas, distantes, e solidárias me acompanhavam. Nem um guarda nocturno, nem um vagabundo, ou sequer um operário pedestre e matutino a caminho do trabalho. Ia completamente só e desamparado mas não dava por nada disso porque tinha toda a atenção concentrada em hipotéticos pides por ali emboscados e em tirar de casa rapidamente o Ângelo, agora estrela involuntária de televisão por ter prejudicado a fazenda nacional sei lá em quantos milhares de contos. Parei do outro lado da Avenida dos Estados Unidos. O prédio dormia. A PIDE, se tinha tomado o prédio e o quarteirão, disfarçara-se lindamente. Mais uma vez me confrontava com aquela situação desagradável de ter por perto o desconhecido a rondar. Parei um momento a avaliar a situação e a tomar fôlego. Como se parasse maquinalmente para avaliar o trânsito. Por fim atravessei a rua afoito. Toquei a campainha cá em baixo apesar de a porta ter um vidro partido que possibilitava abri-la por fora. Voltei a tocar ainda duas vezes. Um toque longo e dois curtos. Era a nossa senha com a campainha. Por fim lá veio
– Quem é? – estremunhada, a pigarrear, a pergunta.
– Luís – respondi-lhe, contente de a ouvir e aguardei que pronunciasse a senha:
– Vens sozinho ou com a Teresa?
Respirei fundo e subi já seguro a sorrir do meu susto.
– Este país anda completamente à mercê de qualquer atrevido, com este fascismo decrépito. Que polícias! Uma vergonha, não prestam! – Ia dizendo para comigo, aliviado da forte tensão anterior. Foi assim jovial que falei para o Ângelo que estremunhado não percebeu bem porque é que eu lhe anunciava tão desagradável situação com um ar misto de vitória e alívio.
Passámos em revista os mais pequenos pormenores da sua entrada no apartamento de que apenas saíra uma vez à noite durante aqueles quinze dias. Concluiu calma e certeiramente que os estranhos que com ele contactaram não ligariam uma coisa à outra. Passámos uma e outra vez em revisão todo o passado ligado à casa e dei-lhe razão. Mandei-o dormir. Que não, agora que o tinha acordado tinha que beber um café.
– Não posso, o Jaime Serra está à minha espera – resmunguei-lhe, com pouca convicção e inclinado a condescender.
– Então vai chamá-lo para beber com a gente.
Percebi que tinha mesmo de beber o café com ele. Precisava de digerir o acontecimento.
– Com que então os cabrões puseram-me na televisão…


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BA 3 - TANCOS (2)


Na véspera da Acção de Tancos (7 de Março de 1971) ultimávamos os preparativos. No dia seguinte fizemos uma simulação do que se iria passar dentro do hangar, num apartamento no cruzamento da Av. dos EUA com a de Roma, em Lisboa (eu fazia lá ideia que 2 andares abaixo morava o meu primo Celestino! Felizmente que não nos cruzámos, não que ele não fosse contra o regime mas nestas coisas não podemos meter "estranhos" mesmo da família).
A casa serviria de refúgio para o Ângelo de Sousa que teria de abandonar a Força Aérea e cerca de um mês depois, quando tudo acalmasse, ser clandestinamente passado para o estrangeiro. Carlos Coutinho e Eusébio foram levados de olhos fechados para o local e depois para o prédio e o andar e do mesmo modo sairam sem poderem identificar o esconderijo futuro do Ângelo que eu teria de abastecer de alimentos, café, livros e entusiasmos.

Dali partimos para Tancos na noite de 08MAR71. Eu no Volkswagen com o Ângelo e o Carlos Coutinho com o António Eusébio no seu célebre "carro da ARA" um Opel Cadete verde escuro.

Próximo da Base trocámos de carro, eu voltei para trás e esperei-os na estação do comboio de Santarém (uma espera dramática, receei com a demora que já não voltassem. Deveria ter-me-ido embora, de acordo com as regras. Mas pareceu-me na altura que aquela regra não estava bem e decidi esperar ainda mais. Finalmente vieram. Uma hora, uma hoooora, céus!!! depois do previsto. Jurei para nunca mais! Mas só por uns momentos.)

Agora um extracto do livro:
"Os nossos preparativos corriam tão bem que não podíamos ima­ginar que algum perigo inesperado pudesse ainda levar tudo a perder. E foi o que esteve à beira de acontecer. Depois de ter alugado o Volks­wagen com documentação falsa, sem qualquer incidente, na antevéspera da acção, dirigi-me à arrecadação nos arredores de Lisboa onde tinha as cargas explosivas e incendiárias. Com elas enchi o pequeno porta bagagens do automóvel e fui, ao volante do Carro do Povo ter com o Carlos Coutinho que me esperava perto da Praça de Espanha. Dali partimos os dois para Belém onde ficava uma garagem alugada e onde o carro ficaria até partir para Tancos. Quando entrámos na Avenida de Ceuta a caminho de Alcântara, seriam umas nove horas da noite, passei o volante ao «Meneses» para ele conhecer o carro e exercitar-se um pouco, antes de no dia seguinte ter de o guiar, desembaraçado, até à base aérea.
Seguíamos em descontraída e animada conversa quando inesperadamente esbarrámos com um invulgar aparato policial que enchia a rotun­da de Alcântara de agentes da Polícia de Choque e de cães-polícia. Com o carro cheio de explosivos, ficámos siderados. O nosso susto foi maior pelo inesperado. Não vimos à distância todo aquela força policial, que a nossos olhos assustados parecia superior a um batalhão. Vínhamos conversando alegremente e, sem aviso, desaguámos de supetão no meio daquela desproporcionada força policial. Tão fulgurante quanto a presença pouco recomendável dos polícias me veio a lembrança de que um carro alugado só pode ser legalmente conduzido por quem o alugou. Estávamos em transgressão! O Coutinho conduzia o carro bem por dentro da rotunda o mais longe possível dos polícias que pejavam as bermas. Suponho que me encolhi. Pelo menos interiormente. Para incomodar o menos possível suas excelências os polícias, os cães e os rádios. Foi tudo tão rápido que quando ainda íamos no meio do susto já saíamos do Largo de Alcântara totalmente incólumes, a caminho da marginal.
Só por milagre nenhum daqueles polícias ali especados a verem-nos passar se meteu connosco. Foi porque fizemos no escuro do carro um ar muito humilde e respeitador da lei, comentava para mim o Carlos Coutinho, uns minutos depois, já a descontrair e com um riso que me parecia ainda um pouco amarelo. Quem sabe se não toparam mesmo quem nós éramos e o que levávamos e decidiram: deixemos lá os rapazes seguir em descanso para não andarem sempre a dizer mal da polícia! Respondi ao meu companheiro. Já aliviados o Carlos parou o carro e trocámos de lugar passando eu a conduzir. Seguíamos então pela marginal naquele estado de espírito bonançoso que sucede às grandes tempestades. Refazíamos forças com prognósticos de bom tempo. O Carlos Coutinho animava-me e animava-se:

– Encontros destes são coisas que só acontecem de longe em longe. De dois em dois anos.
Dispunha-me a concordar plenamente quando, saindo não sei donde, se me atravessa ao caminho um polícia a mandar-me parar. Fiquei petri­ficado. Resmoneava, inaudível, indignado, sentindo-me vítima de intole­rável injustiça: mas que raio é isto? é uma conspiração ou quê? Simultaneamente veio ao de cima como primeira preocupação não me atrapalhar na condução. Não só a carta de condução era falsa como, sem ter tirado carta nem praticado o suficiente, guiava mal. Parei o carro e procurei responder ao boa noite do bem educado guarda com um tom de voz de descontraída calma.
– Os seus documentos! – Pediu-me o polícia.
Entreguei tudo. Certinho. A carta de condução, o livrete, o título de propriedade, o documento do aluguer, o meu bilhete de identidade. Tudo falso como convinha! Foi o que traiçoeiramente me veio à cabeça dizer. Felizmente que só em pensamento. O guarda examinava os documentos um a um. Pelo canto do olho reparei no escuro da berma da estrada, três motos e mais dois polícias de trânsito. O homem era minucioso o que não me animava. O meu colega não sei como estava. Só reparei que tinha as mãos apertadas sobre as pernas e olhava em frente pretendendo talvez insinuar que estava completamente desinteressado do que se estava a passar. Para criar mau ambiente e acelerar o compasso do meu coração o desagradável guarda começou a tomar umas notas num papelinho qualquer. Talvez para me animar, não sei bem, deu-me na cabeça conversar, com naturalidade, com o polícia.
– Então o que é que se passa? É a segunda barreira por que passa­mos. É ladroagem?
Não me respondeu. Continuava a escrevinhar. Não conseguia evitar maus pensamentos e deixar de me interrogar, o filho da puta está a tirar notas dos documentos? Ainda abri a boca para dizer mais qualquer coisa que quebrasse aquele pesado silêncio quando conclui que era mau sinal ele não me responder. Calei-me. Por fim após uma eternidade levantou a cabeça do papel estendeu-mo e despediu-se com um boa noite tão lacónico como o primeiro. Ainda sem perceber bem o que se passava soletrei o papel que desconsoladamente não tive outro remédio senão receber da mão do polícia. Afinal, que surpresa! A letrinha miúda e a lápis informava simpaticamente uma eventual patrulha que posteriormente nos interceptasse «que este senhor condutor já tinha sido inspeccionado».
Nem queria acreditar! Era afinal uma espécie de salvo-conduto. Atestado de bom comportamento. Prova… não direi de bagagem legal, que não foi objecto de atenção, mas pelo menos de documentação sem mácula. Rezei a todos os santinhos para não arrancar com o carro aos solavancos. Fui atendido. Deslizei com o Carlos Coutinho e tudo o resto, com surpreendente suavidade.
Perdemos o gosto para mais conversas e só quando finalmente arru­mámos o carro, o Carlos exclamou enfático com o ornamento de palavras próprias e sonoras que dispensam reprodução que há dias em que não se pode sair de casa!

A Acção da Base Aérea de Tancos (1)

Para criar relações ou até, se possível, amigos na blogosfera usei a consagrada técnica de deixar um comentário nos seus blogs. Às vezes a iniciativa pega. Sucedeu, por exemplo, com a Mona Lisa, com o Alexandre Narciso ou com a Micas.
De vez em quando deixam aqui no Memórias ou no Puxa Palavra simpáticos comentários. Outras vezes chegam mesmo a atribuir-me virtudes ou feitos que relevam apenas da sua generosa amizade.
Gostam de visitar memórias antigas que aqui vou registando. Assim e para não desmerecer da sua amizade vou transcrever algumas breves passagens do livro que conta a história da ARA. Começo pela acção de Tancos.



Esta operação armada foi planeada e meticulosamente preparada pelo Comando Central da Acção Revolucionária Armada - ARA (Jaime Serra (50 anos), Francisco Miguel (63), Raimundo Narciso (33)) com a colaboração essencial do então furriel piloto de helicópteros na Base Aérea de Tancos, Ângelo de Sousa, durante cerca de 6 meses e descrita em 50 páginas do citado livro. A sua execução deve-se a três homens de coragem: Carlos Coutinho, jornalista (28 anos), Ângelo de Sousa, bancário (24) e António João Eusébio, estucador (28).



Eis um extracto do comunicado então emitido pela ARA:

"Um comando militar da Acção Revolucionária Armada levou a efeito, com pleno êxito, na madrugada do dia 8 de Março [de 1971], uma importante e complexa acção contra o aparelho militar da guerra colonial. Este comando penetrou audaciosamente no hangar principal da Base Aérea Nº3, em Tancos, destruindo completamente, com cargas explosivas, toda a frota de helicópteros militares estacionados nesta base militar, assim como vários aviões de treino."



Um relatório da Base Aérea que encontrei na Torre do Tombo, no arquivo da PIDE quando preparava o livro citado, mensionava:

"28 aeronaves atingidas, 12 totalmente destruídas, 1 irrecuperável, 15 com destruições de diferente grau e recuperáveis".

Também na Torre do Tombo encontrei um relatório secreto, da Secretaria de Estado da Aeronáutica de então onde se dizia que:

"...
1.- Cerca das 03.20 do dia 08MAR71, deflagrou no Hangar Norte da Base Aérea Nº 3 (Tancos), um violento incêndio iniciado por complexo sistema explosivo, cujo fulcro se localizou num engenhoso sistema de relojoaria."
..."

2005/06/15

Como conheci Álvaro Cunhal

O que se segue é um extracto do livro ARA - Acção Revolucionária Armada que publiquei em 2000 (Ed. D.Quixote)

Em Moscovo conheci Álvaro Cunhal e Francisco Miguel. Um dia depois da minha chegada à capital soviética, nos primeiros dias de Janeiro de 1965, Álvaro Cunhal veio ao Hotel do Partido. Quando desci do quarto e cheguei ao «hall» Cunhal estava com Manuel Rodrigues da Silva. Dirigiu-se para mim, com um aperto de mão vigoroso interrogou-me sobre a viagem, se estava bem alojado, se não me faltava nada.
Não o conhecia pessoalmente mas não foi necessária apresentação para perceber imediatamente com quem estava a falar. O carisma, a desenvoltura de líder, sem excessos, apenas quanto baste, saltava à vista. Conduzindo as operações, Cunhal convidou-nos para tomar o pequeno almoço no restaurante do hotel. Aproveitou para me observar e dar uma informação politicamente correcta, sem chavões, salpicada de notas críticas a aspectos secundários da sociedade soviética.
A conversa, agradável, solta, «fraternal», não era um desperdício de tempo. Era, como depois observei durante dezasseis anos, nas suas intervenções no Comité Central, uma permanente aula política e ideológica de formação de quadros. A rápida e sintética informação sobre a União Soviética caracterizava-se por revelar simultaneamente a grande superioridade do comunismo relativamente ao capitalismo e a capacidade de análise de Cunhal que não deixava em branco as insuficiências o que conduziria qualquer interlocutor a dar uma nota alta ao «líder» e a considerar credível a informação.
No fim do pequeno almoço Cunhal tratou assuntos importantes em breves palavras, dirigidas ao Manuel, relativamente às quais dei mostras de não estar a ouvir e disse, depois para nós dois, que não nos podia acompanhar no programa que os camaradas soviéticos já tinham preparado mas que voltaríamos a ver-nos antes de eu seguir para Cuba. Na realidade três dias depois, após a chegada de Rogério de Carvalho, Cunhal reapareceu para discutirmos sobre a organização que connosco estava a dar os primeiros passos.
O Secretário-Geral estava como na fotografia em que aparece com Humberto Delgado na altura em que o namoro político com o PCP levou o «General sem Medo» à Frente Patriótica de Libertação Nacional. Uma fotografia que circulou pelos corredores da clandestinidade nos anos sessenta e na qual se pode observar Álvaro Cunhal dez anos mais novo do que quando os portugueses o conheceram após o 25 de Abril.
Na capital da União Soviética, Álvaro Cunhal, estava como peixe na água. Mais ainda então, com o afastamento de Krustchev, quatro meses antes, de quem não apreciava as atitudes de extrovertida heterodoxia e a exuberância anti-estalinista.

2005/05/29

Cessa "direito de matar" mulher

A revolução de 25 de Abril de 1974 ao liquidar o regime fascista liquidou um mundo brutal e antigo, eivado de fundamentalismos católicos que nos lembra o actual fundamentalismo islâmico. Acabou por exemplo com o "direito" que o marido tinha de matar a mulher em caso de adultério.
Adelino Gomes na coluna "30 Anos de PREC", no Público de 27 de Maio de 2005, lembra notícias de há 30 anos, em pleno período revolucionário, em 1975:
"Entrou em vigor a lei do divórcio. No mesmo Diário do Governo é publicado o decreto-lei que revoga o artigo 272º do Código Penal... Na verdade a lei portuguesa estabelecia até agora, uma pena de desterro para fora da comarca, por seis meses, ao homem casado que, achando a sua mulher em adultério, a matasse a ela ou ao adúltero, ou a ambos, ou lhes fizesse qualquer ofensa grave."
Matou a mulher? O amante da mulher? Os dois? Então vai ter de ir a banhos. Vai ter de ir viver seis meses para fora da comarca.
E a Igreja? Amparava o regime do seu catolicíssimo protector Salazar. Amaldiçoava e amaldiçoa o aborto. Defendia a virtude. Abençoava.

2005/05/25

Morreu Ludgero Pinto Basto

Amigo dos seus três filhos e também colega do mais velho, o Ernâni Pinto Basto, tive o privilégio de conhecer e conviver com Ludgero Pinto Basto, um homem cativante, de vasta cultura, excelente conversador, médico de elevada craveira, sempre disponível para atender os mais carenciados, um grande lutador pela liberdade, um português eminente.

"Morreu Ludgero Pinto Basto, comunista e antiestalinista"

é o título do artigo do jornalista António Melo, hoje no Público, de que reproduzo os extractos seguintes:

O médico Ludgero Pinto Basto foi ontem a enterrar, em Lisboa, depois de uma vida inteiramente dedicada aos ideais de solidariedade humana e igualdade social. Cultivou-os na maçonaria, onde se iniciou em 1928, e no Partido Comunista Português de que foi militante e dirigente, a partir de 1931. Tinha 96 anos e encontrava-se enfermo há alguns meses. Em Abril do ano passado foi condecorado com a Grande Ordem da Liberdade.

...
Além de aprender a salvar a doença individual, abraçou também a causa da revolução social; e em 1931 tornou-se membro do PCP. Foi na semi-clandestinidade que, em 1935, concluiu o curso. Conseguiu iludir a vigilância da polícia política salazarista e abriu um consultório na zona da Penha de França, em Lisboa... Foram muitos os militantes clandestinos comunistas que recorreram aos seus cuidados, que nunca recusou, sem cuidar dos riscos.
De Setembro de 1938 a 1 de Dezembro de 1939 assegurou o funcionamento do secretariado político comunista, com Francisco Miguel e Álvaro Cunhal, que apoiou sempre, sem esconder a crítica e sem quebra de amizade. Nesse 1 de Dezembro foi preso em Benfica (Lisboa) quando, precisamente com Francisco Miguel, ia encontrar-se com outros elementos do comité central. Foi condenado a 20 meses de prisão, mas acabou por ficar quase quatro anos nos presídios do regime, dos quais dois em Angra do Heroísmo, de onde regressou em 1943, para Caxias e só então foi libertado.
Passou a viver na legalidade e retomou a actividade clínica. Especializou-se em endocronologia, disciplina clínica de que foi percursor em Portugal. A evolução política na União Soviética, sob a direcção de Estaline, sobretudo os "processos de Moscovo", onde os "companheiros de Lenine", acusados de contra-revolucionários, mereceu a sua crítica interna no PCP, mas sem pôr em causa a sua fidelidade à linha partidária. Por isso enfatizava a reabilitação política de Bukarine (executado em 1938), ainda durante a existência da União Soviética, dando pleno valor ao que deixara escrito no seu testamento clandestino.
...
Nos primeiros anos de estudante de Medicina, Ludgero passou pela maçonaria e pertenceu à loja Rebeldia, em Coimbra, de que fez parte outro médico, também resistente antifascista, mas do Partido Socialista, Fernando Vale. Foi desta loja que saíram os líderes da greve académica de 1931, contra a ditadura militar saída do 28 de Maio de 1926. Mas a sua permanência no Grande Oriente Lusitano Unido foi breve, pois os seus rituais pareceram-lhe fora do seu tempo. Foi no PCP que se realizou politicamente.

... mas sempre acusou Estaline de ter pervertido o projecto de Lenine.Esteve na guerra civil de Espanha, onde se encontrou com Togliatti, líder comunista italiano, de pequena figura, mas que ficou a admirar pela sua determinação.

A deliquescência do regime soviético só o surpreendeu por tardia, porque tinha fundadas dúvidas sobre aquele "socialismo real". Por isso discordava que se falasse de "utopia comunista" para caracterizar o século XX. Considerou, até ao fim, que um tal projecto de sociedade permanecia válido, convencido de que "todas as misérias do capitalismo se mantinham e até se exacerbaram em certos sítios". Preocupação séria para si era ver a tendência crescente para um individualismo egoísta e "as pessoas menos interessadas na evolução da sociedade do que no princípio do século XX".

2005/05/16

Ao princípio era ...a Coisa

Depois, ao longo de um ano, os posts acrescentaram bonitos textos e belas fotos da Westfália com tanto engenho que "A Coisa da Micas" se transformou n' "A Casa da Micas". Parabéns

2005/05/13

Ainda sobre W.Bush em Riga

No Público de hoje diz-se que documentos do FBI confirmam aparentemente que o dissidente Luis Posadas Carriles autor em 1976 de um ataque terrorista que derrubou um avião cubano e matou 73 pessoas, afinal actuava já como agente da CIA. Outros atentados de Posadas e a protecção de que gozava podem ser lidos [aqui]. Moral da história (para certas pessoas e certos Estados) o terrorismo é bom ou mau conforme convém ou não.
Vem isto a propósito de um post que coloquei [aqui]. e que, em resumo, diz que não faz sentido a crítica de Bush a Roosevelt ou Churchil que teriam sido indulgentes com Stalin nos acordos de Yalta.
Victor Sousa do Estranho Estrangeiro teve a amabilidade de deixar um comentário, que agradeço, no qual, demarcando-se de Bush, considera fazer sentido a posição que ele expressou em Riga:

"O Mundo Ocidental livre, que englobava as potências que emergiram da 2ª Guerra Mundial ostentando o poder decorrente da vitória, sentiram pudor em aplacar os intentos de Estaline. O erro, indubitavelmente, existiu. Os presentes na conferência em Yalta anuiram à subjugação dos países do Báltico devido à descortesia que isso representaria para com os soviéticos."

Contrariando esta ideia sustento que as bandeiras da "liberdade" e dos "direitos humanos" , são grandes bandeiras dos democratas mas na boca de imperialistas servem apenas para combater com "legitimidade" as ditaduras que não lhes convêm, no caso, ao Tio Sam.
Assim os dólars jorram para libertar a Ucrânia, a Geórgia, a Bielorúcia e outros Estados mais ou menos ditatoriais ou invadem o Iraque, ou conquistam Granada, ou bombardeiam Manágua e levam preso o Chefe de Estado da Nicarágua, ou derrubam Governos democraticamente eleitos como o de Allende no Chile ou de Arbentz na Guatemala. Mas ou reina a maior indiferença ou são mesmo amparadas as ditaduras que servem os interesses dos EUA, como a Arábia Saudita, o Kuwait, o Paquistão, o Egipto, a Indonésia (enquanto durou Suharto), Portugal de Salazar, Espanha de Franco, a Grécia dos coronéis e todas as que enxameavam a América Latina.
Mesmo relativamente à 2ª Guerra Mundial anotemos os "escrúpulos" dos grandes poderes que comandam o Estado norte-americano.
De 1939 a 45 as filiais da General Motors (proprietária da Opel desde 1929) na Alemanha nazi produziram 50% dos motores dos melhores bombardeiros da Luftwaffe, os Junker 88. GM e Ford produziram 80% das viaturas médias e 70% dos camiões pesados do Exército Alemão. Em 1943 no auge da guerra as filiais da GM, conceberam e construiram os motores para o primeiro avião a jacto do mundo, o Messerschmitt 262.
Depois da guerra a GM e a Ford conseguiram que o Governo norte-americano as indemnizassem pelos prejuízos sofridos nas suas fábricas, ao serviço de Hitler, pelos bombardamentos cegos da aviação dos... Estados Unidos. A primeira recebeu 33 milhões de dóllars, a Ford só um milhão.
Menos sorte teve Prescot Bush, avô do actual W.Bush que acabou por ver contrariados os seus interesses em várias empresas que possuia na Alemanha e negócios com o regime nazi relativamente ao qual tinha uma atitude simples e ordeira: fazer dinheiro. Não tinha qualquer simpatia especial pelo Fuher. Nem tão-pouco qualquer rebate de consciência com os campos de concentração ou a morte dos soldados americanos. Era um cidadão do mundo, um homem de negócios. Aproveitava a oportunidade. Como manda a moral comercial. Como faz W. Bush.

Memórias da 2ª GM. O massacre de Katyn

Quando em Setembro de 1939 Hitler invadiu a Polónia por Ocidente, Stalin invadiu-a por Oriente. A Polónia foi mais uma vez repartida. Quase todo o país ficou sob a posse da Alemanha e uma parte menor, confinante com a URSS, para esta.
420 mil militares polacos foram aprisionados pelos alemães e 250 mil pelos soviéticos.
Em 1943, as tropas nazis durante a ocupação da Rússia, descobrem na floresta de Katin valas comuns com milhares de corpos de oficiais polacos assassinados. Informam o mundo e atribuem o crime ao Exército Vermelho. Os soviéticos negam e atribui-o aos nazis. Para não prejudicar a aliança necessária com a URSS os aliados (EUA,Inglaterra) não procuraram aclarar o caso.
Só com Ieltsin após a queda do regime comunista, a Rússia reconheceu a autoria do crime de Katyn.
Por ordem de Stalin, na Primavera de 1940, foram assassinados na floresta de Katyn, cerca de 22 mil oficiais "reaccionários" polacos. Um dos mais repugnantes crimes do ditador soviético.
Os comunistas, com a boa fé que resultava da fé no comunismo, tinham passado a vida a negar, a denunciar a "intriga" e as "falsas acusações imperialistas" sobre esse nefando crime "nazi".

2005/05/03

Casa na Duna - Dia de Sol


Hoje sentei-me sobre a duna
Olhei o brilho curvo até ao céu
Olhei embriaguei-me de olhar
O sol voltou como eu não queria
Pensei na noite negra e nas estrelas

Não sei olhar a luz assim tão forte
Enquanto não voltares

Não quero o sol não quero a chama
Enquanto não voltares

Quero as ondas do mar só nos meus olhos

Depois? Voltar a casa
Talvez voltar…

(Poesia de Monalisa, no Sítio da Saudade e fotografia de João Coutinho)

O Aborto? Por cá tudo bem!

O aborto, por causa da data do referendo, voltou à actualidade.
Ainda há pouco éramos o país do "Cá vamos cantando e rindo..." do hino da Mocidade Portuguesa, a organização da juventude do fascismo lusitano, de filiação obrigatótia no ensino secundário.
Há uns anos atrás, digamos 50 anos, na minha aldeia (a 60 Km de Lisboa!) as mulheres andavam de lenço na cabeça (cabeça tapada como as do Islão!). Se alguma fazia uma "permanente" (arranjar o cabelo) era estigmatizada e tido tal propósito como sinal claro de mau comportamento moral. O fundamental da moral católica girava e ainda roda em torno do sexo!
A mulher não votava, mesmo nas eleições-farsa do nosso fascismo-católico-apostólico-romano do ex-seminarista Salazar e do seu amigo e confrade de lutas político-académicas de ultra-direita, cardeal-patriarca Cerejeira.
O marido era "dono" da mulher e dos filhos. Marido ultrajado na sua honra de macho podia assassinar a mulher sem perigo de grande pena se a apanhasse em flagrante delito com o amante ou mesmo sem flagrante. O divórsio era proibido. Entretanto pedofilia e abuso sexual de menores era, quando muito, apenas coisa que não caía bem, em conversa pública.
Mulher que fosse "desonrada", que se soubesse ter deixado de ser "virgem" e o namorado não casasse com ela estava condenada à tragédia pessoal. Era uma desgraça à mercê de um casamento de favor, com um desgraçado qualquer, sem brio nem honra, ele também, ou então, um convento.
Em Lisboa só se via, e raro, mulher com calças, no Parque Mayer, local de teatros de revista e maus comportamentos.
A revolução do 25 de Abril deu uma volta nos costumes. Foi uma lufada de ar fresco no bafio da sacristia em que o ditador fascista transformara o país. Mas a nossa gentinha reaccionária tem oposto, também nos costumes, a sua muito "católica" resistência e mantido peado o país. Por isso ainda somos o resto da Europa onde mulher que faça aborto é presa.
Os "católicos" reaccionários (numa linha simétrica às dos fundamentalistas do Islão) querem, e têm conseguido, impôr como lei, aos outros portugueses, incluindo outros católicos, o seu preconceito religioso sobre o aborto, supostamente em defesa da "vida". Eles que, como o papa Voytila e Ratzinger, aceitam a pena de morte. Os mesmos que, em geral, são o suporte ideológico das políticas da máxima exploração que condenam grande parte da humanidade à marginalização, à fome e à morte precoce.
Poderiam proibir, no plano religioso, o aborto aos católicos mas sabem que nem mesmo com a excomunhão impediriam as mulheres católicas de o fazer. Em última instância, já se sabe, pois nenhuma mulher anseia por abortar.
Os católicos reaccionários de outrora, num espírito de "tolerância" obrigaram toda a gente a ser católica e aos que resistissem, como no caso dos judeus, "apenas" os mandavam para a fogueira. Agora os tempos são outros, mas onde o tempo é mais antigo, como em Timor, até a casa do bispo serve para fazer "justiça" privada. Por cá as mulheres, não as deles, não as católicas obedientes à ortodoxia, mas todas, escapam à fogueira é certo, mas não escapam à prisão, se em última instância abortarem.

2005/04/24

Faltam poucas horas

Preparem-se! Preparemo-nos todos!!Para a alegria. Para a alegria sem limites. Para a euforia, a loucura.

A ditadura que amordaça este país há 48 anos vai cair. A Liberdade, a Liberdaaaaaaaaaade vem aí.

Gerações sucessivas de democratas viveram, lutaram e morreram sem ver o maior sonho da sua vida.

Será possível? Será mesmo possível? Logo? Logo à noite? Logo à meia-noite? Quando esses rapazes, os capitães do Movimento das Forças Armadas, começarem em todo o país, ao som da "senha", no Rádio Clube Português, a canção E Depois do Adeus de Paulo de Carvalho, a sair dos quartéis e ao som de Grândola Vila Morena, de José Afonso, o cantor da revolução, a pôr fim à ditadura que há meio século sufoca, este povo no conservadorismo retrógrado e tacanho de Salazar, mecenas do obscurantismo, intérprete dos interesses de umas centenas de fortunas e de uns milhares de privilegiados.

1974. 48 anos depois de um golpe militar, em 28 de Maio de 1926, que pôs fim à República, nascida em 5 de Outubro de 1910.

Vamos festejar.

CONNOSCO FOI ASSIM

[25 de Abril de 1974]Manhã cedo, Maria Machado apercebeu-se de movimentos desusados no patamar do prédio, junto à nossa porta. Abrir e fechar de portas e um estranho bichanar. Era António Bernardo e João Gomes, nossos vizinhos. Encostou o ouvido à porta para melhor entender o que se dizia.

...Os nossos vizinhos, ali no patamar do prédio, davam largas à sua alegria com a queda iminente da ditadura. Afinal são antifascistas, verificávamos com agrado.

...O milagre acontecera. Ainda nos custava a acreditar. Podia ser?

A nossa ansiedade era extrema. Até por estarmos ali escondidos sem poder participar na acção. Falávamos baixo não fosse qualquer palavra mais alta ou gesto descuidado perturbar o bom andamento das operações militares.

... Corríamos as diferentes rádios e fixávamo-nos no Rádio Clube Português. A manhã foi passada num desespero eufórico e meio louco. Eu interrogava-me e «dava ordens» ao comando do Movimento. Ainda não sabia que o quartel general dos capitães era no Regimento de Engenharia da Pontinha, relativamente perto de nossa casa.

Já terão tomado a televisão? – interrogava eu.
– Assaltem a PIDE! A PIDE é absolutamente essencial – protestava eu – ignorante do plano. Prendam o Tomás e o Marcelo! Neutralizem a GNR. E o Banco de Portugal? Se calhar esqueceram-se do Banco – repreendia os capitães e olhava para a Maria a ver o que me dizia.

A manhã íamo-la passando num estado de espírito entre a exaltação, a alegria desmedida e a ansiedade por não conhecermos suficientemente a situação político-militar e também por causa da nossa inacção e impossibilidade de entrar em contacto com os outros membros do Comando Central da ARA ou com a direcção do PCP.
– Escuta, escuta, escuta!
– Olha apanharam um rádio do Comando da GNR!
– É um comandante a dar ordens a uma força inimiga. Para ir para o Rossio.
– Grava, grava as ordens – tínhamos um gravador de som onde íamos gravando as principais informações para no intervalo das notícias as voltarmos a apreciar e nos convencermos que era tudo bem real...

–Não podemos dar fôlego ao inimigo! – aconselhava eu, platonicamente, do meu esconderijo, os insurrectos e associava-me a eles mas infelizmente só em espírito.
Se não atacam depressa ainda perdem, prevenia, senhor da teoria de muitas revoluções. É preciso atacar, atacar, atacar, sem dar fôlego ao inimigo!
– E os presos políticos? Oh caraças. Deviam ir a Caxias e a Peniche! Depressa!
...
E assim passámos a manhã bebendo cada palavra da rádio e levitando.
...
Os nossos filhos deviam estar espantados com a nossa agitação. O José Alexandre, que viria a ser o último português a nascer na clandestinidade, com um mês e meio de idade, não se impressionou muito com o curso dos acontecimentos ao longo do dia. Talvez tenha notado algum desacerto no horário das mamadas. À Leonor, com quatro anos, já podíamos explicar alguma coisa mas era ainda prematuro dar-lhe explicação de coisas que podiam voltar atrás e depois tornar-se mais difícil controlar o uso que faria de tais informações.
À tarde saímos. A ver o ambiente. Com cautelas.
À noite saí afoito. A Maria teve de ficar em casa a tomar conta dos filhos e da casa. Sempre as mulheres… Fui a Lisboa e fiz contactos. A euforia era indescritível mas ainda contida. Nunca fiando. Os fascistas há quase cinquenta anos no poder podiam ter sete fôlegos como os gatos.
No dia seguinte saímos, quase sem cerimónias, para dar largas à nossa alegria, mas longe de casa, é claro. Dois dias depois gritava, com a multidão que rodeava a prisão de Caxias, pela libertação dos presos políticos. Todos os presos políticos. Incluindo os da ARA e da LUAR e de outras organizações revolucionárias. E não apenas alguns, como ainda tentou impor Spínola, o general que, na circunstância, os capitães aceitaram por Presidente da República provisório.
Entretanto fomos contactados por Jaime Serra que nos anunciou a chegada de Cunhal no dia seguinte. Disse-nos que já podíamos sair mas que mantivéssemos a casa completamente clandestina, sem revelar nada a vizinhos, amigos ou família. Era o que já estávamos a fazer.
Depois foi o regresso do exílio de Mário Soares e de Álvaro Cunhal. E por fim a manifestação do 1.º de Maio em Lisboa. Aquele 1º.º de Maio!… Uma euforia. Uma loucura. Toda a gente veio para a rua. Em todo o país. Em quase todo o país!
No Dia do Trabalhador, o primeiro que era festejado em liberdade nas últimas dezenas de anos, em Lisboa formou-se um mar de gente como nunca se vira antes. Nem depois…! De todas as ruas confluía uma multidão para o estádio da Avenida do Rio de Janeiro que viria a se chamar Estádio 1.º de Maio. Uma alegria e fraternidade incontidas. Pais com bebés às cavalitas. Jovens e velhos. Gente de todas as condições. Ricos e pobres. Operários e intelectuais. Até as crianças partilhavam os risos, as saudações, sem perceberem bem o que se passava. As nossas também lá iam connosco e participavam a seu modo. Naquele momento todos nos julgámos irmãos. Nunca mais se repetiu uma coisa assim. Nem podia repetir. Era a Libertação. Libertação duma ditadura de meio século. As pessoas ainda não vinham enquadradas por partidos, que ainda não existiam legalmente, nem por cartazes ou palavras de ordem partidárias e «politicamente correctas». Cada um trazia no olhar uma alegria incontível, no gesto solidariedade a transbordar e à volta da cabeça ver-se-ia com certeza uma auréola de esperança do tamanho do universo.

Fomos à procura da família. A minha mãe estava na terra, no Vilar, uns quilómetros ao norte de Torres Vedras, e foi fácil encontrá-la. Para ela o fim do fascismo era também o fim da solidão e amargura em que se encontrava, com o falecimento do meu pai em 1970, com a filha exilada em França e o filho algures em parte incerta. Encontrar os pais da Maria não foi tão fácil assim.
José Pulquério e Úrsula Machado viviam há muitos anos na clandestinidade quando em 1968 foram presos pela PIDE. A mãe, libertada em Novembro de 1972 e o pai em Março, de 1973 viviam com a filha mais nova Maria José e tinham mudado de residência há pouco tempo. A irmã mais velha, Úrsula, mas conhecida por Luísa Basto, pseudónimo, primeiro da clandestinidade, depois artístico, encontrava-se em Moscovo onde completou um curso superior de canto e só regressou a Portugal em Junho de 1974. Visitávamos a família mas ainda não a podíamos convidar para a nossa casa que se manteve clandestina durante mais algum tempo.

Inesquecíveis foram também os reencontros com os amigos que não víamos há dez anos. Muitos tinham novas moradas que tentávamos descobrir. Outros tinham casado e com pessoas que não conhecíamos ou não esperávamos. As festas, as reuniões, os jantares, os serões, as tertúlias eram vividos em festa contínua. A intervenção política, social, a revolução cultural e dos costumes, na rua, nos locais de trabalho, na universidade, nas sedes dos partidos, nos convívios, nas casas dos nossos amigos, nas nossas casas, a discussão, a disputa e o combate político com os colegas, com a família, com os amigos, com os aliados, com os adversários e com os que ainda restassem, era a nossa irreprimível e ininterrupta festa-revolução.

A luta contra o fascismo, o empenhamento total que nos exigiu, foi uma experiência tão marcante que não se esquece mais. A Revolução e o envolvimento permanente e empolgante com que nos arrebatou durante ano e meio foi uma experiência que raras gerações tiveram oportunidade de usufruir.
A actividade da ARA, parcela importante da luta dos antifascistas que ao longo de muitos anos combateram o regime salazarista e ajudaram a preparar as condições para a revolução de Abril, tinha chegado ao fim. Agora era a vez dos capitães do Movimento das Forças Armadas darem o golpe decisivo na ditadura e, com o povo, sujeito da História, novamente de pé, participarem na construção do Portugal moderno.

Lisboa, 15 de Junho de 2000.

In "ARA - Acção Revolucionária Armada" - A história secreta do braço armado do PCP, Publicações D. Quixote e de que se fala [aqui]

2005/04/20

Um caso de bradar aos céus

O que se passou com a EDAB - Empresa de Desenvolvimento do Aeroporto de Beja,SA, é bem o exemplo da degradação do Governo do PSD-CDS e das práticas de aproveitamento do poder para o saque dos dinheiros públicos.
Tal prática não é, todos sabemos, exclusivo dos partidos da direita, e atinge todos os partidos que exercem poderes. Mas este caso é a muitos títulos paradigmático da sensação de impunidade, do estilo da nossa direita de raizes salazaristas.
Apesar da gravidade trata-se de um caso menor, no contexto do Estado.

O Governo encontrava-se demitido e em gestão, as eleições marcadas para 20 de Fevereiro de 2005, a perspectiva de o PSD/CDS conservar o poder, nula.

A EDAB é uma empresa de capitais públicos com o objectivo de criar no aeroporto militar de Beja um aeroporto civil, principalmente vocacionado para carga, mas não só, que articulado com o Alqueva, o porto de Sines, (entrada na Europa) o parque industrial de Sines e a base Logística aí a ser implantada, pudesse constituir um triângulo de desenvolvimento do Alentejo. O aeroporto civil de Beja é uma grande e já velha aspiração da região e a EDAB tem os seguintes accionistas:

• Direcção Geral do Tesouro - DGT - (Ministério das Finanças) - 77,5 %;
• Associação de Municípios do Distrito de Beja - AMDB - 10%;
• Núcleo Empresarial da Região de Beja - NERBE - 2,5%;
• Empresa de Desenvolvimento de Infra-estruturas do Alqueva -EDIA- 2,5%;
• Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Alentejo-CCDRA- 2,5%;
• Promoção, Gestão de Áreas Industriais e Serviços - PGS - (parque industrial e futuro polo logístico de Sines) 2,5%;

Fora da tutela do PSD apenas estava a AMDB de influência PCP e o NERBE onde a influência do PSD é afinal também dominante.
A Assembleia Geral da empresa teria lugar em Março de 2005. Mas em Março… Já seriam outros a mandar.
O aparelho local do PSD estava desunido na repartição das prendas e alguns, alheios à divisão dos despojos, talvez estivessem sinceramente contra tão escandaloso descaramento.
O presidente do Conselho de Administração, Mourato Grilo, que não ia ser reeleito, estava contra a manobra.
O presidente da mesa da assembleia geral seguido da maioria dos accionista, que não do capital social, adiou a AG para 28 de Março e com vários accionistas abandonou a sala. O accionista DGT reúne de seguida nova AG e procede à

- Eleição de novo Conselho de Administração (substituição do presidente e de um vogal);
- Aumento dos ordenados dos membros do CA;
- Contratação de 6 funcionários e mais 3 assessores;
- Autorização de acumulação de funções do presidente no vogal José Gaspar.

O escândalo é público e ocupa durante semanas a rádio local Rádio Pax, jornais locais e... blogs.
Para além de assegurar por três anos o "job" no Conselho de Administração a uns amigos, o Governo que sabe que a empresa não tem dinheiro, aumenta-lhes os vencimentos e contrata injustificadamente mais pessoal.
A EDAB prescindiu do período experimental inicial dos novos contratados para que ficassem logo após as eleições imediatamente efectivos e pudessem ser como tal indemnizados. Em Fevereiro a empresa não tinha dinheiro para os vencimentos!

Eis o que nos diz a Rádio Pax:

"Em declarações exclusivas à Rádio Pax, João Pulo Ramôa o governador civil de Beja (PSD) defende que José Gaspar e Mário Rui Resende (vogais do Conselho de Administração da EDAB) deveriam ser imediatamente despedidos."
"Recorde-se que, na passada sexta-feira avançámos, em exclusivo aqui na Rádio Pax, que os dois vogais do conselho de Administração propuseram em reunião do conselho de administração da EDAB, a contratação de mais pessoal. Para além desta proposta, foi apresentada outra que prevê a delegação de poderes no vogal José Gaspar, detentor do pelouro de pessoal, para que este seleccione, admita e elabore os respectivos contractos a celebrar com os novos funcionários.

No final desta reunião, Mourato Grilo (presidente do CA que não será reeleito) afirmou que se dissocia clara, pública e completamente de todas as contratações que vierem a ser feitas na EDAB até à tomada de posse do novo conselho de administração e que não tenham a sua assinatura. …Perante esta situação, João Pulo Ramôa (governador Civil de Beja) confessa-se revoltado e triste com o que se está a passar na EDAB, condenando o facto de se estarem a colocar os interesses pessoais e de grupos acima dos interesses da empresa. O Governador Civil de Beja afirma que, as contratações pretendidas pelos vogais da Empresa de Desenvolvimento do Aeroporto de Beja são feitas sem o aval do governo. [Desculpas tolas - digo eu aqui no Memórias - pois se foi o Governo através da DGT (Ministério das Finanças) que tudo autorizou e fez!] João Paulo Ramôa vai mais longe e diz mesmo que José Gaspar e Rui Resende devem ser despedidos e responsabilizados pelos danos e prejuízos causados à EDAB.
Luís Serrano diz que estas contratações cheiram mal. O Presidente do NERBE, um dos accionistas da EDAB, sublinha que é uma pouca-vergonha o que se está a passar na empresa que gere os destinos do aeroporto de Beja.
A Associação de Municípios do Distrito de Beja acha estranho que se avance agora com contratações. Segundo Carlos Beato, Presidente da AMDB, esta situação é inaceitável. Luís Ameixa, o presidente da Federação do Baixo Alentejo do P.S. diz que, se trata de uma atitude completamente incorrecta.
Opinião partilhada por José Soeiro, o cabeça de lista da CDU por Beja".
[Está tudo aqui na Rádio Pax].

Isto passou-se sob a tutela e nas barbas do impoluto e muito cristão ministro Bagão Félix. Estaria o ministério nesta fase em roda livre e o ministro a leste?
Este minúsculo caso não ilustra apenas o santanismo, um barrosismo de Parque Mayer no seu estertor. Ilustra por um lado a corrupção do poder que obviamente não atinge só a direita. Ilustra por outro lado a degradação sofrida pelo PSD, que aplaudiu e acompanhou Durão e Santana, no sentido do populismo e da falta de escrúpulos e ilustra ainda a tradição da direita se sentir dona do país e a única com verdadeiro direito ao poder.

2005/04/15

Truca Truca

A propósito da suspenção do programa de Júlio Machado Vaz "O Amor é..." de que falei aqui, lembrei-me da Natália Correia.

1982. Discutia-se na Assembleia da República o aborto e a IVG. João Morgado, deputado do CDS sai em defesa do obscurantismo da direita:

"O acto sexual é para ter filhos!"

Natália Correia deputada, creio que independente na lista do PSD, respondeu ao colega com um poema que distribuiu profusamente nas bancadas do parlamento e provocou a gargalhada geral.

O Truca Truca

Já que o coito - diz Morgado-
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca- truca.
Sendo pai de um só rebento,
Lógica é a conclusão
De que viril instrumento
Só usou – parca ração!-Uma vez.
E se a função
Faz o órgão – diz o ditado –
Consumada essa excepção,
Ficou capado o Morgado.

Natália Correia

2005/04/11

As estações da CP ai que bonitas são


O texto que acompanhava a fotografia pura e simplesmente desapareceu num daqueles passes de mágica em que a informática por vezes é tão fértil. Tentava corrigir o Português e ao sublinhar o texto vai ele... evaporou-se. Pelo lapso as minhas desculpas. Tentarei refazê-lo mais tarde, se tiver paciência e vagar, apesar da sua nenhuma importância.
Na essência dizia que a Estação do Pinhão (fotografia roubada ao João Tunes no seu Água Lisa 2) é muito bonita e mais ainda pelos afectos a ela ligados que a sua memória revisitou. E que cada um de nós tem a sua estação. Bonita com seus azulejos e jardins que guarda momentos felizes ou amargos aonde às vezes voltamos.
Pinhão e Torres Vedras cada uma com sua estação.

ELECTROZAVODSKAYA



As estações do Metro da capital soviética (agora da Rússia) eram o cartão de apresentação da cidade e também a mim elas causaram uma surpreendente e favorável impressão quando pela primeira vez cheguei a Moscovo, em Janeiro de 1965.
As impressões, boas ou más, estão muito condicionadas pelos "pré-conceitos" que transportamos connosco. Mais do que tirar essa conclusão aos 28 anos, na segunda vez que visitava a URSS, agora por um período de nove meses, confirmava-a diariamente ao confrontar as minhas impressões e das portuguesas minhas colegas no curso do Konsomol com as de alguns colegas italianos do PSIUP, um pequeno partido "compagnon de route" dos comunistas. Onde nós estávamos sempre prontos a exaltar as maravilhas da sociedade soviética eles, um dos grupos do nosso círculo de amigos, eram frequentemente, ainda que nem sempre com razão, muito críticos.
O uso, frequente, uma ou duas vezes por semana, da Electrozavodskaya, banalizou a sua imagem e retirou aos nossos olhos os brilhos que a fotografia ostenta.
Os bilhetes, 5 copecks, 5 cêntimos de rublo, eram baratos e davam para viajar nas muitas dezenas ou talvez centenas de quilómetros da rede do metro.
Quanto a bilhetes o que nos impressionava era não haver praticamente nenhum controlo, nos autocarros. Cada passageiro entrava pela porta de trás e retirava, se quisesse, o bilhete de um dispensador mecânico. Concluí que havia um certo controlo social. Se alguém se esquecia ou retardava, era olhado significativamente ou mesmo advertido para tirar o bilhete.
A mim e às duas colegas que comigo constituíam o grupo dos portugueses (nesse ano de 1966/67 só de 3 alunos) foi dado um passaporte soviético que nos dava liberdade de movimentos num raio de 80 ou 100 Km em redor de Moscovo e munidos de tal documentos íamos a Moscovo à ópera ou ao ballet no Teatro Bolshoi ou no Palácio dos Congressos, no Kremlin, a concertos musicais na célebre Tchekovskaya Zal, a museus, ao teatro de marionetas, ao circo e até, uma vez ao futebol.
Dizíamos que éramos brasileiros aos soviéticos com quem eventualmente falávamos (uns meses de lições diárias já nos permitia falar) nos passeios por Moscovo. Na Escola eu era Carlos, a Maria Machado, Leonor e a Mariana era Ana.
Assistimos nesse ano à exibição de alguns dos maiores solistas do mundo, no piano como Sviatoslavsky Richter (talvez se escreva assim) ou David e o filho Igor Oiastrak no violino e o primeiro, depois, na regência de orquestra ou Plisetskaya no ballet.
Ou íamos ao GUM, uma espécie de armazém gigante do Grandela onde tudo tinha um ar antiquado e onde imperava, como em todo o comércio, a lógica não da pressão da oferta sobre a procura mas a inversa. Havia rublos mas a oferta ou era limitada ou era pouco apelativa e "demodé".
Também frequentávamos os restaurantes caros dos hotéis que não eram assim tão caros. E por vezes íamos a restaurantes georgianos ou arménios onde se podia comer essa coisa estravagante que aqui em Portugal chamamos azeitonas . E comprávamos discos de música a preços impressionantemente baixos.
Quando deixávamos o Metro em Electrozavdskaya apanhávamos o comboio suburbano até Vichnyki. Aí via sempre à volta da Igreja Ortodoxa, pequena mas muito bonita, vários crentes, em geral mulheres idosas réplicas perfeitas das célebres matrioscas. Depois apanhávamos um "taxi", uma carrinha de dez lugares, um tanto avelhada, para os 4 ou 5 km que nos separavam do complexo escolar, num bosque de bétulas paradisíaco.
Paradisíaco era qualificativo que provinha de muitas fontes. Por um lado porque comunistas vindos da clandestinidade em Portugal, os três, eu com 28 e as raparigas com 17 e 18 anos, estávamos em segurança, longe da PIDE, por outro, eu acabara de passar em Portugal longos meses de abstinência sexual e ali havia centenas de raparigas de todos os continentes (e hela, não havia sida! Essa maldição recente. Mas recomendaram-nos logo, particularmente às raparigas que não faziam abortos a quem fosse originário de país em que ele não fosse permitido, como aliás era o caso de Portugal) Depois o convívio, a troca de informação política e cultural, entre jovens de dezenas de países, culturas e situações políticas muito distintas, era um verdadeiro banquete espiritual. Também ajudava a região e a floresta serem muito bonitas e haver ali à mão, ginásios, desporto, piscina, cinema, música e baile (ao Sábado à noite, depois dos seminários da parte da manhã em que prestávamos provas sobre a matéria da semana), passeios pela floresta, ou ski no inverno.
Electrozavodskaya, portanto, é isto!

Memória de Barros Moura

Em 5 de Abril de 2005, a Biblioteca- Museu da República e da Resistência, em Lisboa, tomou a iniciativa de homenagear José Barros Moura por ocasião do 2º aniversário do seu falecimento ocorrido a 25 de Março de 2003.
Na presença da viúva, Margarida Lucas Barros Moura, do filho, Manuel Barros Moura e outros membros da família e muitas dezenas de amigos foram apresentados depoimentos que evocaram a vida de José Barros Moura, do estudante da Universidade de Coimbra, do político, como lutador anti-fascista e depois como deputado europeu, deputado da Assembleia da República e autarca, do jurista e académico. Depoimentos onde sobressaiu, sem excepção, o retrato do homem de carácter e inteligência que deixa na universidade, na política, no seu país, uma marca indelével.
Entre os seus amigos estavam muitas figuras públicas, nomeadamente da política e da universidade como o ministro da Saúde, Correia de Campos, o Secretário de Estado da Administração Interna José Magalhães, o deputado Manuel Alegre, o presidente da Câmara Municipal de Évora, José Ernesto Oliveira, professores universitários ou eminentes constitucionalistas como Joaquim Gomes Canotilho, José Manuel Correia Pinto, Álvaro Veiga de Oliveira, Garcia Pereira, e muitas outras.
Manuel Alegre leu dois poemas do seu "Livro do Português Errante" (Publicações D. Quixote), "O Mês" e "O Cravo e o Travo".
Encontram-se disponíveis os depoimentos de Raimundo Narciso, de José Manuel Correia Pinto e a mensagem enviada pelo Ministro Mário Lino [aqui].

2005/02/06

Jerónimo de Sousa admite fazer parte de um Governo do PS?

Na realidade, Jerónimo de Sousa não admitiu nada de novo. O que parece ser uma abertura, como Judite de Sousa insinuou no debate de hoje à noite, na RTP, não passa de uma imutável posição do PCP.
O Partido Comunista sempre considerou o PS e ainda na clandestinidade as figuras que lhe deram origem, como forças de esquerda ou personalidades de esquerda, quando fazia a contabilidade nacional esquerda-direita e, numa contradição insanável, sempre os considerava de direita na actividade prática. Por isso na clandestinidade estava sempre disposto e interessado na aliança com tais forças mas sempre e sempre sob a liderança hegemónica do PCP. Era fundamental marcar bem o terreno para o pós-fascismo. Para que não se questionasse quem mandaria em quem e se comprometesse o futuro socialista de Portugal após o derrube da ditadura fascista.
Depois do 25 de Abril a política de alianças, particularmente com o PS, manteve-se firmemente nessa posição. Pretendeu-se até, habilmente, fazer "a aliança da classe operária com os camponeses e a pequena e média burguesia - estratégica para a vitória da revolução," fazendo a aliança POVO-MFA curtocircuitando a aliança política PCP-PS. Aliás, manifestamente impossível, por falta de vontade óbvia dos dois lados. Óbvia porque para a revolução o PS não aceitava tal aliança e para a "democracia burguesa" não a ceitava o PCP.
Desde a institucionalização do regime democrático que o PCP mete o PS na esquerda para através da soma de deputados (ou votos) na AR mostrar que no país há uma maioria de esquerda. Mas sistematicamente o considera de direita no que à política diz respeito. E que se saiba os partidos não dizem respeito a nada mais do que à política.
Apesar desta insuperável contradição (táctica) havia no passado, ainda que questionável (enquanto houve União Soviética, países socialistas e perspectivas de o capitalismo vir a ser substituido por aquele socialismo) alguma lógica na táctica e na estratégia da orientação política de Cunhal. Lutava o PCP pela revolução que levasse a Moscovo. Com a queda de Moscovo não faz sentido Jerónimo querer fazer aquela revolução. Não sabe para aonde a poderia levar. E não menos sentido faz usar a táctica e a estratégia para o mesmo desiderato.
Já não fazia qualquer sentido com Carvalhas. Nem com Cunhal no seu ocaso. Mas Cunhal tem atenuantes, depois do que foi a sua vida, e que vida! não esteve para dar o braço a torcer perante os seus inimigos. Não me enganei. Não eram adversários, eram inimigos. De vida ou morte. E, noutros tempos, talvez não só no plano político. De um e outro lado.
Portanto a descoberta de Judite de Sousa, na entrevista a Jerónimo de Sousa, hoje à noite, na RTP, não é notícia.

2005/01/30

Viver na clandestinidade

A Sandra Cristina Almeida que tem um excelente blog História e Ciência, pediu um depoimento à Maria Machado sobre a sua vida na clandestinidade que publicou em 11 de Outubro de 2003. Aqui se reproduz o seu depoimento e uma fotografia sua com a nossa a filha Ilda Leonor, em 1970, na clandestinidade, em Alcabideche-Cascais:


Notas sobre a minha vida na Clandestinidade


Maria Machado
Odivelas, 7 de Outubro de 2003


Vale de Vargo é uma aldeia do concelho de Serpa na margem esquerda do Guadiana, quase na fronteira com Espanha. São daí os meus pais e foi aí que eu nasci, em 1949.
Na aldeia quase todas as pessoas eram trabalhadores assalariados sem terra. Durante o ano havia muitos dias e muitas semanas sem trabalho e isso era imediatamente a fome. Lembro-me duma manifestação, à qual se juntou toda a nossa família, em que as pessoas levavam bandeiras pretas e gritavam temos fome, temos fome. Quando o trabalho faltava muitas pessoas iam pelos campos para comerem a fruta que encontrassem.

Esta insustentável situação só se mantinha com a GNR. Volta não volta ouvia os meus pais comentarem a prisão de vizinhos. Receávamos que mais tarde ou mais cedo também levassem o meu pai. Foi o que acabou por acontecer. A nossa casa estava entre aquelas que a GNR "visitava" de cada vez que havia protestos dos trabalhadores agrícolas. Eu e as minhas irmãs, como muitas outras crianças de Vale de Vargo, crescemos no medo da GNR.

Tinha 8 anos quando os meus pais tiveram de passar à clandestinidade. Foram para local desconhecido que depois soube ser o Barreiro. Levaram a minha irmã mais velha porque já tinha terminado a instrução primária e a mais nova porque ainda não chegara à idade da escola.
Três anos depois, aos 11 anos, passei eu também à clandestinidade mas, apesar de me terem dito que era uma vida muito difícil e não podia fazer a vida das outras crianças, a clandestinidade para mim vinha acompanhada da alegria de ir viver com os meus pais e as minhas irmãs. No entanto, com a minha chegada deu-se o regresso da irmã mais nova (Maria José) para frequentar a escola e poucos meses depois partiu a mais velha (Luísa Basto) para a União Soviética onde foi estudar e depois terminou um curso superior de canto.

Ajudava os meus pais a imprimir o Avante, O Militante, panfletos, em papel bíblia muito fininho para os seus leitores o poderem esconder facilmente da PIDE.
Era um trabalho feito nas casas que habitávamos e os meus pais alugavam com nomes falsos. Usávamos umas impressoras primitivas, em que colocávamos letra a letra, as letrinhas de chumbo até completarmos os artigos e as páginas e comprimíamos contra elas manualmente, o papel e a tinta, com um pesado rolo metálico forrado de flanela. Muito primitivo mas saia bem. O quebra-cabeças era...
(O depoimento continua aqui no In Extenso)



2005/01/28

Auschwitz e o Holocausto

Em 1983 visitei com a Maria Machado e um casal amigo "O Campo da Morte" de Auschwitz (Oswiecim em Polaco)e o campo anexo Birkenau. Não há palavras para descrever o horror, a raiva, a indignidade humana do que ali se passou. É preciso conhecer e não esquecer. Para que não se repita.

 Vão a caminho das câmaras de gás. Velhos e crianças produziam pouco. 

Direito à distração: no Campo os guardas e as ajudantes a divertirem-se entre duas chacinas de prisioneiros.


Adolf Hitler:

“I freed Germany from the stupid and degrading fallacies of conscience, morality... we will train young people before whom the whole world will tremble. I want young people capable of violence, imperious, rentlessiously and cruel.”


Heinrich Himmler, october 1943:

“We came to the question: what to do with the women and children? I decided to find a clear solution here as well. I did not consider myself justified to exterminate the men - that is, to kill them or have them killed - and allow the avengers of our sons and grandsons in the form of their childreen to grow up. The difficult decision had to be taken to make this people disappear from the earth.”



Em cima à esquerda:Auschwitz I. Entrada do campo com a cínica legenda “Arbeit Macht Frei” (o trabalho liberta).Auschwitz was established by order of SS Reichführer Heinrich Himmler on 27 April 1940.
Em cima à direita: vista do Campo de Birkenau: About 3 km outside the mother camp, Auschwitz I, another camp, KL Auschwitz II – Birkenau, was located. This was the largest section of all three camps. The camp was built in March 1942 in the village Brzezinka. It consisted of about 250 barracks divided on 175 ha of land. Today only a small number of the barracks remain.
The prisoners in August, 1944, numbered around 100,000. As many as 200,000 prisoners were confined here during its peak.On the left (as seen from the tower) are the brick barracks of which only 45 remain today. On the right 22 wooden barracks may be seen. The rest were destroyed by the SS near the end of the war. Remnants of these barracks can be recognized by their chimneys. The camp had 4 crematoriums with gas chambers. The SS also used fire pits and funeral piles to burn bodies.
Em baixo à esquerda Um forno crematório: One out of the three chambers in the crematorium at Auschwitz I. When in operation, the crematorium had a capacity for incinerating 350 bodies per day. In each chamber 2-3 bodies were placed. In 1941 and 1942 Soviet prisoners of war and Jews from the ghettos established by the Nazis in Schlesien were murdered in this crematorium.
The crematorium was in use from 1940 - 1943. The ashes were used as fertilizer or as filling in nearby creeks and ponds. The last gassings took place in November 1944. Just prior to the liberation of the camp the SS dismantled and blew up the crematoriums. The ruins can be seen today.
Em baixo à direita: o interior de uma câmara de gás: Auschwitz I. Crematorium, mortuary used as a gas chamber.It was originally used as storage room for ammunition. September 3, 1941 experimental gassing on Soviet prisoners using Zyclon-B.