2005/12/04

"O frio é a minha morada"

Fotografia DN-Nuno Fox

Âgela Marques no DN, hoje. Mostra-nos a Lisboa que não vemos. Avenida Almirante Reis, Américo, 75 anos. Dorme sentado num caixote de papelão, com um cobertor a esconder a cara do frio. "Não quero nada... só quero abrir os olhos todos os dias de manhã."
Vivo "um dia, depois mais um dia, depois outro dia". Assim há 15 anos. "Antes disso, fui empregado no Banco Nacional Ultramarino."

A Guerra

Sinto-me como que desarmado - tão grande é a leviandade ou a estupidez ou a ausência de valores - sempre que vejo alguém fazer a apologia da guerra. Qualquer guerra. Colonial, imperialista, disputa de fronteiras, guerra civil. Excepto claro está, depois de esgotados todos os outros recursos, a guerra de libertação.
A guerra é sempre a máxima violência física e moral. É sempre o sofrimento máximo e a máxima tragédia. Veja-se o Iraque, o Vietnam, a Tchechénia, o Ruanda. Ou as guerras coloniais portuguesas.

Vem isto a propósito de um post de um amigo meu, Marques Lopes, num blog de ex-combatentes da guerra colonial, que descobri transcrito pelo João Tunes no Água Lisa. É um depoimento pungente e que nos conta um triste episódio de guerra que ceifou a vida de uma jovem guineense e perseguirá, traumático, por toda a vida o jovem alferes miliciano obrigado pelo colonial-fascismo português a "defender a pátria" na... Guiné Bissau.

A guerra na Guiné tornara-se muito perigosa com o crescente poder militar do PAIGC. O jovem miliciano já tinha sido ferido e estava de novo de volta à guerra. É uma manhã de Julho de 1967. Conduz pela mata o seu pelotão, perigos estão por todo o lado. Deparam com uma força inimiga! A tensão é grande mas é apenas uma escola do PAIGC no mato. Uma jovem professora talvez com 18 anos ensina Português a crianças guineenses. No quadro preto está escrito "um vaso de flores" e por baixo o desenho correspondente.

Surpreendida e assustada a professora lança mão da Kalachnikov pendurada no quadro. Marques Lopes grita-lhe "firma lá" ("está quieta aí"). O que se segue é o perigo, o susto, o medo, a raiva, o pânico. A guerra!

A jovem professora de Português caiu esventrada com uma rajada de metralhadora e Marques Lopes carrega há trinta e oito anos essa cruz.

Ele conta ainda algo mais. Algo terrível. Algo que exemplifica bem no que as guerras podem transformar os homens. Ele tem de impedir à pancada um soldado do seu pelotão (um rapaz vulgar de uma nossa qualquer aldeia) de violar a jovem agonizante.



Uma escola do PAIGC, na mata. ( 1970 ?)


Marques Lopes:

"...Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira [Bissau, 1998], tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus.

Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava.

Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho [de 1967].

Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada.

Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia [cinema de Lisboa], fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)"

O post de Marques Lopes está [aqui] e a transcrição do JT [aqui].

2005/11/27

O 25 de Novembro de 1975 (2)

A entrevista propriamente dita, conduzida por José Manuel Barroso, que dei ao Diário de Notícias, no 20º aniversário do 25 de Novembro, está no post precedente, ali em baixo. Neste vão os comentários do entrevistador.
José Manuel Barroso é um especialista, investigador (quase historiador) que ano após ano, no DN, escalpelizou os meandros da revolução e conseguiu, a pulso, contra as meias verdades e os bem guardados segredos, da esquerda e da direita, expor à luz do dia os episódios e as motivações mais resguardadas da revolução e do 25 de Novembro em especial.


TEMA DE ABERTURA - DIÁRIO DE NOTÍCIAS, DOMINGO 26 DE NOVEMBRO 1995
memória do
25 DE NOVEMBRO

José Manuel Barroso

O Partido Comunista
a esquerda militar
e o 25 de Novembro



RAIMUNDO NARCISO deputado independente eleito nas listas do Partido Socialista no passado dia 1 de Outubro foi militante do Partido Comunista cerca de 30 anos, dirigente da ARA e do Comité Militar do PCP. Era ainda membro do seu Comité Central quando em 1991, abandona o partido, depois de um processo de divergências e de rotura que se acentua no XII Congresso em 1988. Com ele saem António Graça, Victor Neto, Pina Moura, José Barros Moura e José Luís Judas entre outros. Foi membro fundador da Plataforma de Esquerda. Esta é a primeira entrevista que concede sobre os tempos da revolução e o relacionamento entre o PC e os militares, aproximação a uma densa realidade, ela constitui, desde já, um documento indispensável para entender o período revolucionário e o 25 de Novembro de 1975.



A ENTREVISTA que se publica nas páginas seguintes passará a constituir seguramente um do mais importantes documentos até hoje publicados sobre o 25 de Novembro de 1975 e o processo revolucionário em curso nesse ano. Na entrevista que Raimundo Narciso concedeu ao DN não são feitas revelações de pormenor que nos permitam ir ao fundo do conhecimento sobre o papel do Partido Comunista Português nesse evento e sobre o seu relacionamento com a esquerda militar e o MFA. Mas, sem nunca ferir a lealdade e o respeito devidos a pessoas que fizeram um percurso comum, o entrevistado desfaz suficientemente a teia do pensamento e da acção do PCP, nos idos da Revolução, para permitir ao leitor atento tirar conclusões claras das suas respostas.

A entrevista de Raimundo Narciso tem a autoridade que lhe dá o facto de ele ter sido um importante dirigente do PCP, durante muitos anos, membro do seu Comité Central e do Comité Militar do partido — o que lhe deu a possibilidade de, como ele próprio diz, ter acompanhado e participado «em todos o acontecimentos decisivos da Revolução», incluindo o 25 de Novembro. A entrevista tem, também, a ousadia e a inteligência de facultar um conjunto de informações muito importantes sobre esses acontecimentos, por considerar que «vinte anos depois é tempo para disponibilizar todos os elementos aos historiadores», com excepção de alguns «segredos» que não são só seus.

Excepção feita a esses «segredos», Raimundo Narciso faculta-nos, assim, elementos suficientes para compreender quanto a actuação do PCP, junto dos militares, foi a consequência de um plano estratégico, pacientemente aplicado ao longo dos anos, incluindo os quase dois da Revolução. Fica claro, também, quanto o PCP utilizou os seus homens, no interior das casernas, para estar presente no 25 de Abril, para influenciar, por dentro, o MFA e o rumo dos acontecimentos — até aproximar a «revolução democrática e nacional» de Abril de 1974 da «revolução socialista», que na sequência do 11 de Março se toma possível. E a aplicação, sem temores, do programa do partido, fase por fase, exclusivamente dependente da «relação de forças» — até ao 25 de Novembro.

A «porta para o socialismo» (tal como o PCP o entendia, a partir da matriz soviética) que o 11 de Março abre — com as nacionalizações a reforma agrária e a recomposição favorável à esquerda revolucionária dos órgãos do poder político–militar - havia sido quase fechada pela resistência civil, com o PS de Mário Soares à cabeça, e pela resistência militar, liderada pelo Grupo dos Nove.

Tendo perdido, nesse «Verão quente», largo apoio social e poder nas instituições político-militares, o PCP e seus aliados querem recuperar posições institucionais e forçar um entendimento, no seio do MFA, para «derrotar a direita», sob pena de ser por ela mais tarde derrotado. Sem desistir do seu projecto nacional. O 25 de Novembro terá sido isso. Matéria que, naturalmente, fica para o final desta série de trabalhos.

O 25 de Novembro de 1975


Entrevista conduzida por José Manuel Barroso, publicada no DN de 26 de Novembro de 1995,

***
 
Diário de NotíciasO 25 de Novembro foi um conjunto de sublevações miIitares coincidentes ou uma tentativa articulada para mudar a composição dos órgãos do poder a favor da esquerda militar e do PC?
 
Raimundo Narciso – O 25 de Novembro foi o momento em que a esquerda revolucionária, no plano militar, respondeu à última «provocação» do campo oposto com uma parada demasiado alta e que com espanto e desespero, verificou a seguir não estar em situação de sustentar.
Essa parada demasiado alta foi a ocupação das bases e do comando da Força Aérea, por parte dos pára-quedistas de Tancos, na madrugada de 25 de Novembro. Com essa medida os pára-quedistas respondiam à provocação do chefe do Eslado-Maior da Força Aérea, Morais e Silva, que actuando de acordo com o Grupo dos Nove e o de militares mais à direita, seus aliados, ordenara a sua extinção.
Com esta medida, os «páras», a esquerda militar (EM) e a esquerda revolucionária em geral, não pretendiam desencadear a «mãe de todas as batalhas». Pretendiam «apenas» ganhar a importante batalha da substituição de Morais e Silva, no EMFA e no Conselho da Revolução, e se possível, na passada, conseguir a inversão do processo de constante perda de posições nos órgãos do poder político-militar, que ocorria desde a Assembleia do MFA de Tancos, em 6 de Setembro. E não era pouco. Para isso julgavam que podiam contar com Otelo e que conseguiriam, para o efeito, ganhar o Presidente da República, Costa Gomes, para o seu lado.
 
DN – E a força dos «páras» era suficiente?
 
RN - Para sustentar esta subida da parada não bastava que o Ralis e a EPAM accionassem, como o fizeram, o seu dispositivo de defesa (ou ataque?) era necessário que os fuzileiros com a sua formidável força de 12 companhias operacionais entrassem na dança. Não entraram, como se sabe.
As forças militares que se opunham ao projecto do PCP e ao prosseguimento do processo revolucionário, lideradas pelo sector moderado do MFA, os "Nove", conseguiram, neste contexto, a adesão do Presidente Costa Gomes para o seu plano e assim dispor do importante factor legalidade traduzido no controlo da cadeia de comando militar oficial.
Reunidas estas condições, os "Nove", onde pontificavam Vasco Lourenço e Melo Antunes mas também figurava Canto e Castro, juntamente com os seus aliados, desencadearam a ofensiva para a qual há um certo tempo se vinham preparando. Este agrupamento de forças militares, que não respondia só, nem principalmente, à linha de comando oficial que tinha Vasco Lourenço logo abaixo do PR, desferiu um golpe decisivo que pôs fim à revolução e minou de caminho o poder do próprio sector moderado do MFA, os "Nove".
 
DN - Mas os «páras» saíram às ordens do PCP, da esquerda militar, ou por sua própria iniciativa?
 
RN — Sobre o assunto dos pára-quedistas podia-lhe dar uma excelente «caixa» porque, acompanhei ou participei em todos os acontecimentos decisivos da revolução, incluindo este — acontecimentos que, por vezes, mudavam a situação hora a hora ou minuto a minuto. Mas mesmo se vinte anos depois, é tempo para disponibilizar todos os elementos aos historiadores não quero desvendar alguns segredos que não são só meus.
 
DN – A Direcção do PCP e os militares seus aliados acharam que era necessário avançar, para uma acção de força, nesse momento, para evitar que fosse submergida mais tarde por um golpe de direita?
 
RN — Acharam que era necessário fazer qualquer coisa para inverter a crescente perda de posições políticas e militares institucionais. Tinham perdido o Governo, tinham perdido quase toda a força de que dispunham no Conselho da Revolução. Até o incerto mas importante Otelo, comandante do Copcon, tinha sido neutralizado e substituído por Vasco Lourenço no comando da Região Militar de Lisboa, dois dias antes do 25 de Novembro, pelas forças adversárias. Estou convencido que a saída dos pára-quedistas não foi uma acção que fizesse parte de um plano de operações político-militar amadurecido. Tal como o campo contrário, a ala do MFA próxima do PCP estava a organizar-se para uma eventual futura confrontação militar mas não tinha ainda um comando, sistema de forças e dispositivo consistentes.
 
DN— A influência do PCP nos quartéis da área de Lisboa era suficiente para determinar o avanço ou recuo de um processo militar como o do 25 de Novembro? Passava-se o mesmo com os pára-quedistas de Tancos?
 
RN — É uma pergunta a dirigir ao PCP. Como observador posso concluir que essa influência em 25 de Novembro, foi a que se viu. Tanto em Lisboa como em Tancos. Em minha opinião, a influência do PCP, medida pelo número de militares do quadro permanente que lhe eram afectos ou próximos era muito pequena no 25 de Abril mas cresceu sempre até, ao 25 de Novembro.
Já entre, os milicianos, o PCP tinha, em 25 de Abril de 1974, uma grande influência. O papel dos oficiais milicianos na preparação e eclosão do 25 de Abril e em toda a revolução, cuja história está por fazer, foi importante. Pela, sua influência ideológica junto dos oficiais do QP e como seus auxiliares no comando de tropas. Os oficiais milicianos também tiveram um importante papel na derrota do 11 de Março e, posteriormente, nas assembleias e outras estruturas do MFA.

«Uma derrota relativa»

DN— Em termos políticos, o saldo do 25 de Novembro foi uma vitória ou uma derrota do PC e da esquerda militar?

RN – O 25 de Novembro foi uma derrota para o PCP e para a esquerda militar. Em todo o caso, foi apenas uma derrota relativa — devido ao papel moderador de Costa Gomes, Melo Antunes, Vasco Lourenço e, nalguma medida, de Ramalho Eanes, também.
Foi uma derrota porque o 25 de Novembro impediu o prosseguimento da revolução no sentido do projecto de sociedade do PCP e que, à parte as particularidades nacionais, era na essência, igual ao da sociedade comunista de Leste. Derrota por que afastou o PCP do Governo e de um modo geral dos órgãos do poder de Estado, porque impediu a estabilização de conquistas da revolução já adquiridas, tais como a Reforma Agrária, as nacionalizações, etc.
Para o PCP, o 25 de Novembro também pode ser considerado uma vitória no sentido em que uma pessoa que parte uma perna tem imensa sorte por não ter partido as duas.
Assim, o 25 de Novembro representa uma vitória parcial porque o PCP não foi ilegalizado e pôde viver em democracia, numa democracia que, como se sabe, o comunismo nunca facultou aos seus adversários.

DN — No Verão de 75, tendo a esquerda revolucionária sofrido grandes derrotas, porque avança o PCP para a agudização das lutas sociais e militares?

RN — O PCP tentou com a agudização de todo o tipo de lutas, fomentando umas, dando cobertura ou não se demarcando de outras, compensar o seu crescente isolamento político, social e militar e conduzir a revolução por aí fora. Caso República, cerco da Assembleia da República, manifestação dos SUV (Soldados Unidos Venceremos!).
É necessário, para compreender a situação, não esquecer a rede bombista e a vaga de assaltos às sedes do PCP, do MDP de sindicatos e outras organizações de esquerda, no Verão quente, desencadeada pela extrema-direita. A 13 de Julho é assaltada e destruída a sede do PCP e da FSP em Rio Maior, a 16 assaltada a sede da Batalha, a 17 a do Cadaval, a 18 a da Lourinhã e assim até ao 25 de Novembro e depois.

DN — Tendo a revolução entrado em derrapagem e o PCP em perda de posições não deveria antes moderar a sua acção e aproximar-se do PS e do sector moderado do MFA?

RN — Uma particularidade do comunismo português na revolução do 25 de Abril, foi o PCP, muito cedo, pensar que podia dispensar o PS, na sua política de alianças. Para tanto utilizou a fórmula Aliança Povo-MFA em que o povo estaria suficientemente representado pelo PCP e o MDP ou, no Verão quente, em estado de desespero, também pelas outras organizações da FUR. Pareceu ao PCP que a aliança com a base social representada pelo PS poderia ser assegurada através do sector moderado do MFA complementada pela Intersindical.
O PCP reconhece, no plano teórico, no Verão de 75, a urgente necessidade de lutar pela unidade do MFA e de evitar a radicalização da luta que isole o PCP. É esse o resultado do debate havido na reunião do Comité Central em Alhandra, a 10 de Agosto, um dia depois da publicação do Documento dos Nove. Também o discurso de Vasco Gonçalves, em Almada, a l8 de Agosto, é apreciado de modo negativo. O PCP esperava desta intervenção uma tentativa de aproximação aos "Nove" e o que saiu foi radicalização.
Curiosamente a par desta análise teórica a intervenção prática do PCP não vai no sentido de travar a radicalização das lutas, umas por si organizadas, outras pelos sectores da esquerda mais radical, outras espontâneas.
 
A «unidade de pensamento»

DN — Houve no PCP uma luta entre moderados e radicais face ao ritmo do processo revolucionário? Muitos militares, então próximos do partido, e alguns ex-militantes dizem ter ela existido.

RN — Que eu conheça não. Havia — e provavelmente continua a haver — dirigentes mais radicais e outros mais moderados. Isso acontece em todas as formações partidárias, mesmo que não seja reconhecido. Mas a liderança incontestável de Álvaro Cunhal não dava abertura para um debate que pudesse pôr em causa a sua orientação – e em risco a tão desejada «unidade de pensamento».

DN — Que representa a FUR no contexto do Verão quente de 1975?

RN — A necessidade de ocultar o crescente isolamento político do PCP resultante da crescente radicalização da sua acção política.

DN — O comportamento do PCP teve por objectivo um regime de matriz soviética ou democrática do tipo ocidental?

RN — Logo a seguir ao 25 de Abril e até ao auto-afastamento de Spínola, a preocupação fundamental do PCP era a consolidação do regime democrático do tipo ocidental. Depois do 11 de Março o PCP orientou a sua luta para as conhecidas «grandes conquistas da revolução».
No entanto, em momento nenhum, o PCP esquecia que o objectivo último da luta era o socialismo. Isso mesmo fazia questão de constantemente lembrar, internamente, aos militantes. Havia a fase da revolução democrática e nacional e a fase da revolução socialista. Mas a passagem de uma a outra fase não era tanto um questão de meses ou anos mas de relação de forças.

DN — Até que ponto PCP acompanha as movimentações da área militar?


RN — Não só acompanha como intervém, no sentido de influenciar os acontecimentos militares. Os próprios acontecimentos militares do 25 de Novembro não aparecem como um acto isolado, mas de sucessivas acções da esquerda militar, dos “Nove” e da direita — no sentido de cada um ganhar posições, para o seu lado. E havia o claro entendimento de um provável choque militar.

DN – Pode dizer-se haver uma clara aliança entre a esquerda militar e o PCP?

RN – Pode dizer-se, com clareza, que a esquerda militar foi-se constituindo como a expressão da influência militar do PCP no MFA.

DN — Havia, portanto um relacionamento constante, entre a direcção do PCP e a da esquerda militar?

RN – A esquerda militar era o sector do MFA que estava mais próximo do projecto político do PCP e o que melhor podia defender as suas posições no plano político-militar.

DN – Otelo foi uma cartada mal jogada, no 25 de Novembro?

RN—Foi uma cartada que não foi possível controlar, apesar de haver esperanças e esforços no sentido de o aliar à esquerda militar. Como se sabe, houve um período em que dirigentes do PCP se deslocaram com alguma regularidade ao Copcon para troca de opiniões políticas — e que não tinham outro objectivo que não fosse poder aproximar Otelo da posição do PCP, com vista a uma unidade entre o sector do Copcon e a esquerda militar.

DN — Quando foi compreendido por parte do PCP, que essa unidade não era possível?

RN — O 25 de Novembro comprovou, definitivamente, que o PCP não podia contar com Otelo Saraiva de Carvalho.

DN – O PCP tinha uma significativa influência, entre os graduados do corpo de pára-quedistas de Tancos?

RN – Tinha, sobretudo, uma grande influência entre os sargentos «páras». Foram públicas várias sessões de esclarecimento para sargentos da Força Aérea — que incluía, em especial, sargentos pára-quedistas – num cinema da região.

DN — Seria normal que militantes do PCP, sobretudo sendo militares, tomassem decisões de grande importância, no campo da acção, sem aviso ou consulta ao partido?

RN — Não era normal — mas, por vezes, sucedia.

DN—E no caso da saída dos «páras» de Tancos?

RN — O partido teve informação da movimentação dos «páras», ante destes terem saído.

DN — O «trabalho militar» do PCP constituía uma área de actuação privilegiada?

RN — A actividade e a atenção do PCP às Forças Armadas é uma orientação muito antiga. Seria de uma grande irresponsabilidade e negaria a natureza revolucionária do PCP se, numa revolução como a do 25 de Abril, não prestasse a maior das atenções aos militares.

DN— Quando, logo a seguir ao 25 de Abril, António Spínola não consegue um apoio claro dos militares do MFA, no final do plenário da Manutenção Militar (que precedeu a crise Palma Carlos) que análise fez o PCP?

RN — Considerou ser urgente a coordenadora do MFA se auto-institucionalizar e traduzir assim no plano institucional, o seu papel de verdadeiro autor do 25 de Abril.
Sabia-se que o «imparável» movimento popular antifascista, liderado pelo PCP não deixaria de influir muito o MFA, ou parte dele, no sentido da revolução.

O PCP e as eleições

DN — Houve debate Interno e divergências, no PC, sobre a realização de eleições para a Constituinte?

RN — A realização de eleições livres era um dos principais pontos do programa do PCP na clandestinidade — estávamos no fascismo, não no comunismo! Após o 25 de Abril, as eleições para a Constituinte era um objectivo a conquistar tanto mais importante quanto Spínola preferia um referendo que lhe conferisse poderes mais ou menos ditatoriais. Num encontro, em que participei, de uma delegação do PCP com elementos do MFA, suponho que em 1974, foi informalmente colocada a questão. Vasco Gonçalves que estava presente, respondeu que a data era um compromisso inalienável do MFA. Mais tarde, e em especial após o 11 de Março, surgiram dúvidas sobre a bondade de tal acto, a tão curto prazo. Mas foi assunto discutido à puridade.
No PCP, os resultados eleitorais das primeiras eleições livres, em 25 de Abril de 1975, eram aguardados ora com receio, porque comunismo e eleições eram coisas que nunca ligaram bem, ora com esperança. Neste caso, assente nos comícios sempre maiores do que os de qualquer outro partido, nas sondagens obtidas pelos camaradas em conversas de autocarro — ou, até, porque a gratidão do povo, de cuja representação julgávamos ter monopólio, não nos faltaria nesse momento.
As primeiras eleições, ao darem 12,5 por cento dos votos ao PCP e quase 38 por cento ao PS, revelaram um quadro de opções dos Portugueses completamente diferente do que era dado pelas mobilizações populares e foram um factor decisivo para a derrota a prazo do projecto do PCP.

2005/11/08

A gripe das aves




Como surpreende, melhor dizendo, maravilha, a diversidade do entendimento humano sobre a mesma realidade que a todos cerca. Não a existência de tal diversidade que a idade, seguindo-se à escola, a todos mostra. Mas a sua álacre manifestação em nossa presença.

Era para combinar um almoço mas a conversa resvalou para o pavor. Se acho que devemos tomar medidas desde já? mas que medidas? Pois... mas... o caso é que assim alguém da família vai morrer... de acordo com as estatísticas. Tentativas bem dirigidas para desviar. Então sempre é verdade que o Martinho já está mesmo separado da Sofia? E a Célia, a Célia! disse-me a Joana que vai mesmo abortar a Badajoz. Consegui. Consegui livrar-me da Teresa, do pânico, das aves, da gripe e sem dar fôlego, fingi que tinha acabado e pim na tecla vermelha.
Meia hora depois. Metropolitano. Linha azul. Sete e meia da tarde. Cada um consigo mesmo e aquelas duas, descuidadas ou sem cerimónia, a fazerem-se ouvir. Oh, oh, oh, então vou lá agora ligar a isso! Ora, ora, essa é boa! se se quisessem preocupar com epidemias preocupavam-se com a droga e com o álcool. Vê lá se falam em vacinas para isso! Mas... mas... Qual mas, oh oh, quais aves! quais gripe! vou lá agora acreditar nisso. Fizeram mas foi alguma vacina que não se vende e agora querem que a gente vá a correr comprá-la. Ná, ná, eu cá não, eu não...

Se isto é assim com as aves... com as aves... com as aves... que admiração uns serem pelo Soares e outros pelo Manel.

2005/11/01

O terramoto de Lisboa (3)

As Igrejas

"...ARRUINOU e destruiu o terramoto e incêndio a melhor parte da populosa cidade de Lisboa. O terreno destruído pelo fogo ocupou mais de uma légua de circunferência, pelo círculo que se descreve. Principiando da Igreja de São Paulo, decorreu por uma grande parte da marinha: desde esta igreja vem o círculo pelos Remolares, Corte-Real, Ribeira das Naus, Terreiro do Paço, Ribeira da Cidade, Cais de Santarém até ao Chafariz d’el-Rei; daqui sobe ...

Nesta circunferência destruiu o fogo inteiramente os bairros chamados da Ribeira, da Rua Nova e do Rossio, e grande parte dos bairros dos Remolares do Bairro Alto, do Limoeiro e de Alfama, que eram os mais ricos populosos dos doze em que então se dividia a cidade.

Nesta grande parte de Lisboa consumida pelo fogo foram compreendidas inteiramente a santa Igreja Patriarca e as freguesias da Basílica de Santa Maria (antiga catedral de Lisboa), de Santa Maria Madalena, de Nossa Senhora da Conceição, de São Julião, de Nossa Senhora dos Mártires, do Sacramento...

Neste recinto ficaram reduzidos a cinzas os sumptuosos conventos da Santíssima Trindade, de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de São Francisco, de Nossa Senhora do Rosário dos Irlandeses, do Espírito Santo, de Nossa Senhora da Boa-Hora, de Corpus Christi, de São Domingos e de Santo Elói, com as suas majestosas e bem ornadas igrejas...

...se queimou a sumptuosa Igreja de Santo António edificada na antiga casa, em que o mesmo santo nasceu, com a magnífica e bela casa que antes da divisão da cidade servia para as conferências do Senado da Câmara; e na mesma igreja muita e bem lavrada prata, e ricos ornamentos, de que se achava enriquecida. ... havendo o fogo na igreja sido tão violento que derreteu toda a prata, bronze e outros metais, que nela achou". [o relato prossegue com o registo de muitas dezenas de igrejas destruidas]

E os palácios

"...Os palácios queimados foram: o Paço Real da Ribeira que, sendo principiado pelo senhor rei D. Manuel e continuado sumptuosamente por Filipe II, se havia depois acres centado com dilatadas e formosíssimas galerias de soberba arquitectura, e ultimamente com a real Casa da Opera, obra admirável; o Palácio de Corte-Real (que já havia padecido o incêndio que fica dito no tomo XII, a fol. 64), com o tribunal da Casa do Infantado; os palácios dos duques de Bragança (que servia de Tesouro), de Lafões, de Aveiro, de Cadaval; dos marqueses de Valença, de Marialva, de Angeja, de Fronteira e de Cascais... [a lista continua com muitos mais palácios]

Padeceram a mesma desgraça os edifícios de Alfândega Real, Casa da India, Vedoria, Consulado, Contos do Reino, Sete Casas, Terreiro do Pão, Ribeira das Naus e armazém dela, Casa do Tesouro, ao Arco da Consolação...

e os tribunais do Desembargo do Paço, Junta dos Três Estados, Conselho da Fazenda, Conselho Ultramarino, Mesa da Consciência, Casa de Bragança, Contadoria-Geral de Guerra, Tenência, armazéns com as suas grandes secretarias, e as de Estado do Reino, Guerra e da Marinha, cujos tribunais estavam no recinto do Paço, nos quais se perderam cartórios numerosíssimos livros e papéis, com grande detrimento da fazenda real e da dos particulares... "

E as preciosidades

ENTRE as muitas preciosidades que o fogo consumiu, foi muito sensível aos eruditos a perda de muitas e numerosas livrarias. Tem o primeiro lugar a biblioteca real que era numerosíssima e selecta: o senhor rei D. João V a tinha aumentado com grande número de livros modernos, e todos os antigos que se descobriram pela Europa; e uma grande cópia de manuscritos, assim originais como cópias bem escritas, tudo efeitos da sua sabedoria e magnificência.
A do marquês de Louriçal enchia e ornava quatro grandes casas, e era selecta em livros raros e excelentes manuscritos. Tinha sido formada pelos sábios condes da Ericeira, e ultimamente aumentada pelo conde D. Francisco Xavier de Meneses, cuja erudição ainda hoje admira, não só Portugal, mas toda a Europa.
A biblioteca do Convento de São Domingos estava em duas grandes casas e tinha muitos livros raros e grande número de manuscritos, que para ela deixou o erudito beneficiado Francisco Leitão Ferreira. Foi obra do padre frei Manuel Guilherme, que a constituiu pública com assistência de dois bibliotecários e renda grande para o seu aumento.
Na Casa do Espírito Santo havia uma grande e selecta livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a maior colecção de livros que tratavam de Maria Santíssima obra do padre Domingos Pereira.
Ficaram também reduzidas a cinzas as excelentes e antigas livrarias dos conventos do Carmo, São Francisco, Trindade e Boa-Hora. Tiveram o mesmo sucesso todas as dos palácios que arderam, em que havia algumas muito estimáveis.
As particulares foram muitas, e entre estas era muito preciosa a do inquisidor José Silvério Lobo por numerosa e selecta. Em cinco casas de mercadores de livros franceses, espanhóis e italianos, e vinte e cinco lojas e casas de livreiros portugueses, se consumiram grandes livrarias...

[Extractos de "Memórias das Principais Providências"... de Amador Patrício de Lisboa, 1758]

O terramoto de Lisboa (2)

Continuação do post anterior "O terramoto de Lisboa".

"Continuaram os tremores de horas a horas com menos violência, mas com igual horror, temendo-se que a terra se abrisse com a veemência de tantos abalos. Comunicado o fogo ao castelo correu uma voz que se retirassem todos dos subúrbios da cidade, pelo perigo de pegar à pólvora que ali se achava, e matar os que tinham escapado ao terramoto. Com este susto fugiram quase todos para fora da cidade aquela noite, para uma ou mais léguas.

"Atribuíram-se depois estas vozes a alguns homens malvados, que quiseram ver a cidade desamparada para roubarem o mais precioso que havia nas casas. Causou este boato uma grande ruína, porque, podendo-se em algumas partes atalhar o fogo correu este livremente, destruindo tudo quanto o terramoto havia perdoado, achando-se uma grande parte dos moradores de tão populosa cidade com as suas casas inteiramente consumidas, sem delas poderem salvar mais coisa alguma que suas pessoas.

As religiosas, abertas as clausuras pelo temor das ruínas, que experimentaram os seus mosteiros, procuravam, divididas, ou os ou os campos para o refúgio. Algumas, refugiadas nas cercas dos seus conventos, esperaram clausuradas a misericórdia de Deus. Vagavam por as ruínas os sacerdotes, tanto regulares como seculares, absolvendo a uns, agonizando a outros.

O senhor rei D. José e toda a real família se achavam em uma das reais casas de campo de Belém (excepto o senhor infante D. Manuel que habitava o real Palácio das Necessidades), que não tiveram ruína, e saíram para o campo, onde se formaram grandes barracas de campanha, em que viveram alguns meses, enquanto se não fez o Palácio da Ajuda fabricado de madeiras, que depois ardeu em 10 de Novembro de 1774,. onde em seu lugar se fez o grandioso palácio que ainda não está concluído. O senhor infante D. António mandou fazer na real Quinta da Tapada de Alcântara duas barracas de madeira, como diremos quando tratarmos da sua morte.

Passada a primeira noite em fervorosos clamores e continuados sustos, cresceu a aflição em todos, experimentando a falta dos cabedais, que perdiam, e cuidadosos dos parentes, que lhes faltavam; dispersas a maior parte das famílias, choravam uns a falta dos outros.

Continuava o fogo a devorar aquelas coisas, que o terramoto não havia prostrado; e os ladrões, sem temor de Deus, e dos seus castigos, à vista deles entravam pelas casas e delas tiravam os cofres de dinheiro, as jóias e a roupa. Muitas famílias, cujas habitações não arruinou o terramoto, nem destruiu o fogo, ficaram pobres pelos roubos: atribuíram-se estes a muitos forçados das galés, e criminosos, que então saíram das prisões"...

2005/10/31

O terramoto de Lisboa





Amador Patrício de Lisboa, ou (de seu verdadeiro nome) Francisco José Freire, ou Cândido Lusitano, como era conhecido entre os poetas, "ofereceu à magestade fidelíssima de el-rei D. José I, nosso senhor", em 1758 "as Memórias das Principais Providências que padeceu a corte de Lisboa no ano de 1755" e sete décadas depois, frei Cláudio da Conceição, cronista-mor do reino transcreve uma parte da obra e dedica-a ao rei D. Miguel I. (In "Notícias do Terramoto", de Cláudio da Conceição. Editora Frenesi)


"SENDO este terramoto tão estrondoso, e tão memorável, eu devo dar dele aqui alguma notícia, apesar de se haver escrito sobre ele com tanta difusão que, só na livraria da real Casa das Necessidades, se acha uma colecção de doze volumes em quarto; segundo as notícias desse tempo, assim o escrevo.

Amanheceu o dia, em que a Igreja celebrava a festa de Todos-os-Santos, que era em um sábado, sereno, o sol claro e o céu sem nuvem alguma. Pouco depois das nove horas e meia da manhã, estando o barómetro em vinte e sete polegadas e sete linhas, e o termómetro de Reaumur em catorze graus acima do gelo, correndo um pequeno vento nordeste, começou a terra a abalar com pulsação do centro para a superfície; e, aumentando o impulso, continuou a tremer, formando um balanço para os lados do norte a sul com estragos dos edifícios, que ao segundo minuto de duração começaram a cair, ou a arruinar-se, não podendo os maiores resistir aos veementes movimentos da terra, e à sua continuação. Duraram estes, segundo as mais reguladas opiniões, seis para sete minutos fazendo neste espaço de tempo dois breves intervalos de remissão este grande terramoto.

Em todo este tempo se ouviu um estrondo subterrâneo por modo de trovão, quando soa ao longe. Escureceu-se algum tanto a luz do sol, sem dúvida pela multiplicação de vapores, que lançava a terra, cujas sulfúreas exalações muitos perceberam. Foram vistas em várias partes fendas na terra de bastante extensão, mas de pouca largura. A poeira , que causou a ruína dos edifícios, cobriu o ambiente da cidade com uma cerração tão forte que parecia querer sufocar todos os viventes.

A estes impulsos da terra se retirou o mar, deixando nas suas margens ver o fundo às suas águas, nunca dantes visto; e encapelando-se estas em altíssimos montes, se arrojaram pouco depois sobre todas as povoações marítimas, com tanto ímpeto que parecia quererem submergi-las, estendendo os seus limites. Três irrupções maiores, além de outras menores, fez o mar contra a terra, destruindo muitos edifícios e levando muitas pessoas envoltas nas suas águas.

Como era dia solene, estavam as igrejas cheias de gente ficando imensa debaixo de suas ruínas logo que as abóbadas e paredes destas se desfizeram, e caíram. Os que estavam ainda em casa e transitavam as ruas, igualmente uma grande parte foi vítima da mesma calamidade. Os gritos, alaridos, clamores ao Céu pedindo misericórdia, sucedendo-se uns aos outros, tudo consternava e movia a lágrimas. Nem os pais buscavam os filhos, nem esposas os consortes, nem os mesmos bens terrenos eram objecto do amor de seus proprietários; ninguém cuidava senão em salvar a vida, e pedir a Deus a salvação de suas almas.

Tinha muita gente buscado as margens do Tejo para se livrarem dos edifícios, temendo as suas ruínas: porém, entrando o mar pela barra com uma furiosa inundação de águas, fizeram o mais lamentável estrago, passando os seus antigos limites; e, lançando-se por cima de muitos edifícios fez aumentar o horror com a voz vaga que por toda a cidade se espalhou, que o mar crescia.

Logo depois do terramoto, primeiro se começou a ver arder o palácio do marquês de Louriçal, a igreja de São Domingos, o Recolhimento do Castelo, e outros edifícios, em que as luzes, ou fogões das casas, tinham comunicado o fogo aos madeiramentos. Isto, que aumentou as desgraças, fez multiplicar o susto. Jaziam pelas casas muitos doentes que, não podendo fugir, foram vítimas, e consumidos pelo fogo. Viu-se um religioso do Carmo calçado posto em uma janela muito alta, de onde não podia sair para dentro, nem para fora, pedir a absolvição a um sacerdote que passava de longe, e esperar resignado o fogo, que o consumiu.

Continuaram os tremores de horas a horas com menos violência, mas com igual horror, temendo-se que a terra se abrisse com a veemência de tantos abalos. Comunicado o fogo ao castelo correu uma voz que se retirassem todos dos subúrbios da cidade, pelo perigo de pegar à pólvora que ali se achava, e matar os que tinham escapado ao terramoto. Com este susto fugiram quase todos para fora da cidade aquela noite, para uma ou mais léguas. "

Principais sismos, em Lisboa, desde o séc XIV



data, intensidade (MM) náxima em Lisboa e descrição dos danos.
Fonte. Prof Carlos S. Oliveira in Revista da Protecção Civil, Set. 1988

Sebastião de Carvalho e Melo


Quando todos fugiram, Rei (recusou-se a voltar a Lisboa), corte, nobreza, clero, povo, o ministro de D. José I, futuro conde de Oeiras e futuro marquês de Pombal, estabeleceu quartel-general numa tenda no centro da zona arruinada e começou a "tratar dos vivos e enterrar os mortos".

Convento do Carmo



As ruínas ficaram como memória.

2005/10/17

Portugal em vias de perder a colecção Berardo

O celeiro 1994 Paula Rego
Por burocracia, sonolência governamental, inépcia, filosofia de deixa andar e logo se vê, a importante colecção de arte que Joe Berardo tem vindo a adquirir está em vias de ir parar a França.

Portugal não consegue (desde há cinco anos!) arranjar um local para ela. A França que não é parva já lhe ofereceu duas soluções e as insígnias de Chevalier de la Légion d'Honneur (ver post no puxapalavra)

Na colecção Berardo há muitos exemplares da pintura portuguesa do século XX alguns dos quais se podem ver abaixo.
Nadir Afonso

Maria José Aguiar-Colecção Berardo

Nasceu em Barcelos em 1948. Curso de Pintura pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, onde leccionou. Em 1987 recebeu o 3º Prémio Amadeo de Souza Cardoso, Casa de Serralves, Porto.

Luís Noronha da Costa

Nasceu em Lisboa em 1942. Licenciou-se em arquitectura e repartiu a sua criatividade e experimentação pela pintura e o cinema. Teve a sua primeira exposição individual na Galeria Quadrante em Lisboa nos anos 60, e expôs em muitos países da Europa e no Brasil.

��Robert Delaunay

helena almeida
fernando calhau

Carlos Calvet na Colecção Berardo

Carlos Calvet N:1928 em Lisboa.


Exposições colectivas no estrangeiro – (selecção): 1967 Bienal de S. Paulo, Bienal de Tóquio, 1970 Twenty Artists from Portugal, The Hudsun River Museum, USA, 1976 Arte Portoghese Contemporanea, Roma, 1984 “Surréalisme péripherique, Montréal. Exposições colectivas em Portugal (selecção): 1947-53 Gerais de Artes Plásticas 1949 Surrealistas, 1957 e 1961 Fundação Gulbenkian, 1972 Expo AICA, SNBA, 1982 História Trágico Marítima, SNBA, Lisboa.

Amadeu Sousa Cardoso-Colecção Berardo

Álvaro Lapa- Colecção Berardo


Pintor, poeta, e escritor, nasceu em Évora em 1939 e vive no Porto. Em 1956-60 frequenta a Faculdade de Direito e a de Letras, em Lisboa. Em 1962 começa a pintar e a dar aulas no ensino técnico, vindo a ser expulso da função pública, e só é reintegrado em 1976. Em 1962 conhece Areal. Expõe pela primeira vez em 1964... Em 1977 publica o livro “Raso como o chão”. Pintura e escrita são indissociáveis no trabalho de Lapa... Trabalho introspectivo e de conhecimento, a sua pintura é um território onde se cruzam diferentes domínios de criação – o filosófico, o literário, o político. Álvaro Lapa tem também importante trabalho na área da teoria estética, da poesia e da literatura, domínios que se cruzam frequentemente. Aliás, produziu uma série de Cadernos dedicados a 18 escritores, entre os quais se encontram Rimbaud, Miller, Michaux, e William Burroughs. [aqui]

Alberto Carneiro-Colecção Berardo

Escultor nasceu em 1937, em S. Mamede de Coronado. De 1947 a 1958 trabalhou nas oficinas de arte religiosa da sua terra natal, onde se iniciou nas tecnologias da madeira, da pedra e do marfim. Licenciou-se em Escultura na Escola Superior de Belas Artes do Porto e pós-graduou-se na Saint Martin’s School of Art de Londres. O corpo, a vida e a natureza sempre foram as referências primeiras e essenciais - as grandes linhas conceptuais do trabalho deste artista, fortemente ligado a uma espiritualidade oriental que dá sentido à sua obra.
Nos anos 80, retoma o trabalho sobre madeiras preciosas (buxo, cedro). Mântrica (1987-88) apresenta pontos de contacto com as mais antigas criações de Carneiro. Mântrica, é, também ela, um exercício místico, na tentativa constante de “se reencontrar nas raízes de si mesmo”.
Tem organizado, participado e dirigido cursos, debates e seminários sobre dinâmica corporal, sobre arte e sobre pedagogia. Foi professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. [Link]

2005/09/13

Águas Silenciosas


Um belíssimo filme que não tem tido a promoção que merece. Ainda está aí. Agora no Quarteto em Lisboa.
A ficha técnica:
Título original: Khamosh Pani.
Título em Portugal: Águas Silenciosas
Coprodução: Paquistão, França e Alemanha. 2003
Realização: Sabiha Sumar. Paquistanesa de Karachi.
Intérpretes: Kirron Kher (a mãe), Aamir Ali Malik ( o filho Saleem), Arsad Mahmud, Salman Shahid
Cinco prémios, em 2003, no Festival de Locarno, incluindo o Leopardo de Ouro para o melhor filme.
Estreia em Portugal: 18 de Agosto de 2005 (com 2 anos de atraso).

Ayesha é viuva, vive em Charkhi, uma aldeia do Punjab paquistanês, é muçulmana. Ganha algum dinheiro a ensinar o Corão a meninas da aldeia. Mas ela que pertenceu à comunidade de religião Sik ensina um Corão de amor a todos os homens e... a todas as mulheres.
Vive feliz, para o filho de 18 anos que procura ajudar a encaminhar-se na vida. Feliz tanto quanto o permitem os fantasmas do passado, as tenebrosas e ondulantes sombras da água funda do poço da aldeia, onde a mãe e irmãs foram afogadas para prevenir eventual desonra do pai e dos irmãos.
São histórias do passado, de 1947, quando a Inglaterra se vê obrigada a largar o império da India. A maioria muçulmana que habita o Paquistão, a Ocidente e a zona oriental que viria depois dar origem ao Bangladesh, contrariando os propósitos de Gandhi, separa-se da India com o agrado ou apoio da velha Albion.
Esta separação religiosa deu origem a milhões de deslocados de indus e siks para a India e de muçulmanos para o Paquistão. E a guerras e a disputas. Até hoje. Mais de meio milhão de mortos pelo meio.
Naquela aldeia a comunidade de religião Sik abandonou a sua terra que agora pertencia a um novo país chamado Paquistão para glória de Alá. Os siks abandonaram a sua terra mas antes que ela fosse ocupada pelos fiéis de Maomé e pudessem abusar das suas mulheres obrigaram estas, esposas e filhas a suicidarem-se atirando-se ao poço da aldeia. O odioso fanatismo sik à altura do odioso fanatismo muçulmano. Não estava lá o odioso fanatismo católico de antanho nem o mais actual das seitas evangélicas extremistas que apoiam (e se servem) de Bush.
Ayesha não consegue atirar-se ao poço. Ama a vida e não se submete. Perseguida pelos irmãos, pelo pai pelos siks ciosos da sua enorme honra de machos consegue fugir. Integra-se na sociedade muçulmana. Uma muçulmana multicultural, como hoje diríamos, que já sofreu e aprendeu muito para se submeter a ódios fanáticos.
O filho não tem emprego e está num momento instável da sua vida sem saber que rumo lhe dar, tão minguadas são as perspectivas. Apaixona-se por Zubeida que tem planos de estudos universitários que o ama e com ele quer casar.
Estão em 1979 (é essa a data dos acontecimentos) incomparavelmente mais livres que hoje no Afeganistão. Encontram-se a sós, trocam olhares com ternura, acaríciam-se as mãos, beijam-se, sonham sonhos de amor.
É então que chega à aldeia dois jovens clérigos fervorosos catequisadores que querem pôr a vida dos aldeões nos eixos. De acordo com o Corão, com a charia, de acordo com o poder delegado

 

pela Mesquita fundamentalista e pelo ditador Zia Ul Haq. Infiltram de intolerância e medo o quotidiano pacífico da aldeia, ameaçam e aliciam.
Saleem deixa-se ir. Afinal talvez tenha um futuro! Importante. Seguro. E talvez até poder. Quiçá pequeno ou não? E, paulatinamente, o que era amor e claridade o fundamentalismo islâmico vai transformando em ódio e trevas.

O general Ziha Ul Haq tomou o poder com um golpe militar há pouco mais de um ano e quer fortalecê-lo. Para isso conta com o clero da Mesquita, com a Idade Média, com a repressão em nome de Alá. Começou por mandar enforcar o 1º ministro Ali Bhutto e encetou uma reforçada islamização do Paquistão com o apoio entusiástico dos Estados Unidos.

Como que por ironia mandava então, o depois nobelizado, Presidente Jimmy Carter. Embaixador da paz chegado à reforma.
É que estava na mira o Afeganistão invadido pelos soviéticos que socorriam o Governo pró comunista ameaçado pelos EUA, Arábia Saudita e agora com maior empenho pelo Paquistão.
Criaram-se milhares de madrassas - escolas corânicas e de ódio. De ódio ao comunismo, de ódio ao Ocidente, de ódio às mulheres. Às suas mães, às suas irmãs, que desprezam e escravizam. Escolas de terrorismo. Ali se formou o exército dos Talibans, ali se organizou e treinou a Al Khaeda, ali se lavou o cérebro a dezenas de milhar de jovens sem trabalho, nem perspectivas, com o fanatismo religioso e as técnicas modernas do terror.
Especialistas norte-americanos, serviços secretos e exército do Paquistão, petrodólares da familia Saud que tem um país como sua quinta.
Exércitos de terroristas ao serviço do "Bem". O "Bem" segundo os cânones fundamentalistas do Islão Wahabista e conjunturalmente um "Bem" do Ocidente.
Primeiro no Afeganistão, depois ali ao lado na Cachemira disputada à India, na Tchechénia e Ásia Central, então ainda soviética, depois na Jugoslávia, na Bósnia e depois... já sem teatros de guerra e abandonados pelos Estados Unidos, em Nova York, nas Twin Towers, em Washington no Pentágono, e na Indonésia, e na Turquia, e na Arábia Saudita, por considerarem estes países ao serviço dos EUA, e num teatro de Moscovo, e numa escola de Beslam, que pertencem ao reino do diabo, nos comboios de Madrid, no metropolitano de Londres e o que falta vir.

Mas o filme não toca no contesto político nem em política, (como eu, ad contrario, faço aqui) salvo na recém chegada ao poder do ditador Zia Ul Haq.
E esse é um segredo que torna bom o filme. Não porque a ignorância acrescente algo, ciência ou arte, mas porque oferece a todos, de esquerda ou de direita, do centro ou agoniados com a política, acompanhar sem o campo de obstáculos dos preconceitos ideológicos, com a cabeça e o coração livre, o drama duma família (e duma aldeia e de um país!) o destroçar do amor, da fraternidade, da sanidade moral e intelectual de pessoas que começamos a amar.
Há que ir ver o filme. As salas estão vazias. Pode-se escolher o lugar. Antes que se vá.

2005/09/09

Fernando Botero

Nasceu em 1932, em Medelim, Colômbia e é um dos mais famosos artistas plásticos vivos.
Desde muito cedo começou a pintar e a expôr mesmo sem formação académica. Aos 20 anos estuda arte em Madrid que continua em Florença depois de passagem por Paris e vários centros artísiticos italianos onde se entusiasma pelos pintores renascentistas. Alguns dos seus quadros célebres são, como os quadros que a seguir se apresentam, réplicas de pinturas dos grandes mestres que admirava, Leonardo da Vinci com a Gioconda ou Piero della Francesca



mais tarde, em meados de cinquenta, estuda Rivera e Orosco no México e em seguida os modernos norte-americanos.
O seu estilo volumoso, homens rechonchudos, mulheres anafadas, animais e até naturezas mortas gordas, nasce nos anos 60 e torna-se desde então a sua marca distintiva.












2005/08/12

Olá Paulo!

Eh pá! li o teu artigo, ontem no Público, sobre "os incêndios do regime" ou sobre "a piolheira" como diria D. Carlos . Vou pô-lo ali para quem quiser ler . Que não perdem o tempo.
Então como é que vais aí em Podentes com essa cinza toda no teclado?
Fugiste da cidade, ao que dizes. Realmente há muito que não te via. Nem no Cristóvão de Moura!
Faxavor tira da cabeça essa ideia de emigrar. O país precisa é de mais Varela Gomes e não de menos. Gente rija. De boa cepa. De carácter.
Um abraço ao pai João, à mãe Gena, à Geninha e à tua irmã mais nova. Não me lembro do nome dela. Fui ao livro, ao "Tempo de Resistência" onde o teu pai fala das 750 cartas escritas à família nos sete anos em que o fascismo o encarcerou por ser um homem honrado e valente. Mas o teu pai só tratava a filha mais nova, ainda muito novinha, por Chuchu... pronto um abraço para a Chuchu.
Ah o livro é de leitura obrigatória (este e os outros que escreveu) para quem quiser conhecer o país que é o nosso e um grande Homem. [Tempo de Resistência, Varela Gomes - Ler, editora -Lisboa 1980.]

2005/08/06

Hiroshima - foi há 60 anos


8 e 15 minutos da manhã. A cidade já trabalhava. "Os comerciantes já tinham aberto as lojas, os estudantes estavam nas salas de aula, os escritórios e as fábricas funcionavam". A cidade, um tanto longe da guerra sentia-se um pouco mais segura do que outras por não ter valor militar.

Na Casa Branca, em Washington, o presidente Truman não partilhava as preocupações humanistas do seu antecessor Roosewelt e não pensava bem assim. Considerou que 343 mil pessoas, se mortas de uma só vez, poderiam constituir um muito aceitável objectivo militar.

Podia-se até adocicar um pouco as coisas. O avião B29 que faria "o trabalho" seria baptizado ternamente com o nome da mãe do piloto, Enola Gay e a bomba podia ter um nome carinhoso "Little Boy".

Às 8 e 15 da manhã um relâmpago entre branco e azul iluminou a cidade mais que o Sol e 5,5 milhões de graus Celsius levantaram um cogumelo róseo que cercou o céu e a cidade. Num raio de 500 metros ficou quase tudo reduzido a pó. 10 mil pessoas foram evaporadas mas de algumas ficou uma "sombra". À sua volta as pedras ficaram mais queimadas e escuras e desenharam assim a última posição no último momento das suas vidas.

Morreram cerca de 300 mil pessoas das quais 80 mil na primeira hora. Muitos milhares foram morrendo lentamente ao longo de muitos anos, com as radiações.

Washington desculpou-se com a poupança de sangue de militares americanos ao acelerar, assim, o fim da guerra. Outros acham que a guerra já estava decidida e fora uma forma de intimidar a URSS cujos exércitos levavam de vencida o grosso das tropas japoneses, destacadas na Manchúria.

Civis, longe dos combates, cidade sem valor militar, muitos não hesitaram em chamar a Hiroshima e a Nagasaqui (3 dias depois) o maior acto de terrorismo da história.
Washington achou que valeu a pena. Hiroshima e Nagasaqui não pensam assim e comemoram todos os anos a data do crime e exigem o fim das armas nucleares.

2005/07/16

Cunhal visto por Urbano

Urbano Tavares Rodrigues, "provavelmente o melhor amigo de Álvaro Cunhal" ofereceu-nos, na entrevista que deu a Judite de Sousa, na RTP, em 2005-07-13, não o Cunhal que todos conhecemos mas talvez o que ele - ilustre intelectual comunista não sectário - gostaria que Cunhal tivesse sido.

Urbano diz-nos que Álvaro Cunhal conhecia as chagas do socialismo real e que tinha para o socialismo que ambicionava para Portugal concepções muito diferentes, nomeadamente com democracia e pluralismo partidário. Questionado por Judite de Sousa explicou que nunca denunciou tais falências para não dar armas ao imperialismo.

Oh Urbano! (Intelectual, cidadão e amigo que muito admiro e estimo) isso eram coisas que Cunhal dizia mas... repetir isso não será diminuir o revolucionário? Aquele Cunhal de raízes bem assentes nos anos trinta, quarenta e sessenta do século passado? É pelo menos uma versão social-democratizante do Grande Cunhal e um labéu (no interior do partido de Jerónimo de Sousa) que praticamenmte o atiraria para o rol das "folhas secas".

Sugestionado pela amizade que o unia a Cunhal, Urbano Tavares Rodrigues conta-nos que Cunhal apoiou a Perestroica de Gorbatchev e que desta só condenou o rumo que, no final, este lhe deu?
Cunhal até podia dizer isso. Mas só para consumo externo. No entanto - oh meu querido amigo Urbano! - vistas as coisas com olhos que habitaram a Soeiro Pereira Gomes, nada mais longe da realidade!

Assisti dia a dia, durante os quatro anos que a Perestroica durou, às reacções de Cunhal e dos outros velhos (e novos!) dirigentes do PCP. Cunhal e a grande maioria daqueles continuavam, por necessidade a incensar a União Sóviética, a grande rectaguarda, mas tiveram relativamente à Perestroica sempre as maiores reservas e antipatia. Uma antipatia à flor da pele, reacção típica a um corpo estranho, seguida depois por uma crescente ainda que reservada condenação, muito antes ainda de se adivinhar a queda de Gorbatchov e o fim da União Soviética.

Outra coisa não seria de esperar. Nem é justo negar-lhes o "feeling", a clara percepção de velhos e experientes "revolucionários bolcheviques" de que aquilo ia desfigurar, senão acabar com o verdadeiro, o único, socialismo real existente, questionar a prática do PCP, pôr em causa a cartilha marxista-leninista, bíblia do partido e principalmente "retirar o tapete" à direcção do PCP, com Cunhal à cabeça, à semelhança do que sucedeu com todos os líderes comunistas que não se reciclaram imediatamente a seguir ao 20º Congresso do PCUS que denunciou o estalinismo.

Podemos anuir em que Cunhal e a direcção do PCP aceitaram a Perestroica nos seus primeiros (muito iniciais) momentos na estrita medida em que admitiam que ela não passava de mais uma operação de cosmética. Para mobilizar as massas. Mas muito cedo todos perceberam que a Perestroica não era, afinal, cosmética e que iria mudar "aquele socialismo".

Até 1989 ninguém admitia, nem os "sovietólogos", nem a CIA, nem mesmo Vasco Pulido Valente, com a excepção talvez do KGB, que aquilo ia dar no que deu. Cunhal e o PCP eram esclarecidos adeptos de um socialismo de rosto humano para Portugal. Não tanto por sensibilidade ou natural simpatia mas por óbvia estratégia. Se fosse possível!!! Assim como aquele pai portuga dizia ao filho que, no século passado, apertado pela miséria se via obrigado a emigrar para as Américas: filho vai. Vai e enriquece. Honestamente! Se possível.

2005/07/12

Alcatruzes...



Alcatruzes em descanso é o título desta fotografia em Click Portugal um blog que oferece Portugal em fotografias, de Platero um visitante e comentarista do Puxa Palavra.
Conheci estas armadilhas (que são armadilhas! Os polvos que o digam) na praia de Olhos de Água, no Algarve, no fim da década de 70.
O meu amigo Leonel, pescador, político e lídimo representante da sua classe, levou-me por gentileza, no barco àquele colar de brancas pérolas que pontuavam o mar, lá longe, numa extensão de um quilómetro.
Ali ele deixou de remar e enquanto o barquito se entretinha a baloiçar nas águas tépidas Leonel deitou mãos à corda que as águas escondiam e puxava como quem tira água de um poço, um alcatruz atado na sua profunda extremidade. Depois remava uns metros e puxava outra corda vertical atada à corda mestra sustentada à superfície por pequenas boias.
Alcatruz numa mão, a outra arrancava-lhe do fundo, cá para fora, um polvo que, fiado nos homens, ali se abrigara.
Os mil braços do polvo enrolavam o braço do Leonel e ele com a outra mão onde faiscava uma pontiaguda navalhinha, com a naturalidade de quem tem de tratar da vida e não tem tempo para pensar em tragédias de cefalópode enterrava-lha na cabeça, entre os olhos.
O polvo que gostosamente comemos grelhado com batata a murro, azeite e alho, então, rendia-se. Desfalecia. Os mil braços largavam lentamente o pulso do meu amigo pescador e uma onda branca crescia, em círculos, da cabeça para os tentáculos e desmaiava, deixando-o exangue, o incauto polvo.
Nem todos os alcatruzes tinham "peixe" mas muitos abrigaram traiçoeiramente quem deles, por um momento, teve necessidade.
Depois voltámos. Leonel conversava muito satisfeito com a sorte e eu que não o ouvia olhava ao longe a aldeia de pescadores donde largámos, a oscilar, para cima e para baixo, em tranquilo compasso.
Quantos quilos dará? Multiplicava Leonel.
Quantos de nós não passamos de polvos de dois braços? Esforçava-me eu por entender.

Um homem do mundo



O Alexandre Narciso tem belíssimas fotografias no EELKO VAN MULDER e no Crónicas de Um VagaMundo que lhe sucedeu e também interessantes relatos das sete partidas do mundo que ele
por razões profissionais incansavelmente percorre. Roubei-lhe a fotografia apesar de não ser fácil reproduzi-las. Boa viagem Caro Amigo.

2005/07/03

Ao cuidado do ministro António Costa

Ministro das polícias mas também da reforma da Administração Pública.
Já vos tenho confidenciado conversas, muito úteis aliás, com o meu vizinho, o Senhor Antunes. Este Sábado ia ler o jornal no aconchego de uma bica, no nosso café preferido, ali no largo e lá estava ele.
O Sr. Antunes mudou há pouco para este bairro e contou-me muito à puridade: não espalhe por aí porque o Governo já tem que baste, mas mudar de casa é uma odisseia!
- A trapalhada das mudanças, ajudei eu, fazendo-me entendido.
- Oh amigo não é nada disso, as mudanças foi um dia! São as formalidades para poder pôr tudo em ordem e viver em paz.
- Como assim?
- Olhe, tenho direito à isenção do IMI, a antiga siza, fui à repartição de finanças.
- E então? Uma bicha enorme...
- Isso foi o menos, nem tinha muita gente. Fui muito bem atendido mas a Senhora recomendou-me, tem de trazer uma declaração da Segurança Social que prove que não deve nada. Resolvi ir à Loja do Cidadão. Aí sim a bicha foi duas horas. Mas como há a senha, fui ao café, fiz umas compras e tal. A funcionária às tantas pergunta-me: também foi trabalhador independente (TI)?
- Também, mas coisa de nada, ao mesmo tempo que trabalhava para o patrão.
- Tem de ir às Finanças e trazer um comprovativo do período em que esteve inscrito como TI.
- Então e a Senhora não pode ver isso aí no computador?
- Tenho muita pena mas não há comunicação.
Na semana seguinte voltei às Finanças e lá me deram o papel. A troco de 4,46 € e duas bichas. Uma para comprar o papel na tesouraria e outra no andar de cima para o funcionário me atender. Foi muito simpático porque queria que eu lá voltasse no dia seguinte mas depois dum escarcéu dos diabos em que pus o Governo pelas ruas da amargura atendeu-me logo ali.
Na semana seguinte voltei à Loja do Cidadão. Para a Segurança Social, ali, as bichas são sempre de horas mas já levava um livro. Foi óptimo porque me atendeu a mesma funcionária já quase amiga. Dei-lhe triunfante o papel das Finanças e estendi-lhe logo a outra mão para ela me dar a declaração de que não devo nada.
- Ah... mas há aqui um problema. É que há um período em que você foi TI e não estava a descontar para a SS.
- Pois, aclarei logo, é que aí eu estava na função pública e descontei para a CGA. Ora veja lá!- pedi-lhe eu para ela ver no computador.
- Pois é, mas não temos comunicação, não temos acesso à CGA.
Face ao meu mortal desapontamento a Srª disse logo mas não há problema é só descer as escadas e em frente está o balcão da CGA.
Fui à mulher da CGA. Confirmou logo. Está, está sim senhor, está aqui.
- Óptimo - disse eu - então faça-me o favor de comunicar lá para cima para a sua colega da Segurança Social.
- Oh vizinho - dizia-me consternado o Senhor Antunes que, tão longa a história não me deixava ler o jornal - você não faz ideia a cara de espanto e reprovação da funcionária: Isso não é assim! O sr tem de ir ali comprar o impresso paga 7,05 € e eu preencho, e porque torna e porque deixa. Obedeci. Que remédio! Fiquei à espera mas ela depois de me pedir uns dados disse, agora o Sr recebe a informação em sua casa daqui a 10 dias. Aí amandei-me ao ar. Raios e coriscos mas em que m... de mundo estamos que não pode dizer ali para a sua colega! Então vou-lhe pedir para ela vir cá abaixo ver no seu computador.
- Advinhe o que aconteceu?
- ?
- Pois vai a mulher zanga-se comigo. Que há regras e as coisas não podem ser como eu queria e tal. Fui à outra lá de cima, à da SS, mas só para me queixar da colega da CGA e mais uma vez protestar contra o sistema.
O papel da CGA levou 15 dias a chegar e uns dias depois lá voltei à Loja do Cidadão e à SS. A senhora já me conhecia e com pena de mim fez de conta que não estava a ultrapassar ninguém, chamou-me ali de lado e disse vá dê-me lá o papel que despacho-o já. Aguardei. Pode ir embora já está tudo, disse-me ela.
- Tudo como? Quero o papel a dizer que não devo nada.
- Ah, não é assim. Vá descansado que vai pelo correio. Dez dias e tem-no lá.
Ela fez-me aquele favor não tive lata de protestar mais. Meti o rabo entre as pernas e vim embora.
- Sabe o que é que aconteceu?
- Eu não - respondi lépido ao Antunes, a adivinhar desgraça.
Passados não dez mas quinze dias veio o papel mas não dizia preto no branco, como eu queria, que não devia nada. Falava nuns decretos mais uns artigos e que agora estava tudo legal até que a situação se alterasse. Achei esquisito. Raio, será que me enviaram o papel errado?. Vou à loja do Cidadão ou vou às Finanças? Fui às Finanças. Assim como assim se o papel fosse bom ficava logo o caso arrumado.
Bicha, o costume. Agora diz-se fila, por causa dos brasileiros que acham que bicha é outra coisa. O Homem das Finanças até se rio, não é nada disto, conheço muito bem o papel, já hoje recebi três.
Escoroçoado voltei, uns dias depois, à Loja do Cidadão. Mas já sem força nem vontade para protestar. Já estava por tudo.
Esse papel - esclareu-me um homem, desta vez era um homem, depois de mais de uma hora de espera - essse papel é a dizer que depois da informação que nos trouxe das Finanças o seu registo na SS como TI está perfeito.
- E então o papel de que preciso para pedir a isenção do IMI?
- É porque ainda não chegou?
- Mas se era 10 dias e já lá vão mais de 15?
- Há-de chegar.
Em resumo, oh vizinho - contava-me o Senhor Antunes, já completamente insensível à burocracia, esvaído de forças - tinha um prazo de 60 dias para o IMI... julgava que era demais e afinal não me vai chegar. Já lá vão quase dois meses agora devia partir de férias e o papel não chega. Aqui para nós, conhece lá alguém no Governo?

2005/06/30

BA 3 Tancos (3)

No rescaldo da acção de Tancos a madrugada de 21 de Março ainda nos trouxe um grande susto. Eram cinco horas da manhã eu e a Maria fomos acordados em sobressalto com uma luz que invadia o quarto onde dormíamos. Alguém tentava levantar do exterior, sem sucesso porque lhe tínhamos montado um dispositivo especial, a persiana da janela do quarto, no nosso rés-do-chão e nos apontava pelos orifícios uma lanterna. Saltei da cama, convencido que era a PIDE e a Maria acendia um fósforo para pegar fogo a uns papéis num dispositivo incendiário sempre preparado para estas emergências, quando da janela nos chamam, com voz abafada, para não acordar os vizinhos do primeiro andar
– Sou eu, sou eu, o «Alfredo».
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[ Era Jaime Serra que me vinha avisar que a PIDE/DGS tinha publicado na televisão uma nota com a fotografia do Ângelo de Sousa a tentar colaboração para o prender.]
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A DGS tinha ordenado a todos os órgãos de informação a publicação duma nota que começou pela Televisão e a Rádio e continuou no dia seguinte em todos os jornais na qual acusava Ângelo de Sousa de ser suspeito da destruição dos aviões da Base Aérea de Tancos, que usava várias identidades e se intitulava falsamente de oficial da Força Aérea regressado do Ultramar. Receando que a primeira acusação transformasse o Ângelo num herói aos olhos de boa parte da população tentava «falsamente» fazer crer que sendo simples cabo andava por aí, talvez por bares e cafés, pavoneando-se de oficial.
Pelo sim pelo não a PIDE/DGS punha a fotografia do Ângelo, fardado e à civil, para que os seus informadores pudessem desde logo ficar de olho alerta.
Vesti-me rapidamente para ver se ainda iria a tempo de salvar o Ângelo de Sousa, pensando em simultâneo sobre a forma de não ser apanhado pela polícia se a casa já tivesse sido assaltada e para onde havia de levar o procurado piloto de helicópteros se estivesse são e salvo.
.....
Nem eu nem o Ângelo tínhamos televisão em casa por isso ambos dormíamos descansados. O Jaime Serra que tinha deixado o carro em que viera, longe da minha casa deu-me boleia até Lisboa e ficou no bairro de São Miguel a aguardar as minhas diligências. Se a polícia já tivesse descoberto a casa do Ângelo não seria fácil escapar-me. Era devido a esse perigo que ele decidira que ia eu e não ele. No entanto não era decisão que me passasse pela cabeça questionar. Sendo o Jaime Serra o mais responsável no Comando Central da ARA aceitava esta decisão com a mesma naturalidade com que permitia que fossem outros menos responsáveis que eu a executarem as acções e não eu. Apesar de ser improvável que em tão pouco tempo a polícia pudesse ter chegado ao Ângelo fui-me aproximando com todas as cautelas na tentativa de me aperceber a tempo de alguma coisa estranha. Avançava não demasiado rápido com um ar normal para que nenhum olhar de polícia ocasional desvendasse o destino dos meus passos. Felizmente ninguém se importava comigo e àquela hora madrigal só as árvores da rua António Patrício, atentas, distantes, e solidárias me acompanhavam. Nem um guarda nocturno, nem um vagabundo, ou sequer um operário pedestre e matutino a caminho do trabalho. Ia completamente só e desamparado mas não dava por nada disso porque tinha toda a atenção concentrada em hipotéticos pides por ali emboscados e em tirar de casa rapidamente o Ângelo, agora estrela involuntária de televisão por ter prejudicado a fazenda nacional sei lá em quantos milhares de contos. Parei do outro lado da Avenida dos Estados Unidos. O prédio dormia. A PIDE, se tinha tomado o prédio e o quarteirão, disfarçara-se lindamente. Mais uma vez me confrontava com aquela situação desagradável de ter por perto o desconhecido a rondar. Parei um momento a avaliar a situação e a tomar fôlego. Como se parasse maquinalmente para avaliar o trânsito. Por fim atravessei a rua afoito. Toquei a campainha cá em baixo apesar de a porta ter um vidro partido que possibilitava abri-la por fora. Voltei a tocar ainda duas vezes. Um toque longo e dois curtos. Era a nossa senha com a campainha. Por fim lá veio
– Quem é? – estremunhada, a pigarrear, a pergunta.
– Luís – respondi-lhe, contente de a ouvir e aguardei que pronunciasse a senha:
– Vens sozinho ou com a Teresa?
Respirei fundo e subi já seguro a sorrir do meu susto.
– Este país anda completamente à mercê de qualquer atrevido, com este fascismo decrépito. Que polícias! Uma vergonha, não prestam! – Ia dizendo para comigo, aliviado da forte tensão anterior. Foi assim jovial que falei para o Ângelo que estremunhado não percebeu bem porque é que eu lhe anunciava tão desagradável situação com um ar misto de vitória e alívio.
Passámos em revista os mais pequenos pormenores da sua entrada no apartamento de que apenas saíra uma vez à noite durante aqueles quinze dias. Concluiu calma e certeiramente que os estranhos que com ele contactaram não ligariam uma coisa à outra. Passámos uma e outra vez em revisão todo o passado ligado à casa e dei-lhe razão. Mandei-o dormir. Que não, agora que o tinha acordado tinha que beber um café.
– Não posso, o Jaime Serra está à minha espera – resmunguei-lhe, com pouca convicção e inclinado a condescender.
– Então vai chamá-lo para beber com a gente.
Percebi que tinha mesmo de beber o café com ele. Precisava de digerir o acontecimento.
– Com que então os cabrões puseram-me na televisão…


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BA 3 - TANCOS (2)


Na véspera da Acção de Tancos (7 de Março de 1971) ultimávamos os preparativos. No dia seguinte fizemos uma simulação do que se iria passar dentro do hangar, num apartamento no cruzamento da Av. dos EUA com a de Roma, em Lisboa (eu fazia lá ideia que 2 andares abaixo morava o meu primo Celestino! Felizmente que não nos cruzámos, não que ele não fosse contra o regime mas nestas coisas não podemos meter "estranhos" mesmo da família).
A casa serviria de refúgio para o Ângelo de Sousa que teria de abandonar a Força Aérea e cerca de um mês depois, quando tudo acalmasse, ser clandestinamente passado para o estrangeiro. Carlos Coutinho e Eusébio foram levados de olhos fechados para o local e depois para o prédio e o andar e do mesmo modo sairam sem poderem identificar o esconderijo futuro do Ângelo que eu teria de abastecer de alimentos, café, livros e entusiasmos.

Dali partimos para Tancos na noite de 08MAR71. Eu no Volkswagen com o Ângelo e o Carlos Coutinho com o António Eusébio no seu célebre "carro da ARA" um Opel Cadete verde escuro.

Próximo da Base trocámos de carro, eu voltei para trás e esperei-os na estação do comboio de Santarém (uma espera dramática, receei com a demora que já não voltassem. Deveria ter-me-ido embora, de acordo com as regras. Mas pareceu-me na altura que aquela regra não estava bem e decidi esperar ainda mais. Finalmente vieram. Uma hora, uma hoooora, céus!!! depois do previsto. Jurei para nunca mais! Mas só por uns momentos.)

Agora um extracto do livro:
"Os nossos preparativos corriam tão bem que não podíamos ima­ginar que algum perigo inesperado pudesse ainda levar tudo a perder. E foi o que esteve à beira de acontecer. Depois de ter alugado o Volks­wagen com documentação falsa, sem qualquer incidente, na antevéspera da acção, dirigi-me à arrecadação nos arredores de Lisboa onde tinha as cargas explosivas e incendiárias. Com elas enchi o pequeno porta bagagens do automóvel e fui, ao volante do Carro do Povo ter com o Carlos Coutinho que me esperava perto da Praça de Espanha. Dali partimos os dois para Belém onde ficava uma garagem alugada e onde o carro ficaria até partir para Tancos. Quando entrámos na Avenida de Ceuta a caminho de Alcântara, seriam umas nove horas da noite, passei o volante ao «Meneses» para ele conhecer o carro e exercitar-se um pouco, antes de no dia seguinte ter de o guiar, desembaraçado, até à base aérea.
Seguíamos em descontraída e animada conversa quando inesperadamente esbarrámos com um invulgar aparato policial que enchia a rotun­da de Alcântara de agentes da Polícia de Choque e de cães-polícia. Com o carro cheio de explosivos, ficámos siderados. O nosso susto foi maior pelo inesperado. Não vimos à distância todo aquela força policial, que a nossos olhos assustados parecia superior a um batalhão. Vínhamos conversando alegremente e, sem aviso, desaguámos de supetão no meio daquela desproporcionada força policial. Tão fulgurante quanto a presença pouco recomendável dos polícias me veio a lembrança de que um carro alugado só pode ser legalmente conduzido por quem o alugou. Estávamos em transgressão! O Coutinho conduzia o carro bem por dentro da rotunda o mais longe possível dos polícias que pejavam as bermas. Suponho que me encolhi. Pelo menos interiormente. Para incomodar o menos possível suas excelências os polícias, os cães e os rádios. Foi tudo tão rápido que quando ainda íamos no meio do susto já saíamos do Largo de Alcântara totalmente incólumes, a caminho da marginal.
Só por milagre nenhum daqueles polícias ali especados a verem-nos passar se meteu connosco. Foi porque fizemos no escuro do carro um ar muito humilde e respeitador da lei, comentava para mim o Carlos Coutinho, uns minutos depois, já a descontrair e com um riso que me parecia ainda um pouco amarelo. Quem sabe se não toparam mesmo quem nós éramos e o que levávamos e decidiram: deixemos lá os rapazes seguir em descanso para não andarem sempre a dizer mal da polícia! Respondi ao meu companheiro. Já aliviados o Carlos parou o carro e trocámos de lugar passando eu a conduzir. Seguíamos então pela marginal naquele estado de espírito bonançoso que sucede às grandes tempestades. Refazíamos forças com prognósticos de bom tempo. O Carlos Coutinho animava-me e animava-se:

– Encontros destes são coisas que só acontecem de longe em longe. De dois em dois anos.
Dispunha-me a concordar plenamente quando, saindo não sei donde, se me atravessa ao caminho um polícia a mandar-me parar. Fiquei petri­ficado. Resmoneava, inaudível, indignado, sentindo-me vítima de intole­rável injustiça: mas que raio é isto? é uma conspiração ou quê? Simultaneamente veio ao de cima como primeira preocupação não me atrapalhar na condução. Não só a carta de condução era falsa como, sem ter tirado carta nem praticado o suficiente, guiava mal. Parei o carro e procurei responder ao boa noite do bem educado guarda com um tom de voz de descontraída calma.
– Os seus documentos! – Pediu-me o polícia.
Entreguei tudo. Certinho. A carta de condução, o livrete, o título de propriedade, o documento do aluguer, o meu bilhete de identidade. Tudo falso como convinha! Foi o que traiçoeiramente me veio à cabeça dizer. Felizmente que só em pensamento. O guarda examinava os documentos um a um. Pelo canto do olho reparei no escuro da berma da estrada, três motos e mais dois polícias de trânsito. O homem era minucioso o que não me animava. O meu colega não sei como estava. Só reparei que tinha as mãos apertadas sobre as pernas e olhava em frente pretendendo talvez insinuar que estava completamente desinteressado do que se estava a passar. Para criar mau ambiente e acelerar o compasso do meu coração o desagradável guarda começou a tomar umas notas num papelinho qualquer. Talvez para me animar, não sei bem, deu-me na cabeça conversar, com naturalidade, com o polícia.
– Então o que é que se passa? É a segunda barreira por que passa­mos. É ladroagem?
Não me respondeu. Continuava a escrevinhar. Não conseguia evitar maus pensamentos e deixar de me interrogar, o filho da puta está a tirar notas dos documentos? Ainda abri a boca para dizer mais qualquer coisa que quebrasse aquele pesado silêncio quando conclui que era mau sinal ele não me responder. Calei-me. Por fim após uma eternidade levantou a cabeça do papel estendeu-mo e despediu-se com um boa noite tão lacónico como o primeiro. Ainda sem perceber bem o que se passava soletrei o papel que desconsoladamente não tive outro remédio senão receber da mão do polícia. Afinal, que surpresa! A letrinha miúda e a lápis informava simpaticamente uma eventual patrulha que posteriormente nos interceptasse «que este senhor condutor já tinha sido inspeccionado».
Nem queria acreditar! Era afinal uma espécie de salvo-conduto. Atestado de bom comportamento. Prova… não direi de bagagem legal, que não foi objecto de atenção, mas pelo menos de documentação sem mácula. Rezei a todos os santinhos para não arrancar com o carro aos solavancos. Fui atendido. Deslizei com o Carlos Coutinho e tudo o resto, com surpreendente suavidade.
Perdemos o gosto para mais conversas e só quando finalmente arru­mámos o carro, o Carlos exclamou enfático com o ornamento de palavras próprias e sonoras que dispensam reprodução que há dias em que não se pode sair de casa!

A Acção da Base Aérea de Tancos (1)

Para criar relações ou até, se possível, amigos na blogosfera usei a consagrada técnica de deixar um comentário nos seus blogs. Às vezes a iniciativa pega. Sucedeu, por exemplo, com a Mona Lisa, com o Alexandre Narciso ou com a Micas.
De vez em quando deixam aqui no Memórias ou no Puxa Palavra simpáticos comentários. Outras vezes chegam mesmo a atribuir-me virtudes ou feitos que relevam apenas da sua generosa amizade.
Gostam de visitar memórias antigas que aqui vou registando. Assim e para não desmerecer da sua amizade vou transcrever algumas breves passagens do livro que conta a história da ARA. Começo pela acção de Tancos.



Esta operação armada foi planeada e meticulosamente preparada pelo Comando Central da Acção Revolucionária Armada - ARA (Jaime Serra (50 anos), Francisco Miguel (63), Raimundo Narciso (33)) com a colaboração essencial do então furriel piloto de helicópteros na Base Aérea de Tancos, Ângelo de Sousa, durante cerca de 6 meses e descrita em 50 páginas do citado livro. A sua execução deve-se a três homens de coragem: Carlos Coutinho, jornalista (28 anos), Ângelo de Sousa, bancário (24) e António João Eusébio, estucador (28).



Eis um extracto do comunicado então emitido pela ARA:

"Um comando militar da Acção Revolucionária Armada levou a efeito, com pleno êxito, na madrugada do dia 8 de Março [de 1971], uma importante e complexa acção contra o aparelho militar da guerra colonial. Este comando penetrou audaciosamente no hangar principal da Base Aérea Nº3, em Tancos, destruindo completamente, com cargas explosivas, toda a frota de helicópteros militares estacionados nesta base militar, assim como vários aviões de treino."



Um relatório da Base Aérea que encontrei na Torre do Tombo, no arquivo da PIDE quando preparava o livro citado, mensionava:

"28 aeronaves atingidas, 12 totalmente destruídas, 1 irrecuperável, 15 com destruições de diferente grau e recuperáveis".

Também na Torre do Tombo encontrei um relatório secreto, da Secretaria de Estado da Aeronáutica de então onde se dizia que:

"...
1.- Cerca das 03.20 do dia 08MAR71, deflagrou no Hangar Norte da Base Aérea Nº 3 (Tancos), um violento incêndio iniciado por complexo sistema explosivo, cujo fulcro se localizou num engenhoso sistema de relojoaria."
..."