2007/02/19

Portugal de há 50 anos (1)

Em 1960, Torres Novas tinha um quartel ocupado pelo Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2 que toda a gente conhecia por GACA 2.
E que era o GACA 2? Uns 500 homens, mais de metade deles envolvidos na instrução - uns 250 jovens, na maioria de origem rural, e uns 40 sargentos e oficiais quase todos milicianos, a ensiná-los. Um avantajado número de militares ocupado com os serviços e uma parte pequena verdadeiramente operacional e capaz de manejar as vetustas peças de artilharia pesada, prontas a fazer atravessar os céus e remotamente algum avião inimigo que se pusesse a jeito, com projécteis de 9 cm de diâmetro ou pronta a usar as peças anti-aéreas mais pequenas de 4 cm.
Capitão Virtuoso ao centro e os seus oficiais milicianos. à sua esq Raimundo Narciso e Ernâni Pinto Basto
O quartel com toda esta gente a comer, a beber, a fumar, a ir ao cinema, aos restaurantes, aos tascos, às tabernas e, com gana, à casa das putas, valia para a economia da vila tanto ou mais que toda a pequena indústria da região. Gastava-se o dinheiro do Zé sem que produzisse nada de verdadeiramente útil. O inimigo, o comunismo soviético, não passava cartão a Salazar e se mandasse aviões tinham que vir baixinho e muito devagar para, já não digo lhes acertarmos mas ao menos os assustar.
Depois de ter aprendido a defender a pátria em Vendas Novas, no ano anterior, na Escola Prática de Artilharia (EPA), onde tive de me apresentar interrompendo o curso em Lisboa; depois de ter aperfeiçoado a "arte da guerra" em Cascais, no Centro de Instrução de Artilharia Anti-Aérea e Costa, fui colocado naquela bonita vilória do alto Ribatejo, que então ainda não se sentia diminuida por não ostentar o título de cidade, para transmitir os meus nóveis conhecimentos ao povo empurrado para as fileiras.

Oficiais milicianos em 1960. Da esq. p. a dir, em 2º lugar o autor do post, a seguir Ernâni Pinto Basto, 
e só a ver-se a cabeça, José Bernardino. Com um joelho em terra José de Almada Negreiros (filho).

Às 8 horas em ponto os trinta recrutas vindos de todos o nosso Portugal, mas mais de Trás-os-Montes e Beira Alta - em três filas bem alinhadas eram apresentadas ao oficial miliciano pelo cabo miliciano que previamente ordenara "firme" e "sentido" em tom marcial: "fiiirme", "seeeeennnn-tap". O Aspirante a Oficial Miliciano (o primeiro grau da classe de oficiais) fazia a continência e mandava descansar com a ordem de "à vontade". Os "recrutas" ainda mal aprumados e pouco hirtos pela curta experiência castrense abriam as pernas, punham as mãos atrás das costas e ali ficavam a ouvir o futrica feito oficial a dar-lhes as primeiras explicações sobre as artes militares que ali se resumiam, nos primeiros tempos a bem marchar na parada e a ganhar reflexos de obediência instantânea às ordens que lhes dessem.

O 33, de nome Paulo e um excelente rapaz de uma terrinha de Trás-os-Montes a que se tinha acesso não por uma destas modernas auto-estradas em que Cavaco e Guterres gastaram o dinheiro com que deveriam, segundo as melhores opiniões, ter instruído o povo, mas por umas veredas só transitáveis de burro, muar ou a pé posto.
O Paulo ficou sob a minha directa protecção porque a sua excessiva falta de jeito para a "ordem unida" era motivo de troça da rapaziada que não respeitava atavismos, costumes ou atrasos regionais.
O 33 não conseguia marchar. Fazia-lhe confusão aquilo de os braços balançarem ao ritmo das pernas e tendia a atirar com os dois braços para a frente ou para trás ao mesmo tempo o que dava um ar desengonçado ao andar e pictoresco às nossas aulas. Também não conseguia saltar a pés juntos por cima de um muro com 50 cm de altura. E trazia uns grossos volumes a empanturrarem-lhe os bolsos das calças o que tudo junto tornava o nosso esforçado Paulo objecto de risota dos colegas fora das horas de instrução e dos olhares dos superiores. Isto de "superiores" era assim que se dizia. Agora lá se eram ou não resta averiguar.
Quando fazíamos os intervalos regulamentares de 10 minutos após os 50 de instrução o nosso 33 tirava dos bolsos um temível canivete e uma grossa bucha de pão caseiro que trouxera da terra com presunto e ali, sem mais cerimónias, compensava a magreza do rancho.
No final da recruta o 33 estava em forma. Não digo com a destreza e elegância de gazela mas marchava como os outros, saltava o muro e vencera o pavor que o cegava de ter de saltar para o galho, prova que desfeiteava muito peralvilho da cidade.

Recrutas do meu pelotão de instrução. O dono do blog, comandante desta tropa é o 4º da esq. Paulo à direita, em pé.

No fim de semana a Bateria (força de 120 homens de artilharia) oferecia 1 bilhete de cinema por pelotão (cerca de 30 recrutas ou praças) para o melhor recruta. Nem sempre me era fácil avaliar com rigor a quem dar o prémio. Mas o nosso Paulo ainda não estava no "pelotão da frente". Por isso, certa vez, atendendo aos seus notáveis progressos ofereci-lhe, pago por mim, um bilhete para o cinema.
Foi quase uma aventura para o nosso esforçado trasmontano. Assenta-te!! Gritavam os colegas ou outros torrienses das filas de trás. E ele nada, dois palmos de cabeça acima dos outros. Senta-te, insistiam já ameaçadores. Mas já estou sentado!... Oh camelo! roda o assento para baixo.
No intervalo da fita o 33 foi às casas de banho. O aparato era antigo. Ou moderno para a altura e ao lado dos urinois tinham colocado uns bidés que ali ficavam mais ou menos excedentários.
O Paulo viu os locais próprios para "verter águas" ocupados e não considerando os bidés menos próprios usou, sem a mais longínqua malícia, um destes para se aliviar. O drama é que teve o azar de na casa de banho ter entrado nada menos que o comandante, um ten-coronel, muito cumpridor, muito zeloso, e competente pelo menos na administração do quartel mas quanto a linguagem... o máximo de polimento que lhe emprestava era com máximas quarteleiras do género: "quando o general visita a unidade e passa revista o que é preciso é estar lavado por baixo" que era uma forma de dizer que queria casernas limpas, sem lixo nem pó debaixo dos beliches e tarimbas dos soldados, cozinha impecável e tudo no seu lugar.
Na segunda-feira o capitão Virtuoso, comandante da 3ª bateria de instrução a que eu pertencia, chamou-me ao seu gabinete. "Dá licença meu capitão". Era eu, aprumado, em continência, depois de um forte bater de tacões à porta do gabinete. "Entre nosso aspirante. Sabe! Você tem lá um recruta, tenho aqui o número... é o 33, que vai ter de levar uma valente porrada. É uma ordem do nosso comandante. Apanhou-o na casa de banho do cinema, ontem, a mijar no bidé. Tem de levar uma porrada exemplar que não queremos aqui na terra má imagem do quartel."
Bom... se me dá licença eu vou falar com o nosso comandante. Já me contaram o que se passou. O 33 nunca viu um cinema e não faz ideia do que seja ou para que serve um bidé. Se me autorizar eu falo com o nosso comandante.
Livrei o Paulo de mais este apuro.
No fim da recruta recusei um presunto que me trouxe. Um presunto enorme e delicioso como depois comprovei. Ficou muito ofendido e disse-me que não podia aceitar a minha recusa. Seria uma ofensa não só para ele mas para os pais que tinham muita consideração por mim. Suponho que inventava. Os pais não tinham a mais ligeira ideia de quem era. Chegámos a um acordo. Eu ficava com uma parte e ele organizava com o resto uma festa com os colegas do pelotão a que eu assistiria.