2004/06/17

NASCER EM 2004 E NASCER NA CLANDESTINIDADE

Parto do princípio de que estão todos a par do nascimento do meu neto, ontem à tarde, na
maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa.
Mas se não acompanharam o grande acontecimento familiar não perdem por isso porque o que eu queria mesmo contar é a diferença que fez o 25 de Abril. Sim sim, o 25 de Abril de 74. Porque o que vou contar é a diferença entre o nascimento do meu neto em 2004 e o nascimento do pai dele o meu filho José,  30 anos antes, estava eu... estava eu e estava ele! na clandestinidade.

Nunca mais lá tinha entrado. Na Alfredo da Costa. Não fora preciso. No entanto acompanhei ao longo dos anos a Maternidade. Passo muito por ali a caminho do Forum Picoas e outras vezes para deixar o carro no parque ao lado. Caríssimo! 2horas 500 escudos! 2€ e 50 cêntimos.

Com o meu neto foi como com toda a gente. Em resumo eram aí umas 8 horas da manhã, depois de sinais de parto, o José levou a mulher, de carro, à maternidade, identificou-se e a Filipa, com aquela barriga enorme a ameaçar bébé, entrou logo lá para dentro.

Há 30 anos em 11 de Março de 1974 o caso foi diferente mas só um pouquinho. Eu e a Maria Machado vivíamos em Odivelas com a nossa filha Leonor, já com quatro anos. Nomes falsos, bilhetes de identidade falsos. Tudo o que dizíamos aos vizinhos era falso. Tinha de ser. Às vezes pensávamos um para o outro: isto assim é uma vida completamente falsa, arre! As conversas com vizinhos eram o mínimo indispensável para parecermos uma família como as outras e era só a Maria a fazê-las porque especialmente deste 1972, com a minha fotografia posta nos jornais pela DGS (o nome que Marcelo Caetano deu à PIDE porque este não era nada simpático) desde 72 e especialmente desde 1973 quando voltaram a pôr a minha fotografia nos jornais e desta vez também na televisão com pedido de denúncia, só saía à rua de noite e com o máximo cuidado.

Era já noite quando fui buscar um táxi até à porta de casa para levar a Maria Machado. Uma coisa que se não deve fazer em circunstâncias normais. Mas a circunstância era anormal! Mesmo assim ainda fizemos um corte. Quer isto dizer que não fomos directamente para a maternidade Alfredo da Costa para não haver uma ligação entre a maternidade onde eu iria estar exposto e poderia ser reconhecido e a nossa casa. Tirando a matrícula ao táxi, interrogando o motorista, ficariam de imediato a saber onde morávamos. Depois os pides armavam-se em sonsos fazendo de conta que não tinham descoberto nada vigiavam-nos a casa e tentavam apanhar-nos a nós e aos outros clandestinos que comigo reuniam, ou seguiam-me até descobrirem outras casas e outras pessoas. Por isso mandei o táxi seguir para a maternidade Bensaúde ao Rego. Despachei o táxi com uma gorjeta modesta mas um bocadinho maior que as do costume e ainda à vista do motorista entrámos para a maternidade. Mas para de imediato sair e ir procurar outro táxi que nos levou finalmente à Alfredo da Costa já com a Maria muito queixosa.
Mal chegámos tendo em conta o estado dela deu entrada de imediato e eu fui para a salinha de espera. A sala dos pais que esperam.
Mas antes devo dizer que ao chegarmos pedimos para chamar a Dra Helena médica nossa amiga que estava avisada e à nossa espera. Era uma médica simpatizante do PCP de quem ficámos eternamente gratos e estava disposta a ajudar-nos e a correr riscos. Riscos muitos sérios. Se descobrem que nos estava a dar apoio… era a perda do emprego, prisão, tortura. A vida estragada. Era o que lhe podia muito bem acontecer se alguma coisa corresse mal. Felizmente tudo correu bem. Só umas aflições. A Maria com o parto e eu com o problema da nossa identificação por resolver

Encaminhei-me para a recepção da maternidade. A sala, mal iluminada, tinha um chão frio, de mosaico e à volta, bancos de madeira corridos onde outros pais, esperavam a vez para se identificarem. A sala tinha um aspecto lúgubre, impróprio para acolher quem naquele momento de desamparo necessita de um sinal de alegria e esperança.
Pensava mais uma vez em como haveria de resolver o problema da declaração da minha identidade. Agora a minha situação conspirativa era mais complicada do que quando nasceu a Leonor. Não me convinha mostrar nenhum dos bilhetes falsos que tinha, cada um para a sua função. Um para a casa que habitava, outro para a carta de condução, outro para a casa que servia de laboratório da ARA (é a Acção Revolucionária Armada). E por fim outro bilhete de identidade de reserva. Os BI estavam em casa. Comigo só tinha um para outras eventualidades.
Olhei à volta. Sentados ou em pé, de ombro encostado à parede, via outros homens na expectativa ansiosa de serem pais. Calados, cada um sozinho com os seus problemas. Que problemas, esperanças ou ansiedades povoariam aquelas cabeças? Pensariam na mulher que lá dentro dava à luz? Pensariam em como sustentar mais uma boca a chegar a este mundo? Pensariam no nome a dar ao rapaz ou à rapariga? Perdia-me em vãs conjecturas quando chamaram por um jovem cigano que se sentava na minha frente. Ao postigo de atendimento uma funcionária perguntou-lhe o nome. O jovem pai disse um nome qualquer, o dele com certeza, mas não consegui ouvir. A rapariga - a funcionária ainda era nova, dos quarenta para os cinquenta. Na altura achava-a velha mas agora acho que até se lhe podia chamar rapariga - pediu-lhe o bilhete de identidade. O cigano disse que não tinha. Eu mais do que escutava, bebia-lhe as palavras, tirando experiência, estudando a forma de me identificar sem me identificar. A mulher pediu-lhe então a carta de condução.
— Não tenho.
Foi simples, a resposta pronta.
— Bem, dê-me qualquer coisa que o identifique, o cartão do sindicato, por exemplo.
Aí o cigano riu-se e disse lampeiro que não tinha nada. Tinha lá agora isso de sindicato! Não tinha nada, nem isso nem coisa nenhuma, acabou-se. Disse peremptório achando completamente deslocadas senão mesmo parvas tais perguntas para mais num caso como aquele em que estava ali para ser pai e não para ser interrogado por coisas que sempre atribuem aos cidadãos da sua raça. Cidadãos digo eu agora porque nessa altura se a palavra existia caíra em desuso e ninguém se lembraria de a usar. Até poderia ser perigoso.
A funcionária face ao despautério de identificação nenhuma, não desatou a barafustar, não ameaçou, não chamou a polícia. Em boa verdade anotei mas muito disfarçadamente, nem protestou muito, apenas resmungou uns monossílabos do género isto é que são vidas e contentou-se.
Ora aí está, exultei, faço como o cigano. Era verdade que a minha pele demasiado branca não me dava um aspecto de irmão de raça do pai que me antecedeu. Pareceu-me por isso conveniente acompanhar de alguma desculpa a minha nudez identificativa.
— Peço desculpa mas com a pressa e atrapalhação não trouxe nenhum documento comigo! E disse um nome de que tomei então boa nota mas que depois se esfumou completamente na minha memória.
A funcionária não esteve para despender mais energias nem se agastar em admoestações. Terá feito o seu juízo do estado do mundo e anotou o nome falso que eu preparara para a paternidade do José.

E depois para tirar de lá o filho e a mãe?! Mas isso é já outra história. Talvez a conte mais tarde. Acham bem?