O Público do último Domingo dá notícia das preocupações de José Pacheco Pereira e Guilherme Oliveira Martins sobre a extinção do Serviço Militar Obrigatório (SMO) agora ocorrida, findo o período de transição determinado pela lei do serviço militar que o extinguiu, aprovada pela Assembleia da República em 1999.
São referidas, razões de princípio relacionadas com a cidadania, a formação cívica, o conceito de nação e de Defesa Nacional. Argumentos que têm grande relevância para o Estado e a nação.
Na altura da elaboração da Lei (1997/99) houve animada polémica acerca da extinção do Serviço Militar Obrigatório. Os chefias militares principalmente porque receavam a falta de voluntários em número suficiente mas também porque a conscrição dá mais poder e autoridade às forças armadas sobre a nação, e um maior entrosamento e identificação com a comunidade nacional.
Jornalistas, estudiosos, analistas dividiram-se. Da esquerda (mas também de alguma direita) surgiram muitos argumentos para a manutenção do SMO. A importância do SMO para a formação cívica e disciplinar do povo. Para o enraizamento do amor à pátria, para a democratização das forças armadas. Com o SMO estas seriam o "povo em armas". "As origens do SMO eram de esquerda e democráticas". "Tinha sido concebido pelos enciclopedistas e posto em prática pela Revolução Francesa". Etc, etc.
Outros também de esquerda, como eu, e outros de direita, sustentavam com alguns argumentos comuns e outros diferentes, a favor da extinção do SMO.
Eu já defendi o SMO. E julgo que com razão. E depois a sua extinção. Creio também que acertadamente. Porque a realidade mudou radicalmente com o fim da União Soviética, da guerra fria e do mundo bipolar. E também, ainda que paulatinamente, com a revolução tecnológica.
Poderei voltar a defender o SMO se as condições mudarem. As virtudes filosóficas, sociológicas, políticas do SMO, invocadas por alguma esquerda, existiram (algumas) mas com o tempo... deixaram de existir. Estudei a matéria e com acerto ou sem ele tentei defender consistentemente a extinção do SMO e o pouco fundamento de algumas ideias de "esquerda" como a de que o SMO é garantia de democratização das forças armadas (FA) pois como se sabe os golpes militares de direita foram quase todos feitos por FA baseadas no SMO. O que é natural sabendo-se como se sabe que os militares do SMO não têm nenhuma influência nas decisões militares dos exércitos, excepto em períodos de guerra ou revolucionários. Mas atenção, estamos a falar sempre, sempre! em SMO em tempo de paz. Porque em tempo de guerra, se o SMO servir para alguma coisa, tendo em conta que a guerra moderna é altamente tributária das novas tecnologias, será imediatamente posto em prática.
Para o estudo que fiz então foi absolutamente decisiva a Internet. Obtive de imediato mais de 300 páginas da audição feita pelo Senado francês sobre o tema a ilustres especialistas franceses e estrangeiros. Hoje já existem mais estudos e mais aprofundados sobre o serviço militar, editados em Portugal.
Sobre o que penso acerca do serviço militar (SM) veja-se a intervenção que fiz no plenário da Assembleia da República em Março de 1999, ou o artigo no Janus 98-suplemento especial e outros trabalhos e artigos [aqui] ou o artigo, mais desenvolvido, sobre o SM ao longo da História de Portugal, publicado na revista Nação e Defesa nº91-Outono 99 - 2ª Série (revista do Instituto de Defesa Nacional) disponível [aqui]
O artigo que se segue, é um dos artigos publicados na revista JANUS/98 Suplemento Especial, publicação anual da Universidade Autónoma de Lisboa e é uma síntese que procura relativizar a tese do SMO como uma instituição republicana e de esquerda.
O SMO na História
Diderot, na "Enciclopédia" diz que "É necessário que... o cidadão envergue dois hábitos, o hábito do seu Estado e o hábito militar" (1). Com Montesquieu e Rousseau, os filósofos, criaram o conceito de serviço militar obrigatório (SMO) como um dever do cidadão. Mas sem o comboio o conceito talvez não tivesse feito história.
O SMO generalizou-se quando a guerra deixou de ser "um desporto de reis" e passou a pôr em confronto as nações com todo o seu potencial humano.
No século XVIII, as dificuldades em garantir os abastecimentos aos exércitos envolvidos na guerra tornavam inúteis, em geral, formações com mais de 80 mil homens. As guerras napoleónicas que se seguiram à revolução francesa mercê do saque dos territórios envolventes permitiram chegar ao limite do Grande Exército que invadiu a Rússia, com 600 mil homens. Mas foi um período de excepção. Aliás ao saque, os russos, com Kutuzov, opuseram a terra queimada e quando gelado e exausto, o Grande Exército chegou a Moscovo, em vez de víveres e abrigo encontrou uma capital deserta e incendiada e foi destruído.
A revolução nas comunicações e em especial o aparecimento do comboio (2) trouxe uma revolução à forma de fazer a guerra. Passou a ser possível abastecer continuamente o campo de batalha de víveres, de armas, de munições e... de homens. Foi então que o SMO universal se tornou verdadeiramente útil e só por isso se generalizou. E, apesar de esboçado na revolução francesa, mas iniciado em 1814, pela Prússia, monárquica e semifeudal, a desmentir a radicação da sua origem prática em razões filosóficas, só passou verdadeiramente a ser um trunfo a partir da via férrea.
Frederico Guilherme I, da Prússia, em 1870 munido de duas armas revolucionárias, o comboio e o SMO, esmagou a França com um exército de um milhão e duzentos mil homens.
A guerra dos profissionais do século XVIII e as guerras revolucionárias do período seguinte, deram lugar às guerras das nações, baseadas no SMO em tempo de paz para prepararem milhões de homens para a guerra. Hitler conseguiu assim um exército quase dez vezes maior que o de Frederico Guilherme I, 70 anos depois.
A predominância (a exclusividade?) das razões militares para a existência do SMO (extensivo a todos os cidadãos masculinos) é exemplificada pela excepção das Ilhas Britânicas. A Inglaterra por ser uma ilha, ao abrigo de fáceis invasões, nunca cultivou o SMO. Não precisava de exércitos grandes para se defender. Desde 1679, com o acto institucional do habeas corpus, ao garantir o primado da liberdade individual em matéria de justiça tornou se inaceitável para os ingleses o constrangimento físico para assegurar a defesa do país, fora de circunstâncias excepcionais, como a de perigo de guerra. (3).
Notas: (1) - M. Raoul Girardet. Exposição ao Senado francês, em 1996, no debate sobre a profissionalização.
(2) - Michael Howard: "A Guerra na História da Europa", Europa América, 1997, pág. 119.
(3) - Gerard Bonnardot: "De la conscription à l’armée de métier: le cas britannique" - Defense Nationale" de 22/02/96.