...Os nossos vizinhos, ali no patamar do prédio, davam largas à sua alegria com a queda iminente da ditadura. Afinal são antifascistas, verificávamos com agrado.
...O milagre acontecera. Ainda nos custava a acreditar. Podia ser?
A nossa ansiedade era extrema. Até por estarmos ali escondidos sem poder participar na acção. Falávamos baixo não fosse qualquer palavra mais alta ou gesto descuidado perturbar o bom andamento das operações militares.
... Corríamos as diferentes rádios e fixávamo-nos no Rádio Clube Português. A manhã foi passada num desespero eufórico e meio louco. Eu interrogava-me e «dava ordens» ao comando do Movimento. Ainda não sabia que o quartel general dos capitães era no Regimento de Engenharia da Pontinha, relativamente perto de nossa casa.
Já terão tomado a televisão? – interrogava eu.
– Assaltem a PIDE! A PIDE é absolutamente essencial – protestava eu – ignorante do plano. Prendam o Tomás e o Marcelo! Neutralizem a GNR. E o Banco de Portugal? Se calhar esqueceram-se do Banco – repreendia os capitães e olhava para a Maria a ver o que me dizia.
A manhã íamo-la passando num estado de espírito entre a exaltação, a alegria desmedida e a ansiedade por não conhecermos suficientemente a situação político-militar e também por causa da nossa inacção e impossibilidade de entrar em contacto com os outros membros do Comando Central da ARA ou com a direcção do PCP.
– Escuta, escuta, escuta!
– Olha apanharam um rádio do Comando da GNR!
– É um comandante a dar ordens a uma força inimiga. Para ir para o Rossio.
– Grava, grava as ordens – tínhamos um gravador de som onde íamos gravando as principais informações para no intervalo das notícias as voltarmos a apreciar e nos convencermos que era tudo bem real...
–Não podemos dar fôlego ao inimigo! – aconselhava eu, platonicamente, do meu esconderijo, os insurrectos e associava-me a eles mas infelizmente só em espírito.
Se não atacam depressa ainda perdem, prevenia, senhor da teoria de muitas revoluções. É preciso atacar, atacar, atacar, sem dar fôlego ao inimigo!
– E os presos políticos? Oh caraças. Deviam ir a Caxias e a Peniche! Depressa!
...
E assim passámos a manhã bebendo cada palavra da rádio e levitando.
...
Os nossos filhos deviam estar espantados com a nossa agitação. O José Alexandre, que viria a ser o último português a nascer na clandestinidade, com um mês e meio de idade, não se impressionou muito com o curso dos acontecimentos ao longo do dia. Talvez tenha notado algum desacerto no horário das mamadas. À Leonor, com quatro anos, já podíamos explicar alguma coisa mas era ainda prematuro dar-lhe explicação de coisas que podiam voltar atrás e depois tornar-se mais difícil controlar o uso que faria de tais informações.
À tarde saímos. A ver o ambiente. Com cautelas.
À noite saí afoito. A Maria teve de ficar em casa a tomar conta dos filhos e da casa. Sempre as mulheres… Fui a Lisboa e fiz contactos. A euforia era indescritível mas ainda contida. Nunca fiando. Os fascistas há quase cinquenta anos no poder podiam ter sete fôlegos como os gatos.
No dia seguinte saímos, quase sem cerimónias, para dar largas à nossa alegria, mas longe de casa, é claro. Dois dias depois gritava, com a multidão que rodeava a prisão de Caxias, pela libertação dos presos políticos. Todos os presos políticos. Incluindo os da ARA e da LUAR e de outras organizações revolucionárias. E não apenas alguns, como ainda tentou impor Spínola, o general que, na circunstância, os capitães aceitaram por Presidente da República provisório.
Entretanto fomos contactados por Jaime Serra que nos anunciou a chegada de Cunhal no dia seguinte. Disse-nos que já podíamos sair mas que mantivéssemos a casa completamente clandestina, sem revelar nada a vizinhos, amigos ou família. Era o que já estávamos a fazer.
Depois foi o regresso do exílio de Mário Soares e de Álvaro Cunhal. E por fim a manifestação do 1.º de Maio em Lisboa. Aquele 1º.º de Maio!… Uma euforia. Uma loucura. Toda a gente veio para a rua. Em todo o país. Em quase todo o país!
No Dia do Trabalhador, o primeiro que era festejado em liberdade nas últimas dezenas de anos, em Lisboa formou-se um mar de gente como nunca se vira antes. Nem depois…! De todas as ruas confluía uma multidão para o estádio da Avenida do Rio de Janeiro que viria a se chamar Estádio 1.º de Maio. Uma alegria e fraternidade incontidas. Pais com bebés às cavalitas. Jovens e velhos. Gente de todas as condições. Ricos e pobres. Operários e intelectuais. Até as crianças partilhavam os risos, as saudações, sem perceberem bem o que se passava. As nossas também lá iam connosco e participavam a seu modo. Naquele momento todos nos julgámos irmãos. Nunca mais se repetiu uma coisa assim. Nem podia repetir. Era a Libertação. Libertação duma ditadura de meio século. As pessoas ainda não vinham enquadradas por partidos, que ainda não existiam legalmente, nem por cartazes ou palavras de ordem partidárias e «politicamente correctas». Cada um trazia no olhar uma alegria incontível, no gesto solidariedade a transbordar e à volta da cabeça ver-se-ia com certeza uma auréola de esperança do tamanho do universo.
Fomos à procura da família. A minha mãe estava na terra, no Vilar, uns quilómetros ao norte de Torres Vedras, e foi fácil encontrá-la. Para ela o fim do fascismo era também o fim da solidão e amargura em que se encontrava, com o falecimento do meu pai em 1970, com a filha exilada em França e o filho algures em parte incerta. Encontrar os pais da Maria não foi tão fácil assim.
José Pulquério e Úrsula Machado viviam há muitos anos na clandestinidade quando em 1968 foram presos pela PIDE. A mãe, libertada em Novembro de 1972 e o pai em Março, de 1973 viviam com a filha mais nova Maria José e tinham mudado de residência há pouco tempo. A irmã mais velha, Úrsula, mas conhecida por Luísa Basto, pseudónimo, primeiro da clandestinidade, depois artístico, encontrava-se em Moscovo onde completou um curso superior de canto e só regressou a Portugal em Junho de 1974. Visitávamos a família mas ainda não a podíamos convidar para a nossa casa que se manteve clandestina durante mais algum tempo.
Inesquecíveis foram também os reencontros com os amigos que não víamos há dez anos. Muitos tinham novas moradas que tentávamos descobrir. Outros tinham casado e com pessoas que não conhecíamos ou não esperávamos. As festas, as reuniões, os jantares, os serões, as tertúlias eram vividos em festa contínua. A intervenção política, social, a revolução cultural e dos costumes, na rua, nos locais de trabalho, na universidade, nas sedes dos partidos, nos convívios, nas casas dos nossos amigos, nas nossas casas, a discussão, a disputa e o combate político com os colegas, com a família, com os amigos, com os aliados, com os adversários e com os que ainda restassem, era a nossa irreprimível e ininterrupta festa-revolução.
A luta contra o fascismo, o empenhamento total que nos exigiu, foi uma experiência tão marcante que não se esquece mais. A Revolução e o envolvimento permanente e empolgante com que nos arrebatou durante ano e meio foi uma experiência que raras gerações tiveram oportunidade de usufruir.
A actividade da ARA, parcela importante da luta dos antifascistas que ao longo de muitos anos combateram o regime salazarista e ajudaram a preparar as condições para a revolução de Abril, tinha chegado ao fim. Agora era a vez dos capitães do Movimento das Forças Armadas darem o golpe decisivo na ditadura e, com o povo, sujeito da História, novamente de pé, participarem na construção do Portugal moderno.
Lisboa, 15 de Junho de 2000.
In "ARA - Acção Revolucionária Armada" - A história secreta do braço armado do PCP, Publicações D. Quixote e de que se fala [aqui]
3 comentários:
Raimundo Narciso, Estas suas histórias comovem-me. Não imagina o que sinto por me ter cruzado consigo e ter oportunidade de conhecer esta perspectiva da História. Ouvir as coisas desta forma dá-lhes mais sentido, numa altura em que o sentido do que aconteceu está tão adulterado. Mil vezes obrigada.
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