2014/04/12

ARA - O Corte das telecomunicações

 
Marcelo Caetano tinha finalmente conseguido uma importante vitória a NATO que se distanciava (na aparência, é claro) do regime fascista aceitou realizar a reunião ministerial em Lisboa. Estávamos em 3 de Junho de 1971.
 
A ARA achou oportuno participar nos festejos. Para mais com tantas dezenas de jornalistas estrangeiros vindos a Lisboa.
 
O plano era cortar todas as telecomunicações, deixar os jornalistas e agências de comunicação sem poder comunicar com o mundo. O êxito foi total. O país ficou isolado. O centro das notícias foi, não a "tão importante" reunião ministerial da NATO, mas o caos comunicacional e a existência de uma “oposição armada”, no caso a ARA.  
 A alma do "negócio" foi o Jaime Serra, no Comando Central da ARA e o seu irmão Alberto Serra, técnico na Central de Correios e Telecomunicações, na Praça D. Luís, em Lisboa, ali junto ao Mercado da Ribeira e que deu a informação preciosa: indicou o ponto por onde todas as comunicações passavam.
 
Lembrei-me de vos falar desta  “ação” da ARA não por causa do mais importante, o grande impacte comunicacional e político que ela teve, mas por causa de um ou dois episódios picarescos de que vos darei conta a seguir.
 
O António Pedro Ferreira transportou-me até ao local. Estacionou fora das vistas do Carlos Coutinho e do António João Eusébio a quem fui entregar umas vestes de empregados dos correios, uma pequena cancela em madeira para colocar no passeio  junto  da boca de acesso à câmara subterrânea onde dormiam os cabos das telecomunicações internacionais e afinal  também as nacionais, situada por baixo do passeio da rua que circunda o edifício dos CTT. Queríamos dar ao nosso “trabalho” um aspeto interno, de trabalho dos Correios. Entreguei-lhes também, já se vê, a carga explosiva com um sistema de retardamento, um relógio de pulso adaptado à boa causa que ali nos levava.  Eles dirigiram-se para a tampa de ferro no passeio, já vestidinhos, dispuseram a cancela para que nenhum tresnoitado transeunte se precipitasse naquela goela de comunicações. Eu e o Alberto Serra ficámos por perto para o que desse e viesse, à distância que nos pareceu regulamentar de uns 40 metros, com ar de que não nos conhecíamos, nem nós nem aqueles.

 
A argola da tampa de ferro, ferrugenta, teimava em não se levantar o Carlos puxava-a  com a ponta do bico de um forte gancho de ferro que o Jaime Serra me arranjara e a argola, contumaz, não tugia nem mugia. O Carlos considerou que para grandes males grandes remédios, equilibrou o forte gancho e usou-o como alavanca com uma resoluta pezada . O forte gancho  era, afinal, de ferro forjado e… partiu-se. Drama. Ação falhada por uma insignificância. Desespero. Avanço então para eles para os amaldiçoar? Não. Num estado pouco menos que apocalíptico explicam-me o que estava à vista, o gancho partiu-se! Partiu-se!! Respondi-lhes com ar calmo, como se tivesse previsto tudo em bola de cristal. Não há problema, vou buscar outro.  Olharam-me com um ar rancoroso, como quem olha para alguém que está a gozar com a desgraça.  Dêem uma voltinha por aí e reencontramo-nos dentro de meia hora. Corri ao Pedro Ferreira ao virar da esquina, fora de olhares e fui à arrecadação da Rua Maria Pia, a Alcântara, onde tinha um segundo gancho.
 
Parece mentira? Pois parece. Quando o Jaime Serra me entregou dois ganchos em vez de um eu observei: para quê dois? Dois é melhor que um. Nunca se sabe. Respondeu-me. Poderia ter deitado fora um mas não me parecia bem e guardei os dois. O que se partiu e o gancho salvador.
O João Eusébio tentou a sorte dele e sem ajuda de calcanhar de bota lá conseguiu levantar a argola e depois a tampa de ferro. Dispôs a cancela e o Coutinho enfiou-se chão dentro. Enquanto amarrava àqueles internacionais cabos de telecomunicações o trotil amigo, para nosso desespero aproxima-se deles, badalando chaves, a despropósito, um guarda noturno. Mau (porra! ou coisa mais apropriada, foi o que, baixinho disse para comigo) Avancei uns passos para o caso de ter de ajudar à festa. Mas o guarda noturno aproximou-se disse boa noite, companheiro de trabalhadores fora de horas como ele, espreitou para dentro maquinalmente, badalou o molho de chaves e lá foi à sua vida, de guarda noturno. Respirámos fundo.

E no fim, reposta no seu sítio a pesada tampa de ferro, reencontrámo-nos do outro lado do mercado, não demos efusivos e espalhafatosos abraços, apenas um fraternal, cúmplice e vitorioso aperto de mãos. Para não chamar a atenção de ninguém. Nem mesmo das atentas, gigantes e perplexas árvores do Jardim, olhando os homens cá em baixo, rentes ao chão, há um milhões de anos a deambular pelo inóspito planeta e ainda tão longe da perfeição.

2014/04/10

Alexandra Lucas Coelho cativou um lugar no coração dos portugueses.


Alexandra Lucas Coelho escritora premiada.
Alexandra Lucas Coelho mulher de coragem.
Alexandra Lucas Coelho alvo de ataque do Sec. Est. da "Cultura".
Alexandra Lucas Coelho cativou um lugar no coração dos portugueses.
 
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Perante as criticas de Alexandra Lucas Coelho a Cavaco Silva e ao governo PSD/CDS-PP, que acusou de mandar embora os portugueses como se fosse “senhor da casa”, Jorge Barreto Xavier hostilizou a escritora, afirmando que a mesma deveria “estar grata por estarmos em democracia” e por poder dizer o que disse e que deveria agradecer ao governo pelo prémio que estava a receber.
“Referia-se ele, assim, a um prémio com décadas de existência; atribuído a alguns dos mais extraordinários escritores de língua portuguesa; cujo montante em dinheiro resulta de vários patrocínios, sendo que os públicos resultam do dinheiro dos contribuintes; e que tem atravessado os mais variados governos, sem que nunca, que me recorde, algum governante o tenha tentado instrumentalizar”, refere Alexandra Lucas Coelho na sua nota.
“Foi a mais escancarada confusão de Estado com Governo que já presenciei, para além do tom chantagista ao nível de jardim de infância das ditaduras. E, apesar dos apupos, de quem lhe gritava da plateia 'Mentira!' e 'O Estado somos nós!', o SEC insistia”, sublinha a escritora.O Secretário de Estado da Cultura declarou ainda que durante anos os portugueses se endividaram acima das suas possibilidades e que, ao contrário do que Alexandra Lucas Coelho disse, “ninguém saíra de Portugal por incentivo deste governo”.
No final da cerimónia, Jorge Barreto Xavier dirigiu-se ainda à escritora, “visivelmente irritado”, acusando-a de ter sido “primária”.
O Esquerda.net transcreve, na íntegra, a nota de Alexandra Lucas Coelho, publicada na sua página de facebook:
“Não há gravações do que se passou durante a entrega do Grande Prémio de Romance e Novela da APE, na sala 2 da Fundação Gulbenkian, a 7 de Abril. Havia jornalistas presentes mas não em trabalho, a tomar notas. Por isso não há forma de citar “ipsis verbis” o que disse o Secretário de Estado da Cultura (SEC), Jorge Barreto Xavier. Mas há algumas dezenas de testemunhas que podem acrescentar ou corrigir o que vou tentar resumir agora aqui, por tudo se ter passado numa cerimónia pública.
Sendo este prémio tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, decidiu o actual presidente, Cavaco Silva, à semelhança de anos anteriores, fazer-se representar. Neste caso, pelo seu Consultor para Assuntos Culturais, Diogo Pires Aurélio. Isto era o que eu sabia quando escrevi o discurso para a ocasião.
Já no átrio da Gulbenkian, perto da hora marcada, 18h, a APE comunicou-me que a cerimónia estava um pouco atrasada porque esperavam o Secretário de Estado da Cultura.
Quando Barreto Xavier chegou e entrámos todos para a sala, o protocolo sentou-o ao centro da mesa, junto a Diogo Pires Aurélio. Nas pontas, Gulbenkian (representada por Rui Vieira Nery), APE (José Manuel Mendes, José Correia Tavares), júri (representado por Isabel Cristina Rodrigues) e eu. Vieira Nery abriu, sucintamente; seguiram-se discursos da APE; Isabel Cristina Rodrigues leu o texto em que o júri justifica a atribuição do prémio a "E a Noite Roda". Diogo Pires Aurélio e eu levantámo-nos para que ele me entregasse o sobrescrito do prémio, um minuto de formalidade, sem palavras, para a fotografia. Chegou a minha vez de discursar, li as páginas que trazia. No fim, houve uma ovação de pé. Digo isto para dar conta da atmosfera que os representantes do poder político tinham diante de si.
A APE convidou então o SEC a intervir. Ele escolheu falar sentado, sem se deslocar ao púlpito. Uma das coisas que disse, na parte, digamos, cultural da intervenção, foi que eu bem podia declarar que não fazia ficção porque claro que fazia ficção porque é isso que um escritor faz, ficção. Foi o primeiro arroubo dirigista, que nos devia ter preparado para o que aí vinha.
Na parte, digamos, política, destaco quatro coisas: o SEC disse que eu devia estar grata por estarmos em democracia e eu poder dizer o que dissera; que durante anos os portugueses se tinham endividado acima das suas possibilidades; que, ao contrário do que eu dissera, ninguém saíra de Portugal por incentivo deste governo; e, sobretudo, que eu tinha dito que não devia nada a este governo mas que isso não era verdade porque este governo também subsidiava o prémio.
Foi a mais escancarada confusão de Estado com Governo que já presenciei, para além do tom chantagista ao nível de jardim de infância das ditaduras. E, apesar dos apupos, de quem lhe gritava da plateia "Mentira!" e "O Estado somos nós!", o SEC insistia.
Referia-se ele, assim, a um prémio com décadas de existência; atribuído a alguns dos mais extraordinários escritores de língua portuguesa; cujo montante em dinheiro resulta de vários patrocínios, sendo que os públicos resultam do dinheiro dos contribuintes; e que tem atravessado os mais variados governos, sem que nunca, que me recorde, algum governante o tenha tentado instrumentalizar. Foi a mais escancarada confusão de Estado com Governo que já presenciei, para além do tom chantagista ao nível de jardim de infância das ditaduras. E, apesar dos apupos, de quem lhe gritava da plateia "Mentira!" e "O Estado somos nós!", o SEC insistia.
Como cabe ao Presidente da República, ou seu representante, encerrar a cerimónia, a APE instou Diogo Pires Aurélio a falar. O representante do Presidente da República declinou e encerrou a sessão. No fim, cumprimentou cordatamente todos os presentes na mesa e retirou-se.
Já Barreto Xavier, aproximou-se de mim na confusão da retirada. Julguei que se vinha despedir, depois de dizer o que tinha a dizer. Nada disso. Queria dizer-me, visivelmente irritado, que o que eu fizera tinha sido de um grande "primarismo". Respondi-lhe que então devia ter dito isso mesmo ao microfone, que eu já dissera o que tinha a dizer e não lhe ia dizer mais nada. Fui andando, para contornar a mesa e acabar com a cena, mas o SEC insistia: que eu tinha sido “primária”.
O "Público" pediu-me o discurso para publicar online na tarde do dia 8. Quatro horas depois, 89 mil pessoas tinham lido o texto. Ontem, o post no FB do "Público" tinha sido visto por 170 mil. Obrigada a todos pela partilha”.

2014/04/09

Alexandra Lucas Coelho - Prémio da APE

O Público informa que "Alexandra Lucas Coelho recebeu nesta segunda-feira o prémio APE pelo romance E a Noite Roda. Este é o texto do discurso que fez, no qual critica o atual poder político.
 

Não era necessária esta surpreendente observação final do Público para ir ler a Alexandra Lucas Coelho, porque gosto da sua escrita. Mas assim, com este acicate, fui lê-la de imediato.
O discurso Já sabia que seria excelente porque leio todas as suas crónicas no Público de domingo. Leio-a no fim da leitura do jornal, depois de ler as ordens de Berlim para mais austeridade em Portugal, de ler todas as mentiras do governo, depois de me cansar com a revolta que elas provocam. Então vou ler Alexandra Lucas Coelho para descansar, para saborear a sua cativante escrita.  E fico a gostar mais do Brasil daquele Brasil que quase já conheço por ela o saber tão bem contar.
O que Alexandra Lucas Coelho diz de Cavaco e deste governo que ele engendrou! E gostei não apenas pela sua opinião sobre estes inimigos do Portugal renascido em 1974 mas em especial pela sua coragem. Coragem política. E coragem é uma qualidade que sobremaneira admiro. Coragem perante os fortes, frente aos poderosos, face aos delinquentes perigosos. Para mais ali na cerimónia. Especialmente ali ao receber o prémio. Vou dar os parabéns à Alexandra Lucas Coelho não só por escrver tão bem mas por ser, seguramente, uma Mulher de muita coragem.
O discurso completo, a não perder, está aqui no Público . Mas reproduzo aqui uma pequena parte para que ganhem vontade de ler o resto. Alexandra Lucas Coelho:

O meu país não é deste Presidente, nem deste Governo
Por  Quero agradecer em primeiro lugar à equipa da Tinta da China, minha casa, Bárbara Bulhosa, Inês Hugon, Vera Tavares, Madalena Alfaia, Rute Dias, Pedro Serpa.


Sempre quis escrever, desde que me lembro. Os livros tinham todas as vidas. Passei a adolescência a ler romances. Lia os portugueses, os franceses, os ingleses, os russos, os alemães, mais tarde os americanos, os japoneses, os levantinos. O mundo não acabava, eu lia e queria sair pelo mundo. O jornalismo era a possibilidade disso, uma bela possibilidade quando eu tinha 17 anos e as rádios piratas explodiam, ainda nem havia TSF, nem PÚBLICO, nem telemóveis, nem computadores pessoais. A minha geração viveu essa promessa de aventura no trabalho, que hoje parece arqueológica.
....

Estou a voltar a Portugal 40 anos depois do 25 de Abril, do fim da guerra infame, do ridículo império. Já é mau um governo achar que o país é seu, quanto mais que os países dos outros são seus. Todos os impérios são ridículos na medida em que a ilusão de dominar outro é sempre ridícula, antes de se tornar progressivamente criminosa.

Entre as razões por que quis morar no Brasil houve isso: querer experimentar a herança do colonialismo português depois de ter passado tantos anos a cobrir as heranças do colonialismo dos outros, otomanos, ingleses, franceses, espanhóis ou russos.

E volto para morar no Alentejo, com a alegria de daqui a nada serem os 40 anos da mais bela revolução do meu século XX, e de o Alentejo ter sido uma espécie de terra em transe dessa revolução, impossível como todas.

Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.

E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.

Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos seres para a morte, que somos, que somos.

Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo meio tudo é ganho, porque só a perda é certa.

O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo, com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o Governo nos mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.

Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o Governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este Governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página”.

Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.

Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do seu Governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo porque não temos alternativa.

Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito, inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil do que qualquer discurso oco dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá, revirando a história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da escravatura.

Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa, e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou 7000 livros, uma tonelada, para um 11.º andar, que era o que dava para pagar de aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual Presidente da República.

E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de quem não cruzou os braços quando o Governo no poder estava a acabar com o cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dívidas à Segurança Social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E, ainda assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.

Não devo nada ao Governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta, que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa, que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.

Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.

Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva 100 anos, tudo corre para acabar, sabemos. Mas enquanto isso estamos vivos, não somos sobreviventes.

Este romance também é sobre Gaza. Quando me falam no terrorismo palestiniano confundindo tudo, Al-Qaeda e Resistência pela nossa casa, pela terra dos nossos antepassados, pelo direito a estarmos vivos, eu pergunto o que faria se tivesse filhos e vivesse em 40km por seis a dez de largura, e antes de mim os meus antecedentes, e depois mim os meus filhos, sem fim à vista. Partilhei com os meus amigos em Gaza bombardeamentos, faltas de água, de luz, de provisões, os pesadelos das meninas à noite. Depois de eu partir a vida deles continuou. E continua enquanto aqui estamos. Mais um dia roubado à morte.

2014/04/06

“Coragem hoje, abraços amanhã.” Conceição Matos e Domingos Abrantes

 
 Anabela Mota Ribeiro (Texto) e
 
 
Casaram em 1969. Mas antes disso tiveram uma vida. E depois de 74 tiveram outra. E antes dessas tiveram vidas paupérrimas, onde crescia a revolta e, estranhamente, havia espaço para a felicidade. Conceição Matos e Domingos Abrantes usam nomes ternos para chamar o outro. Nomes que surpreenderiam quem os conheceu, de aço, na luta antifascista.
….
Quando diz que se ligaram, quer dizer que começaram a viver juntos?
DOMINGOS — Sim, tornámo-nos marido e mulher. Não no papel, mas pronto. Instalámo-nos provisoriamente numa casa de camaradas legais. Depois alugámos casa na Amora, na Costa da Caparica e no Montijo.
Ligaram-se depois da sua fuga de Caxias no carro blindado de Salazar que tinha sido oferecido por Hitler (1961). Falaremos da fuga mais tarde. Quando é que casam?
CONCEIÇÃO — Casámos em Peniche, em 1969.
DOMINGOS — No tempo do fascismo, como legalmente não éramos casados, ela não me podia visitar. Estivemos quase cinco anos sem visitas.
 
Tinham alguma maneira de comunicar?
DOMINGOS — Naturalmente cifrada.
CONCEIÇÃO — Uma vez, eu estava presa em Caxias, ele em Peniche. O Domingos tinha escrito estas palavras: “Na minha frente, tenho a fotografia dela. A vida a seu lado era mais bela e mais fácil. Quero-lhe muito, muito, muito. Transmite-lhe beijos e a gratidão do meu amor profundo.” Não falava em nomes, nem meu, nem dele. Só por isto, não me deram a carta. No entanto, sabiam perfeitamente que éramos marido e mulher.
Como é que se está quase cinco anos sem ver a outra pessoa, sem um contacto directo (a vossa comunicação resumia-se a cartas enviesadas), e se consegue manter um contacto com a cabeça do outro, o coração do outro, o mundo do outro?
DOMINGOS — Conhecemo-nos numa determinada circunstância, sabíamos os riscos que corríamos, estávamos preparados. A ligação afectiva ou existe ou não existe. A nossa era forte.
Como é que pensava nele (o Domingos preso, a Conceição cá fora)? A segunda prisão do Domingos é de 65 a 73.
CONCEIÇÃO — Estava sempre a pensar nele. Sabia que não o podia ver, mas ia todas as semanas a Peniche. Tentar. Estava com as outras famílias. Angariava coisas para os presos, assinaturas para protestar no Ministério da Justiça.
Fazer isso era uma maneira de estar ligada a ele.
CONCEIÇÃO — A ele e à luta e às outras pessoas. Tínhamos de ver qual era o piso que tinha mais dificuldades, mandar coisas para o pavilhão que tivesse mais faltas. Todas as semanas ia com a minha madrinha ao supermercado. Ela vivia bem e perguntava-me de que é que precisavam. Queijo, isto e aquilo. Muitas vezes, coisas que eram para o Domingos não chegavam ao Domingos.
... 
Era um tempo de mortalidade infantil muito alta. Os seus irmãos morreram crianças?
CONCEIÇÃO — A minha mãe teve 16 filhos. Eu conheci sete, contando comigo. Sobreviveram cinco. Morreram de doenças e necessidades. Mais tarde fiquei tuberculosa. Estive internada no sanatório, três meses. Tinha 18 anos. Consequência da vida difícil que estava para trás. Outra coisa que não disse: era um meio em que porta sim, porta sim, havia gente do partido. Não era preciso dizer Partido Comunista. Era aquele.
DOMINGOS — A vida nos bairros operários era terrível. Leite?, já era adulto quando bebi leite pela primeira vez.
Com que é que sonhavam quando eram crianças?
DOMINGOS — Isto hoje será difícil de entender, mas considero que tive uma infância feliz.
CONCEIÇÃO — Eu também.
DOMINGOS — Os meus pais eram pessoas paupérrimas, mas eram capazes de fazer todos os sacrifícios para dar pequeninas coisas aos filhos. A minha mãe era uma mulher de tipo prático. O meu pai era mais racional, com moral elevada. No Natal púnhamos os sapatinhos na chaminé.
CONCEIÇÃO — Nunca pus.
DOMINGOS — Um Natal, o meu pai disse: “Não ponhas o sapato que não vai aparecer nada.” Não acreditei. No dia seguinte, não estava lá nada. Porque é que digo, então, que foi uma infância feliz? Os pais saíam para as fábricas e os miúdos viviam em bandos. Jogávamos à bola, íamos para a praia (as docas). O dia inteiro entregues a nós próprios. Um grande espírito de solidariedade. Uma marca destes bairros: a solidariedade entre vizinhos.
O que era o seu pequeno-almoço quando era criança?
DOMINGOS — Um café de chicória com pão. Manteiga, não me lembro de ter comido.
CONCEIÇÃO — Em minha casa, café de cafeteira. Ficava a borra no fundo. A minha mãe já tinha alguma idade e nós dizíamos: “Ah, mãezinha, passámos tanta fome.” E ela: “Filhos, não digam isso. Nunca vos deixei passar fome. Encheram sempre a barriguinha de sopa.” Não era a sopa que hoje comemos..., grossa, com feijão. Era um caldo com meia dúzia de hortaliças.
DOMINGOS — Uma vez o meu pai foi despedido. Sensação terrível. É como desabar um prédio. Posso imaginar, hoje, a situação de muita gente. Eu, felizmente, nunca passei por isso, mas havia miúdos do meu bairro que iam à Sopa do Sidónio.
….
 
Sabemos que não quebraram na cadeia, não falaram. Pergunto-me sempre onde é que estas pessoas se fizeram tão resistentes, tão valentes.
CONCEIÇÃO — Não sabia que era valente. Vou contar-lhe uma história. Tinha uma amiga no Barreiro que era muito combativa. Um ídolo. Íamos juntas para as manifestações, ela sempre na primeira linha. Entretanto, soube que tinha sido presa e que tinha falado. “Se ela falou, que é que vai ser de mim?” Comecei a ter tantas dúvidas... Sou presa, 1965. A PIDE arromba a porta com pé de cabra, entra, pistolas apontadas ao meu peito. “Mãos ao ar!” Eu tive a certeza (não podia ter a certeza..., mas tinha a certeza) de que não ia falar. Uma coisa em mim...
Era a zanga, a fúria contra os pides? O que é que crescia em si e a fazia pensar que não falaria?
CONCEIÇÃO — Não podia trair o partido. Não podia falar de outras pessoas que, além do mais, também iam ser torturadas.
Como é que o Domingos sabia que era valente?
 
DOMINGOS — O termo “valente” não sei se é adequado.
Não? Não se trata de valentia?
DOMINGOS — Já perguntaram à Conceição se se considerava uma heroína. É uma questão de dever. Uma pessoa que é presa tem um dever. Assumiu um compromisso para com os seus camaradas, os seus ideais, tem o dever de os defender.
Na sua primeira prisão, em 1965, foi alvo de uma violência e uma tortura humilhantes. Foi interrogada na António Maria Cardoso, esteve em Caxias e depois foi novamente interrogada na sede da PIDE. Como é que era vista dentro da cadeia pelas outras camaradas?
CONCEIÇÃO — Com um certo respeito. Estive muito tempo isolada. Fiquei 17 dias numa cela, sem nada.
Como sabe que foram 17 dias?
CONCEIÇÃO — Com a unha, riscava os dias num armário. Estava todos os dias a pensar: “Quando é que me vêm buscar?” Vi passar uma carrinha e pareceu-me ver o Domingos.
DOMINGOS — Ela não sabia que eu estava preso.
CONCEIÇÃO — Parecia a cara dele, mas estava careca.
DOMINGOS — Tinham-me rapado o cabelo.
CONCEIÇÃO — Depois da tortura do sono, espancamento, de me obrigarem a fazer as necessidades no chão, de serem limpas com a própria roupa... Iam despindo a minha roupa, peça a peça. Queriam obrigar-me a levar a roupa suja para a casa de banho, mas não levei.
Obrigaram-na a urinar e defecar na sala de interrogatório. Quanto tempo durou esse interrogatório?
CONCEIÇÃO — Três dias e três noites. Uma dizia: “Tenho vergonha de ser mulher. Não vai à casa de banho porque não quer. Fale e pode ir.” Logo, eu é que era culpada de não ir à casa de banho. Voltei para Caxias. Ouço na cela a bater na parede. Sabia que se comunicava assim. Nas pancadas perguntaram: “Tens um selo que vendas a um camarada nosso?” O que perguntavam logo: quem és tu?, onde foste presa? Disseram-me que no Montijo tinha sido preso um camarada muito responsável. Comecei outra vez a abanar... Se calhar o Domingos estava mesmo preso. Mas não tinha certezas nenhumas. “Foste torturada?” Contei. E espalharam.
Incomodou-a que se soubesse?
CONCEIÇÃO — Não, não incomodou. Até foi bom. A minha família não sabia de mim. Perguntaram: “Falaste?”, “Não”, “Coragem hoje, abraços amanhã.”
DOMINGOS — Há agora uma peça de teatro com este título.
Essa frase era só uma saudação ou também funcionava como senha?
CONCEIÇÃO — Era só uma saudação. (Sabes como é que tive a certeza de que estavas preso? Pela Sofia Ferreira [dirigente do partido], que passou por mim no corredor e me disse.)
A PIDE sabia que era comum, com a tensão emocional, que aparecesse a menstruação. No documentário de Susana Sousa Dias, 48, várias mulheres falam nisso. Era uma humilhação de género.
CONCEIÇÃO — Eu tive a menstruação. E não tinha com que me limpar. O Tinoco dizia: “Ele está muito preocupado que lhe venha a menstruação e não tenha pensos higiénicos.” Ele — o Domingos. Os espancamentos (e tive muitos), a gente aguenta. Os pontapés, os murros, o flash nos olhos. Agora, aquelas torturas morais... a mim doeram-me muito mais. Doeu-me terem-me despido à frente daquelas pessoas. Entraram todos, dez. Tentei esconder-me atrás de uma mesa, mas a pide Madalena empurrou-me para o meio da sala. Isto depois de me espancar: ‘Fala, sua puta. Não te rias’ Chora, tens de chorar’.” Queria obrigar-me a chorar!
E nunca fraquejou. Pensou em quê? Apoiou-se em quê?
CONCEIÇÃO — Lembrei-me de um livro que tinha lido há pouco, Arco-Íris, da Wanda Wasilewska. Era um livro sobre uma moça na estepe, grávida, a baioneta atrás. Comecei aos gritos: “Um, dois, três, quatro, dez. Dez monstros, dez canalhas, bandidos. Mas o povo há-de vingar-se.”
Foi diferente na segunda vez em que foi interrogada?
CONCEIÇÃO — Dessa vez, despiram-me completamente. Na primeira vez, tinha ficado em combinação. Passados uns dias mandaram-me a roupa suja num papel pardo. Tive de a lavar no lavatório. Não tinha mais nada para vestir.
DOMINGOS — Aquilo é passado. Interviemos numa revolução, vimos o resultado de uma luta. A realização de um sonho ajudou a superar o que correu mal. O 25 de Abril restituiu-nos a vida. Passámos a ser um casal normal. Vamos ao cinema, aos comícios, temos convivências, vemos a família. Um revolucionário, a sua alegria é o empenhamento. Fomos felizes, à nossa maneira, nesta batalha.