2006/11/29

Almeida Santos: "Quase Memórias"


“Traição de Omar” faz correr lágrimas em Spínola”

(Excertos, 2.° volume, pp. 66-70)
In Público 2006-11-28

Na véspera da partida da delegação portuguesa que ia iniciar em Dar-es-Salam as negociações com uma representação da Frelimo [ 15 de Agosto de 1975] recebeu-se em Lisboa a notícia, de fonte militar, de que uma companhia das Forças Armadas portuguesas havia sido “emboscada e aprisionada” por forças da Frelimo, em Omar, no Norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia.
Justamente indignado o Presidente Spínola exigiu que antes de dar inicio às negociações e como condição desse início a delegação da Frelimo apresentasse desculpas à delegação portuguesa, por essa traiçoeira atitude das suas forças.
Assim fizemos. Mas com surpresa nossa, Samora Machel começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar:
– Emboscada de Omar?! Uma companhia aprisionada?!...
Por fim fez-se luz no seu espírito:
— O quê? Aquela “entrega” dos vossos soldados?
E voltando-se para um qualquer assessor da sua delegação:
— Traz a cassete...
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida, e ouvi-la ficou a constituir uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.
O que nós ouvimos foi o registo sonoro de uma “entrega”, não apenas voluntária, mas insistentemente solicitada
-Vocês quem são?
(Veio a identificação.)
- E querem entregar-se porquê?
— Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!
Não garanto a exactidão das palavras — cito de memória — mas asseguro o sentido delas.
Seguiram-se os abraços, o “pega lá a minha arma, meu irmão”, etc., etc. É claro que não havia lugar a exigência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo.
Mal chegados; a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.
— Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete...
— Uma cassete?!
— É verdade! Uma cassete!
Logo se pediu um leitor de cassetes. Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás do seu inseparável monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? Se aquilo era para ele o que era para mim, inveterado paisano, o que não seria para o lendário cabo-de-guerra?... (...)