"Não conheço nenhuma mulher que goste de ou queira ser prostituta" - diz a minha amiga Inês Fontinha, por quem temos todos uma dívida de gratidão, na entrevista da Renascença Diga lá Excelência transcrito no Público de 2006-01-09.
por Sofia Branco (PÚBLICO) e Paulo Magalhães (Rádio Renascença).
"Inês Fontinha, a convidada do programa Diga Lá Excelência, é directora de O Ninho, uma instituição particular de solidariedade social fundada em 1967. Esta madeirense de 62 anos, formada em Sociologia, nomeada para o Nobel da Paz, condecorada por Jorge Sampaio e homenageada pela Assembleia da República com o Prémio de Direitos Humanos trabalha há 30 anos na reinserção social das pessoas que se prostituem. "
PÚBLICO - Qual é o perfil da pessoa que se prostitui?
INÊS FONTINHA - Há um conjunto de factores que interagem entre si e não podemos isolar um, nem um tem mais peso do que o outro. Entre eles estão o trabalho infantil, a violação ou o abuso sexual na infância, o desamor.
O campo pró-legalização fala em histórias de vida "normais", de mulheres casadas, com filhos, muitas vezes com outras profissões, que optam pela prostituição. Esta opção parece-lhe totalmente descabida?
Parece-me uma análise incorrecta da realidade. Uma mulher que tem três ou quatro filhos, ganha o ordenado mínimo, tem uma renda de casa para pagar e o dinheiro acaba-lhe no dia 10 ou 15 pode prostituir-se para alimentar os filhos. Se falar com ela, vai perceber que ela não tem o plano de permanecer na prostituição, o projecto é sempre a saída.
O Ninho já lidou com sete mil mulheres. Não é uma gota de água, já que há quem aponte para a existência de 30 mil prostitutas?
Naturalmente. São números preocupantes... Dizem 30 mil e podem ser muitas mais. A prostituição em Portugal não está quantificada. O que interessa é tentarmos encontrar em conjunto soluções para esta situação. Quando vivemos numa sociedade que se diz moderna, pergunto por que é que o sexo pago ainda existe?
Por que existe?
Vivemos numa sociedade em que, apesar dos avanços no campo dos direitos das mulheres, muita gente ainda concorda com uma situação em que a mulher está completamente subalternizada ao homem, é um objecto, um instrumento de prazer do homem.
Há um estudo da Universidade do Minho que diz que os clientes são pessoas perfeitamente socializadas, "normais", sem comportamentos patológicos. Qualquer homem é um potencial cliente de prostituição?
O conhecimento que temos em relação aos clientes é indirecto, através das mulheres que acompanhamos. O que sabemos é que o cliente é proveniente de todas as classes sociais. Apenas o local onde procuram a mulher é diferenciado consoante o seu poder de compra, de um modo geral. Esse estudo também aponta para a legalização da prostituição, concedendo ao homem o poder legítimo de comprar o sexo a uma mulher.
Não é o poder legítimo de a mulher o poder vender?
Não. É o poder legítimo de o homem querer e poder comprar. Não conheço nenhuma mulher que goste de ou queira ser prostituta. Não conheço nenhuma família, por muito desorganizada que esteja, que tenha como projecto de vida para os seus filhos serem prostitutas ou prostitutos.
A Suécia penaliza desde há alguns anos os clientes. A solução poderia passar por aí em Portugal também?
Temos de reflectir muito sobre a nossa realidade. Estamos preparados para punir o cliente? A Suécia considera que a igualdade de género passa pela punição do cliente e esteve anos a preparar a opinião pública, tanto que hoje 80 e tal por cento da população são favoráveis a esta medida. É completamente diferente de Portugal, em que o cliente é rei e senhor. Não é ter uma lei apenas no papel, é para a fazer cumprir.
Não concorda com a legalização?
Não se legaliza algo que é contra os direitos humanos. O que não quero para mim, não quero para os outros.Acha que o vazio legal existente...Não há vazio legal. Temos um sistema abolicionista, que imperou na Europa durante muitos anos. Porquê este frenesim de alguns países europeus em legalizar a prostituição, dizendo que vão combater o tráfico? É falso, está provado! Legalizando a prostituição, fomenta-se o tráfico. A Holanda é um exemplo disso.
Mas o sistema actualmente existente em Portugal funciona?
Não funciona porque não existe vontade política de fazer prevenção nem de inserir as pessoas.
O que falta?
É necessário invertermos a política que temos neste momento. O ordenado mínimo não chega para uma mulher sobreviver sozinha com um filho, a habitação é um problema grave, as rendas vão aumentar... Há uma desigualdade profunda.
Encara sempre as prostitutas como vítimas?
Acho que lhes deveríamos dar um verdadeiro estatuto de vítima.
Mas isso não as menoriza, fazendo-as depender sempre de ajuda externa, negando-lhes a autodeterminação?
Não, de modo algum. Concordo que devemos dar poder às pessoas para decidirem da sua própria vida. No trabalho de rua que fazemos, elas desejam mudar a sua situação e dizem-nos muitas vezes que ficam mais um ano até resolverem os problemas e depois vão-se embora, mas passado um ano elas mantêm-se lá. Porque a desvalorização é profunda. Por isso, a ajuda externa é de extrema importância, para poder abrir portas e dizer: há esta possibilidade. O que falta são os apoios necessários para dar reais oportunidades às pessoas.
Centra-se na reinserção social. Como encara as declarações do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Jorge Lacão, que afirmou, em entrevista ao PÚBLICO, que "a via da reinserção social é fictícia"?
Se disse isso, ignora o que é a reinserção social. Das sete mil mulheres que passaram pelo Ninho, 90 por cento estão integradas. Se 90 por cento estão integradas, não se aposta na reinserção? Não estou a perceber. É necessário é dar meios, isso sim. E O Ninho não tem, anda sempre à procura de meios.
Falamos sempre de mulheres no caso da prostituição. Há homens que vão ter com O Ninho?Alguns. A percentagem é pequena. Devido às carências, não temos resposta para essas pessoas.
A resposta é diferente para homens e mulheres, é isso?
A violência nos homens ainda é mais profunda.
Porquê?
Porque um cliente é sempre um homem... Eles contam coisas inimagináveis.
Nunca falam de clientes mulheres?
Não, não conhecemos essa realidade.
ão estão as pessoas que se prostituem mais protegidas se forem encaradas como trabalhadoras?
Vender o corpo é um trabalho? Fala-se muito em trabalho digno. Será que isto é um trabalho digno? A prostituição não é um trabalho. Ser penetrada 20 vezes ao dia é satisfatório para alguém? Estamos a falar em prostituição!
Trabalha no sentido de acabar com a prostituição um dia?
O Ninho é membro fundador de uma federação europeia para o desaparecimento da prostituição, criada porque a comunidade europeia está a ser pressionada pelo proxenetismo organizado no sentido da legalização.
Não é uma utopia querer acabar com a prostituição?
A nossa história é feita de utopias.
por Sofia Branco (PÚBLICO) e Paulo Magalhães (Rádio Renascença).
"Inês Fontinha, a convidada do programa Diga Lá Excelência, é directora de O Ninho, uma instituição particular de solidariedade social fundada em 1967. Esta madeirense de 62 anos, formada em Sociologia, nomeada para o Nobel da Paz, condecorada por Jorge Sampaio e homenageada pela Assembleia da República com o Prémio de Direitos Humanos trabalha há 30 anos na reinserção social das pessoas que se prostituem. "
PÚBLICO - Qual é o perfil da pessoa que se prostitui?
INÊS FONTINHA - Há um conjunto de factores que interagem entre si e não podemos isolar um, nem um tem mais peso do que o outro. Entre eles estão o trabalho infantil, a violação ou o abuso sexual na infância, o desamor.
O campo pró-legalização fala em histórias de vida "normais", de mulheres casadas, com filhos, muitas vezes com outras profissões, que optam pela prostituição. Esta opção parece-lhe totalmente descabida?
Parece-me uma análise incorrecta da realidade. Uma mulher que tem três ou quatro filhos, ganha o ordenado mínimo, tem uma renda de casa para pagar e o dinheiro acaba-lhe no dia 10 ou 15 pode prostituir-se para alimentar os filhos. Se falar com ela, vai perceber que ela não tem o plano de permanecer na prostituição, o projecto é sempre a saída.
O Ninho já lidou com sete mil mulheres. Não é uma gota de água, já que há quem aponte para a existência de 30 mil prostitutas?
Naturalmente. São números preocupantes... Dizem 30 mil e podem ser muitas mais. A prostituição em Portugal não está quantificada. O que interessa é tentarmos encontrar em conjunto soluções para esta situação. Quando vivemos numa sociedade que se diz moderna, pergunto por que é que o sexo pago ainda existe?
Por que existe?
Vivemos numa sociedade em que, apesar dos avanços no campo dos direitos das mulheres, muita gente ainda concorda com uma situação em que a mulher está completamente subalternizada ao homem, é um objecto, um instrumento de prazer do homem.
Há um estudo da Universidade do Minho que diz que os clientes são pessoas perfeitamente socializadas, "normais", sem comportamentos patológicos. Qualquer homem é um potencial cliente de prostituição?
O conhecimento que temos em relação aos clientes é indirecto, através das mulheres que acompanhamos. O que sabemos é que o cliente é proveniente de todas as classes sociais. Apenas o local onde procuram a mulher é diferenciado consoante o seu poder de compra, de um modo geral. Esse estudo também aponta para a legalização da prostituição, concedendo ao homem o poder legítimo de comprar o sexo a uma mulher.
Não é o poder legítimo de a mulher o poder vender?
Não. É o poder legítimo de o homem querer e poder comprar. Não conheço nenhuma mulher que goste de ou queira ser prostituta. Não conheço nenhuma família, por muito desorganizada que esteja, que tenha como projecto de vida para os seus filhos serem prostitutas ou prostitutos.
A Suécia penaliza desde há alguns anos os clientes. A solução poderia passar por aí em Portugal também?
Temos de reflectir muito sobre a nossa realidade. Estamos preparados para punir o cliente? A Suécia considera que a igualdade de género passa pela punição do cliente e esteve anos a preparar a opinião pública, tanto que hoje 80 e tal por cento da população são favoráveis a esta medida. É completamente diferente de Portugal, em que o cliente é rei e senhor. Não é ter uma lei apenas no papel, é para a fazer cumprir.
Não concorda com a legalização?
Não se legaliza algo que é contra os direitos humanos. O que não quero para mim, não quero para os outros.Acha que o vazio legal existente...Não há vazio legal. Temos um sistema abolicionista, que imperou na Europa durante muitos anos. Porquê este frenesim de alguns países europeus em legalizar a prostituição, dizendo que vão combater o tráfico? É falso, está provado! Legalizando a prostituição, fomenta-se o tráfico. A Holanda é um exemplo disso.
Mas o sistema actualmente existente em Portugal funciona?
Não funciona porque não existe vontade política de fazer prevenção nem de inserir as pessoas.
O que falta?
É necessário invertermos a política que temos neste momento. O ordenado mínimo não chega para uma mulher sobreviver sozinha com um filho, a habitação é um problema grave, as rendas vão aumentar... Há uma desigualdade profunda.
Encara sempre as prostitutas como vítimas?
Acho que lhes deveríamos dar um verdadeiro estatuto de vítima.
Mas isso não as menoriza, fazendo-as depender sempre de ajuda externa, negando-lhes a autodeterminação?
Não, de modo algum. Concordo que devemos dar poder às pessoas para decidirem da sua própria vida. No trabalho de rua que fazemos, elas desejam mudar a sua situação e dizem-nos muitas vezes que ficam mais um ano até resolverem os problemas e depois vão-se embora, mas passado um ano elas mantêm-se lá. Porque a desvalorização é profunda. Por isso, a ajuda externa é de extrema importância, para poder abrir portas e dizer: há esta possibilidade. O que falta são os apoios necessários para dar reais oportunidades às pessoas.
Centra-se na reinserção social. Como encara as declarações do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Jorge Lacão, que afirmou, em entrevista ao PÚBLICO, que "a via da reinserção social é fictícia"?
Se disse isso, ignora o que é a reinserção social. Das sete mil mulheres que passaram pelo Ninho, 90 por cento estão integradas. Se 90 por cento estão integradas, não se aposta na reinserção? Não estou a perceber. É necessário é dar meios, isso sim. E O Ninho não tem, anda sempre à procura de meios.
Falamos sempre de mulheres no caso da prostituição. Há homens que vão ter com O Ninho?Alguns. A percentagem é pequena. Devido às carências, não temos resposta para essas pessoas.
A resposta é diferente para homens e mulheres, é isso?
A violência nos homens ainda é mais profunda.
Porquê?
Porque um cliente é sempre um homem... Eles contam coisas inimagináveis.
Nunca falam de clientes mulheres?
Não, não conhecemos essa realidade.
ão estão as pessoas que se prostituem mais protegidas se forem encaradas como trabalhadoras?
Vender o corpo é um trabalho? Fala-se muito em trabalho digno. Será que isto é um trabalho digno? A prostituição não é um trabalho. Ser penetrada 20 vezes ao dia é satisfatório para alguém? Estamos a falar em prostituição!
Trabalha no sentido de acabar com a prostituição um dia?
O Ninho é membro fundador de uma federação europeia para o desaparecimento da prostituição, criada porque a comunidade europeia está a ser pressionada pelo proxenetismo organizado no sentido da legalização.
Não é uma utopia querer acabar com a prostituição?
A nossa história é feita de utopias.
O Ninho vive do mesmo subsídio desde 1987
Como surgiu o problema da prostituição na sua vida?
Foi através de um amigo meu que dava apoio ao Ninho e me convidou a visitar a instituição. Era uma problemática que eu desconhecia, que estava muito longe de mim. Uma das coisas que mais me perturbou na altura foi ouvir as histórias de vida daquelas mulheres. Para mim foi uma tomada de consciência, a todos os níveis, mas fundamentalmente política.
Como lida com essas histórias complicadas no seu dia-a-dia?
Todos os dias vamos aprendendo coisas novas com as mulheres que estamos a acompanhar. Não podemos sofrer com elas mas compreender o sofrimento e minimizá-lo.
Lida da mesma maneira com cada uma das mulheres que lhe aparece?
Não. Cada situação é uma situação. E cada pessoa sente a sua situação de forma diferente. Na história de vida das mulheres que acompanhamos há factores comuns, de ordem psicológica e social. Não quero dizer com isto, de modo algum, que todas as pessoas que passaram por situações semelhantes irão prostituir-se amanhã ou daqui a um mês. Mas há uma subcultura de pobreza, em que as pessoas ficam vulneráveis, ficam fragilizadas e, portanto, são presas fáceis para o recrutamento.
Sente-se recompensada com os prémios que O Ninho vai tendo?
É sinal que o trabalho é reconhecido. Mas esses prémios não se traduziram em mais apoios. É um reconhecimento, e claro que isso é gratificante. Mas não passa de um reconhecimento.
De que vive O Ninho?
O Ninho tem atravessado dificuldades imensas. Vive de um subsídio mensal dado pela segurança social, que nunca foi actualizado desde 1987.
In SOLIDARIEDADE
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"As histórias dramáticas destas mulheres não começam apenas quando entram para o mundo da prostituição, mas logo na infância, segundo Inês Fontinha, presidente da associação O Ninho, que apresenta números chocantes. Um inquérito feito a sete mil mulheres portuguesas acompanhadas ao longo de 10 anos denuncia que "cerca de 90 por cento das prostitutas foram vítimas de violação ou abuso sexual entre os oito e os 12 anos", afirmou a presidente da instituição que há 38 anos apoia as mulheres vítimas do submundo da prostituição... [link]