A experiência de dezenas de anos de clandestinidade transmitida no PCP de clandestino a clandestino, mostrava que se poderia, feito anónimo cidadão, ir a um registo civil e declarar a existência de mais uma portuguesa, registá-la com o verdadeiro nome que lhe destinávamos para uma vida bem aventurada e também com os verdadeiros nomes dos pais.
Dar nomes falsos dos pais defendia melhor a nossa situação. No entanto a probabilidade de os funcionários de um pobre registo civil de bairro terem no ouvido o nome de todos os clandestinos que a PIDE procurava era negligenciável. O que sabíamos é que declarar nomes falsos dos pais num registo implicaria mais tarde muitos trabalhos, quiçá vãos, para desfazer a bem intencionada tramóia e a criança arriscava-se a ficar com pais falsos. Talvez mesmo incapaz, no futuro, de traçar a sua árvore genealógica senão até Adão e Eva pelo menos até um avoengo suficientemente distante e incontrolável para o apresentar como bastante ilustre, jacobino ou de sangue azul, conforme os gostos.
A dificuldade estava, nas circunstâncias do nascimento da Nô, em resolver o assunto com os nossos verdadeiros documentos porque o meu bilhete de identidade, tinha ultrapassado há muito o prazo de validade. Teria de o renovar e isso não podia fazer. A Maria ainda estava pior pois só tinha a cédula de nascimento.
Fomos a um registo civil criteriosamente escolhido por estar numa zona sossegada da cidade e assim não nos expormos aos olhos de muitos e pouco fiáveis transeuntes. Revelei logo ao funcionário que nos atendeu as carências de identificação. Como prova das nossas boas intenções e confiabilidade, pouco mais podíamos apresentar do que o nosso bebé que, como bons pais, achávamos o mais belo do mundo. Que não havia problema adiantou-me o funcionário. Bastava levar comigo duas testemunhas. Agradeci-lhe o conselho considerei que era uma alternativa óptima e retirei-me não a buscar, como lhe disse, as inexistentes testemunhas, mas à procura de outro registo civil menos exigente. No segundo a empregada garantiu-me que os bilhetes de identidade em ordem eram absolutamente indispensáveis. Já arreliado e só para oferecer alguma resistência, insisti, falsamente claro, que lhe trazia duas testemunhas. Que isso não chegava, garantia-me ela. Os bilhetes de identidade eram indispensáveis, estava na lei.
Qual lei qual carapuça - comecei eu a argumentar irritado com a burocracia quando reparei já em retirada, que não era de minha conveniência dizer que acabara de vir de um registo em que me disseram exactamente o contrário - é claro que a funcionária me perguntaria então porque é que não ia a ele. Virei-lhe as costas com má cara e nem me despedi.
Procurámos um terceiro Registo. Não era tão simples assim. Tinha de entrar num comércio de pouca clientela. Pedir a lista telefónica. Procurar a morada de mais um registo e arranjar uma desculpa para não telefonar. Depois começar a ver como deveríamos lá chegar. Estudar os caminhos. Táxi? Apanhá-lo onde? E sair do táxi em que local de pouco movimento? Tudo isto com o bebé ao colo. Por um lado atrapalhava os movimentos mas por outro melhorava as condições conspirativas. Nenhum pide iria pensar que clandestinos como nós, pudessem andar assim com total desfaçatez pela rua fora com um bebé verdadeiro ao colo.
Lá fomos. Mas também neste registo civil o funcionário que nos atendeu achou que nos faltava qualquer coisa e não se deu por satisfeito.
- O bilhete de identidade da mãe ainda podia dispensar mas o do pai... sabe, o pai é o chefe da família. É absolutamente indispensável. Argumentou.
- Mas com base em que lei? - Arrependi-me logo do meu ar reivindicativo, demasiado insolente para quem não tem vantagem nenhuma em dar nas vistas. O homem franziu o sobrolho e preparava já outra linha de exigências e explicações quando me rendi dizendo que se ele era isso pois então ia actualizar o bilhete de identidade.
Já desesperados entrámos em mais um registo. Ficava no Campo dos Mártires da Pátria. Não sei se o nome do Largo teve papel propiciador, o certo é que depois de várias explicações, consultas entre o funcionário e o conservador, choros do bebé, tentativas frustradas da mãe para o apaziguar já com a mama de fora, nos disseram que não era preciso nada. Bastavam as nossas declarações e o meu bilhete de identidade mesmo fora do prazo. Aos nossos ouvidos soou como música celestial. Suspirámos de alívio. Aconteceu-me até entrar, mas só um bocadinho! naquela euforia suicida dos mergulhadores que prolongam, temerários, a estadia no fundo dos mares quando o oxigénio começa a escassear. Assim eu com aquelas facilidades e a alegria de ver o problema resolvido o que me veio à cabeça dizer foi: mas que incompetência! Não exigem nada? Assim até um qualquer clandestino pode registar os filhos! Claro que não disse nada e até me assustei só de o pensar.
Tínhamos de fazer prova de casados para a rapariga ficar filha legítima. Decidimos ali mesmo prescindir dessa prova de respeitabilidade. O que queriamos é que a Ilda Leonor quando crescesse pudese ter pais e saber como lhes chamar. Dissémos ao conservador - com um ar entre o cúmplice e envergonhado - que não estávamos casados. Estávamos juntos.
- Sabe como é..., problemas que surgem. - Eu dava-lhe a oportunidade para ele imaginar mais um de entre tantos casos que todos conhecemos. Os pais da noiva que não querem o casamento. A falta de meios para fazer boda ou o "copo de água", arranjar enxoval, alugar casa, comprar mobília. Já não falo em dramas de Romeu e Julieta, Inês de Castro ou Amor de Perdição. Que nos tempos que corriam não havia dinheiro nem vagares para isso. O conservador, homem justo, disse que sim com a cabeça, que sabia como são estas coisas.
O futuro mantinha-se tão incerto, sabíamos lá como ia ser. Dávamo-nos por satisfeitos com a situação. Trazíamos de volta, registada, a nossa filha mas... ilegítima. Na situação em que estávamos legítima ou ilegítima tanto se nos dava. Afinal ou a ditadura nunca mais acabava e no nosso caso como não respeitávamos a sua legitimidade não nos sentíamos diminuídos ou ela vinha abaixo e então as legitimidades eram outras!
Assim era a legislação do fascismo. Se os pais não estavam casados podiam registar os filhos mas só como filhos ilegítimos. Uma vergonha. A vergonha não a assumimos como nossa, deixávamo-la para a ditadura.
Legitimámos a Nô, como nossa filha, quando legalizei o casamento em 27 de Novembro de 1975 e nesse mesmo dia registámos o filho que estava duplamente clandestino.
O país ainda estava longe de ter serenado e o nosso registo de casamento e a pequena festa que planeáramos ressentiu-se disso. Tinhamos marcado a data há muito tempo e não sabíamos que a revolução ia acabar em 25 de Novembro de 1975, com uma confrontação militar, dois dias antes do nosso casamento oficial. O registo foi na Avenida Guerra Junqueiro em Lisboa, perto do local onde estava, na Avenida Óscar Monteiro Torres, num local reservado. Por causa do 25 de Novembro. E porque a reunião era com Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Ângelo Veloso.
- Camaradas, como vos disse, tenho de interromper a reunião. Tenho o registo do casamento marcado para daqui a um quarto de hora.