2013/07/09

Tertúlia do NAM Índios da Meia Praia na Casa da Achada

Foto de Inês Castro

Da direção do NAM e meu vizinho, o João Caixinhas achou bem dar-me boleia a mim e à Maria. Chegados à Rua da Madalena labirintou por aí acima até encontrar um passeio suficientemente próximo da Casa da Achada para estacionar.
Ao entrar encontrei amigos que há anos não via. Esperavam-nos os Índios da Meia Praia que o Movimento Não Apaguem a Memória – NAM , levava ao Centro Mário Dionísio na Casa da Achada. Mouraria, escadinhas, becos, vielas, larguinhos, casas de muitas cores, lisboetas embasbacados a olhar para as janelas, para as flores, para as mulheres velhas nas varandas e para as mulheres novas na rua a orientarem o trânsito da miudagem em correria desaustinada. Aturdido com Lisboa tão castiça, lusitana, fenícia, cartaginesa, ateniense, romana, mourisca, visigoda, entrei. Mesmo à saída, a estender-me a mão, o Rui Mário, que não é por ser meu amigo desde Ciências na Rua da Escola Politécnica que o considero o maior crítico de artes plásticas deste desorientado país e logo a seguir, com a irmã, o João Andrade Santos que há mais tempo ainda não via. Olhei e a toda a volta o espaço interior se iluminava com uma rara exposição de três dezenas de belíssimos quadros do pintor e matemático José Júlio (Andrade Santos). Percebi então que a presença de Rui Mário, assim como dos filhos do pintor se devia à exposição e a visita guiada que antecedera na programação da Casa os nossos Indios da Meia Praia .
Logo logo ali à frente o arquiteto José Veloso. O Zé Veloso, o pai verdadeiro do SAAL dos Índios da Meia Praia dei-lhe um abraço e cumprimentei a seguir Eduarda Dionísio, anfitriã de todos nós que jubilosamente nos recebia. Estava eu nesta festa de reencontros e logo a Clara Boléu – há que anos…- me dava uns papelinhos com a programação "a não perder" da Casa da Achada. E ao lado o João Rodrigues com o Pedro, filho de ambos que ainda há pouco tinha 4 anos e agora estava ali com trinta e tal e uma barba preta que antes não tinha e que depois de José Veloso nos apresentar os seus Índios da Meia Praia, dirigiu o coro da Casa para nosso regalo. Olho e vejo a Judite! - Vais para Lagos este ano? Ainda não sei. Ah e quem é esta linda miúda? Tua neta? A Laura tem 17 anos. Olha este Senhor (este Senhor era eu) era um amigo do avô. Foi há tanto tempo... Há tantos nos já que o Zé Monteiro morreu e ali mesmo ao lado a confirmar tudo o Ernâni Pinto Basto.
Com que então uma Casa cheia de amigos! Não é desses que estou a falar. Era agora de amigos do Facebook ! Estavam os amigos da direção do NAM e associados que aproveitam e vêm
como a minha amiga Luísa Corte Real que é de Lagos e quase de certeza foi ela que se lembrou de trazer os Índios à Casa da Achada como iniciativa do Movimento,
como a minha amiga Luísa Tiago de Oliveira, conheces ali aquele? É o Ernâni, filho do Ludgero Pinto Bastos que foi do CC e companheiro de Cunhal naqueles tempos de 40 de que já ninguém se lembra. Eu a explicar e ela a acrescentar isto e aquilo porque é historiadora e afinal sabia tudo a respeito do Pinto Basto. Com estas credenciais resolvi mesmo apresentar-lhe o filho e para ali ficaram a falar, enquanto eu me virei com a Maria Machado a conversar com a Manuela Almeida que desta vez não veio à tertúlia com o Tó. Mais à frente a Maria Manuel e o marido, o Daniel Ricardo que eu responsabilizo por a revista Visão andar tão boa, já se acomodavam para o início da sessão. Na outra ponta estava a Inês Castro que nos havia de presentear no Facebook com fotografias que comprovam tudo o que digo e ainda um filme para maior glória da Casa e do Coro da Achada.
A Helena Pato, presidente da direção do NAM já com todos quase sentados disse que havia horários a cumprir e que estava ali o arquiteto José Veloso que veio de Lagos para nos contar a história mítica dos Índios da Meia Praia e da iniciativa do SAAL que deu casa a quem nunca sonhara com tal exagero.
O meu amigo Zé Veloso disse logo que não eram índios mas pescadores muito pobres que arrimaram ali a pouco e pouco, já perfaziam umas dezenas de famílias e que escondidas atrás das dunas pescavam conforme podiam com umas redes pobres como eles e começaram a fazer as suas casas primeiro com umas redes velhas da pesca mas que por serem redes chovia em casa. Juntaram então folhas, restos de coisas perdidas e fizeram umas barraquinhas de colmo que afastava a chuva e onde cabiam com a mulher e os filhos. Nem Lagos sabia deles nem eles sabiam de Lagos.
Foi então que aconteceu em 1974 aquela espécie de golpe militar que afinal era Movimento e depois virou revolução ainda que interrompida e abriu as portas à Liberdade.
Foi então que aconteceu... e o Zé Veloso que era arquiteto e agora em Julho de 1974, com a revolução a querer começar decidiu que não havia direito que os Índios que afinal eram pescadores continuassem assim a ser índios e a viver como quem não vivia nuns buracos que eram choças.
Foi o princípio do SAAL ali em Lagos. O arquiteto José Veloso foi à Meia Praia que fica meia encosta abaixo da sua bela casa e começou a falar-lhes. Que agora com o 25 de Abril de 1974 já podiam ser pessoas. Hum... eles desconfiaram e até lhes pareceu ser perigoso começarem agora assim, sem mais, também a ser pessoas como as outras. Não foi fácil. Mas quando o arquiteto José Veloso disse que havia dinheiro do ministério, onde estava o Nuno Portas, para as casas deles pareceu-lhes que a conversa começava a desconversar, podia lá ser! alguns até se assustaram. Que não. Tinham vivido até ali portanto era melhor que se esquecessem que existiam. Visitas foram só da GNR e era melhor não terem visitas.
Mas… e isso foi a sorte dos pescadores… havia mulheres. Além dos pescadores havia as mulheres dos pescadores e as filhas dos pescadores que ao contrário dos maridos e dos pais embarcadiços tinham os pés bem assentes em terra firme. E foram as mulheres que, como diria o meu vizinho que é comentarista de TV, viram no arquiteto José Veloso uma "janela de oportunidades". Porque torna e porque deixa o Zé Veloso explicou tudo bem e elas acreditaram nele. Criaram uma associação e concertarem tudo como deve ser.
 “Ansiosa por deixar as barracas, a população organizou-se em turnos. Quando os homens estavam no mar, eram as mulheres que trabalhavam nas obras. Havia duas regras: as habitações tinham de começar a ser construídas ao mesmo tempo e todos teriam de ajudar na construção de todas as casas.”
       arquitetos e pedreiros orientaram os trabalhos, velhos e velhas, novos e novas, todos levavam de braçado ou à cabeça o seu tijolo, o seu balde de massa. Foi uma festa. Parecia impossível. Como pôde acontecer uma coisa assim darem casa a índios que eram pescadores pobres a ponto de ficarem gente, mesmo gente, como toda a gente.
Depois do arquiteto José Veloso que até se emocionou a reviver toda aquela saga marítima falou o sociólogo João Baía que nos revelou outras iniciativas pelo país nomeadamente em Coimbra.
 
Cansados de tanto mar, tantas dunas, tanta solidariedade, tanto 25 de Abril, fomos jantar num tasco do bairro. Não se via o mar porque escolhemos preços baixos mas comemos umas excelentes sardinhas assadas, gordas da época, como deve ser.
Regressámos à Casa da Achada para ver o filme do Cunha Teles Os Índios da Meia Praia com a canção do mesmo nome do Zeca Afonso. O José Veloso pediu-lhe a música para o filme e o Zeca foi logo ali, sentado ao seu lado, na mesa do café, a rabiscar a rabiscar e mal nada diz-lhe toma. Está aqui. E estava. E é linda a canção, a letra e a música do Zeca. Que pena ele não poder estar aqui a ver-nos extasiados a olhar para as imagens das dunas, dos pescadores, dos barcos, do mar a ir e a vir e ele a dizer, e ele a cantar:
 
      Aldeia da Meia Praia                         De Montegordo vieram                                 
Ali mesmo ao pé de Lagos                  Alguns por seu próprio pé                      
Vou fazer-te uma cantiga                  Um chegou de bicicleta                          
         Da melhor que sei e faço                       Outro foi de marcha à ré                                    

Tu trabalhas todo o ano                     Quem dera que a gente tenha                   
Na lota deixam-te nudo                         De Agostinho a valentia                        
Chupam-te até ao tutano                        Para alimentar a sanha                          
Levam-te o couro cabeludo                    De enganar a burguesia                           


…….............  
 
(Video com a canção e a letra aqui )

Os Índios da Meia Praia



Aldeia da Meia Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço

De Montegordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha à ré

Quando os teus olhos tropeçam
No voo de uma gaivota
Em vez de peixe vê peças de oiro
Caindo na lota

Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te nudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro cabeludo

Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De enganar a burguesia
.........
Letra completa aqui link