Foto de Inês Castro
Da direção do NAM e meu vizinho, o João Caixinhas achou bem dar-me boleia a mim e à Maria. Chegados à Rua da Madalena labirintou por aí acima até encontrar um passeio suficientemente próximo da Casa da Achada para estacionar.
Ao entrar encontrei amigos que há anos não via. Esperavam-nos os Índios
da Meia Praia que o Movimento Não Apaguem a Memória – NAM , levava ao Centro
Mário Dionísio na Casa da
Achada. Mouraria, escadinhas, becos, vielas, larguinhos, casas de muitas cores,
lisboetas embasbacados a olhar para as janelas, para as flores, para as mulheres
velhas nas varandas e para as mulheres novas na rua a orientarem o trânsito da
miudagem em correria desaustinada. Aturdido com Lisboa tão castiça, lusitana, fenícia,
cartaginesa, ateniense, romana, mourisca, visigoda, entrei. Mesmo à saída, a
estender-me a mão, o Rui Mário, que não é por ser meu amigo desde Ciências na
Rua da Escola Politécnica que o considero o maior crítico de artes plásticas
deste desorientado país e logo a seguir, com a irmã, o João Andrade Santos que
há mais tempo ainda não via. Olhei e a toda a volta o espaço interior se iluminava
com uma rara exposição de três dezenas de belíssimos quadros do pintor e
matemático José Júlio (Andrade Santos). Percebi então que a presença de Rui
Mário, assim como dos filhos do pintor se devia à exposição e a visita guiada
que antecedera na programação da Casa os nossos Indios da Meia Praia .
Logo logo ali à frente o arquiteto José Veloso. O Zé Veloso, o pai
verdadeiro do SAAL dos Índios da Meia
Praia dei-lhe um abraço e cumprimentei a seguir Eduarda Dionísio, anfitriã
de todos nós que jubilosamente nos recebia. Estava eu nesta festa de
reencontros e logo a Clara Boléu – há que anos…- me dava uns papelinhos com a
programação "a não perder" da Casa da Achada. E ao lado o João
Rodrigues com o Pedro, filho de ambos que ainda há pouco tinha 4 anos e agora
estava ali com trinta e tal e uma barba preta que antes não tinha e que depois
de José Veloso nos apresentar os seus Índios da Meia Praia, dirigiu o coro da
Casa para nosso regalo. Olho e vejo a Judite! - Vais para Lagos este ano? Ainda
não sei. Ah e quem é esta linda miúda? Tua neta? A Laura tem 17 anos. Olha este
Senhor (este Senhor era eu) era um amigo do avô. Foi há tanto tempo... Há
tantos nos já que o Zé Monteiro morreu e ali mesmo ao lado a confirmar tudo o
Ernâni Pinto Basto.
Com que então uma Casa cheia de amigos! Não é desses que estou a falar. Era
agora de amigos do Facebook ! Estavam os amigos da direção do NAM e associados
que aproveitam e vêm
como a minha amiga Luísa Corte Real que é de
Lagos e quase de certeza foi ela que se lembrou de trazer os Índios à Casa da Achada como iniciativa
do Movimento,
como a minha amiga Luísa Tiago de Oliveira,
conheces ali aquele? É o Ernâni, filho do Ludgero Pinto Bastos que foi do CC e
companheiro de Cunhal naqueles tempos de 40 de que já ninguém se lembra. Eu a
explicar e ela a acrescentar isto e aquilo porque é historiadora e afinal sabia
tudo a respeito do Pinto Basto. Com estas credenciais resolvi mesmo apresentar-lhe
o filho e para ali ficaram a falar, enquanto eu me virei com a Maria Machado a
conversar com a Manuela Almeida que desta vez não veio à tertúlia com o Tó.
Mais à frente a Maria Manuel e o marido, o Daniel Ricardo que eu responsabilizo
por a revista Visão andar tão boa, já se acomodavam para o início da sessão. Na
outra ponta estava a Inês Castro que nos havia de presentear no Facebook com fotografias
que comprovam tudo o que digo e ainda um filme para maior glória da Casa e do
Coro da Achada.
A Helena Pato, presidente da direção do NAM já com todos quase sentados
disse que havia horários a cumprir e que estava ali o arquiteto José Veloso que
veio de Lagos para nos contar a história mítica dos Índios da Meia Praia e da iniciativa do SAAL que deu casa
a quem nunca sonhara com tal exagero.
O meu amigo Zé Veloso disse logo que não eram índios mas pescadores muito
pobres que arrimaram ali a pouco e pouco, já perfaziam umas dezenas de famílias
e que escondidas atrás das dunas pescavam conforme podiam com umas redes pobres
como eles e começaram a fazer as suas casas primeiro com umas redes velhas da
pesca mas que por serem redes chovia em casa. Juntaram então folhas, restos de
coisas perdidas e fizeram umas barraquinhas de colmo que afastava a chuva e
onde cabiam com a mulher e os filhos. Nem Lagos sabia deles nem eles sabiam de
Lagos.
Foi então que aconteceu em 1974 aquela espécie de golpe militar que afinal era
Movimento e depois virou revolução ainda que interrompida e abriu as portas à Liberdade.
Foi então que aconteceu... e o Zé Veloso que era arquiteto e agora em Julho
de 1974, com a revolução a querer começar decidiu que não havia direito que os Índios
que afinal eram pescadores continuassem assim a ser índios e a viver como
quem não vivia nuns buracos que eram choças.
Foi o princípio do SAAL ali em Lagos. O arquiteto
José Veloso foi à Meia Praia que fica meia encosta abaixo da sua bela casa e
começou a falar-lhes. Que agora com o 25 de Abril de 1974 já podiam ser
pessoas. Hum... eles desconfiaram e até lhes pareceu ser perigoso começarem
agora assim, sem mais, também a ser pessoas como as outras. Não foi fácil. Mas quando
o arquiteto José Veloso disse que havia dinheiro do ministério, onde estava o
Nuno Portas, para as casas deles pareceu-lhes que a conversa começava a
desconversar, podia lá ser! alguns até se assustaram. Que não. Tinham vivido
até ali portanto era melhor que se esquecessem que existiam. Visitas foram só
da GNR e era melhor não terem visitas.
Mas… e isso foi a sorte dos pescadores… havia
mulheres. Além dos pescadores havia as mulheres dos pescadores e as filhas dos
pescadores que ao contrário dos maridos e dos pais embarcadiços tinham os pés bem
assentes em terra firme. E foram as mulheres que, como diria o meu vizinho que
é comentarista de TV, viram no arquiteto José Veloso uma "janela de
oportunidades". Porque torna e porque deixa o Zé Veloso explicou tudo bem
e elas acreditaram nele. Criaram uma associação e concertarem tudo como deve
ser.
arquitetos e pedreiros orientaram os trabalhos,
velhos e velhas, novos e novas, todos levavam de braçado ou à cabeça o seu tijolo,
o seu balde de massa. Foi uma festa. Parecia impossível. Como pôde acontecer
uma coisa assim darem casa a índios que
eram pescadores pobres a ponto de ficarem gente, mesmo gente, como toda a
gente.
Depois do arquiteto José Veloso que até se emocionou a reviver toda aquela
saga marítima falou o sociólogo João Baía que nos revelou outras iniciativas pelo
país nomeadamente em Coimbra.
Cansados de tanto mar, tantas dunas, tanta solidariedade, tanto 25 de Abril,
fomos jantar num tasco do bairro. Não se via o mar porque escolhemos preços
baixos mas comemos umas excelentes sardinhas assadas, gordas da época, como
deve ser.
Regressámos à Casa da Achada para ver o filme do Cunha Teles Os Índios da Meia Praia com a canção do
mesmo nome do Zeca Afonso. O José Veloso pediu-lhe a música para o filme e o
Zeca foi logo ali, sentado ao seu lado, na mesa do café, a rabiscar a rabiscar e
mal nada diz-lhe toma. Está aqui. E estava. E é linda a canção, a letra e a
música do Zeca. Que pena ele não poder estar aqui a ver-nos extasiados a olhar
para as imagens das dunas, dos pescadores, dos barcos, do mar a ir e a vir e
ele a dizer, e ele a cantar:
Aldeia
da Meia Praia De Montegordo vieram
Ali mesmo ao pé de Lagos Alguns por seu próprio pé
Vou fazer-te uma cantiga Um chegou de bicicleta
Da melhor que sei e faço Outro foi de marcha à ré
Ali mesmo ao pé de Lagos Alguns por seu próprio pé
Vou fazer-te uma cantiga Um chegou de bicicleta
Da melhor que sei e faço Outro foi de marcha à ré
Tu trabalhas todo o ano Quem dera que a gente tenha
Na lota deixam-te nudo De Agostinho a valentia
Chupam-te até ao tutano Para alimentar a sanha
Levam-te o couro cabeludo De enganar a burguesia
…….............
Na lota deixam-te nudo De Agostinho a valentia
Chupam-te até ao tutano Para alimentar a sanha
Levam-te o couro cabeludo De enganar a burguesia
…….............
(Video com a canção e a letra aqui )