Chegado a oficial o cadete ganhará o direito a tratar com sobranceria, ou
até com sadismo os soldados recrutas a si entregues para que deles “faça uns
homenzinhos”. Ganhará o direito a frequentar a sala dos senhores oficiais e a
ser tratado por Senhoria. Dá-me licença meu Aspirante, saiba Vossa Senhoria que
... em sentido e depois de bater a pala que é como quem diz, depois de fazer a
continência.
O segundo ciclo da instrução, dois meses e meio depois, já o fiz no CIAAC, em
Cascais. A seguir o Exército mandou-me para o GACA 2, em Torres Novas. Aí sim,
já feito Aspirante a Oficial Miliciano, isto é, oficial, o que dá da vida
militar, uma perspectiva muito diferente!
Ninguém percebeu? CIAAC quer dizer Centro de Instrução de Artilharia Anti-Aérea
e Costa e a outra sigla GACA 2, Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2. Grupo, porque se trata da arma de Artilharia. Porque se de infantaria se
tratasse era batalhão e esquadrão no caso da arma de cavalaria. É sempre bom
aumentarmos a nossa cultura geral.
Contarei noutra altura essa inolvidável experiência de comandar homens.
Conhecer jovens. As suas origens, os seus problemas, as suas vidas, as suas
aspirações. Conhecer o país. O país dos homens e das mulheres. Na altura era só
de homens. Há quem não aproveite esta rara oportunidade e trate os trinta
soldados instruendos à sua conta como seres reduzidos a um número, que têm de
aprender a marchar e a ser submissos perante os superiores. Deixo claro que, da
minha experiência, concluí que os maus tratos ou formas menos dignas de tratar
os soldados partiam em geral, não de oficiais do quadro permanente mas de
alguns oficiais milicianos frustrados e de mau carácter.
Doze meses de serviço militar foi quanto me exigiram e logo me despacharam o
que me fez muito jeito porque assim regressava sem grande perda de tempo à
universidade.
Não voltei logo ao Técnico em Lisboa, mas à Faculdade de Ciências, onde se
podia fazer os três primeiros anos de engenharia no meio de imensas raparigas
que, indecentemente, rareavam no IST.
Menos de um ano após a ida para a tropa, na sequência do início da guerra
colonial, logo a Pátria requisitou de novo, a minha expertness militar e
a deixar-me, inconsolável com a perda dos carinhos da nova namorada. E lá fui dar com os ossos na gloriosa Divisão Nuno
Álvares. É talvez a partir daqui que passei a ficar um admirador do nosso
antigo Condestável, um atrevido, corajoso, arrojado e meio doido, fidalgo de
meia-tigela, desafiador de castelhanos, místico com visões de santos e do
próprio Cristo. É ele que está na origem da futura Casa de Bragança que viria a ser a mais
importante Casa do reino e berço da quarta dinastia, de D. João IV, em 1640 a D.
Manuel II em 1910.
Alferes Miliciano no Quartel-General da 3ª Divisão, 1962
Agora estava eu ali, em Santa Margarida, na 3ª Divisão, a Divisão Nuno Álvares, orgulho da nação, em 1962, a responder ao chamamento da Pátria que requisitava os meus serviços neste momento em que os "inimigos" assediavam Portugal em África e em que na Rádio se gritava, sincopadamente "Angola é nossa! É nossa! É nossa!" no programa da Emissora Nacional "Rádio Moscovo não fala verdade",
Campo Militar de Santa Margarida.
Estava no Campo Militar de Santa Margarida já como veterano e promovido a alferes. No quartel-general não havia nada para fazer. A minha função era preencher um lugar bem determinado no organigrama da divisão. Oficial de operações. Deram-me uns manuais da NATO para traduzir e eu lá ia traduzindo, entre o almoço e o jogo de ténis com o chefe de estado-maior, entre umas braçadas na piscina do Campo de Santa Margarida ao fim da tarde e o jogo do king ou do póquer, na sala de oficiais, depois do jantar. À quinta feira depois de almoço embarcávamos na carrinha para Lisboa que nem uns pardais em alvoroço, sequiosos de saias, que ali toda a semana, quando não quinze dias, se calhava um serviço ao fim de semana, só havia as das coronelas já completamente passadas aos nossos olhos então muito azougados e inexperientes. Falei em saias porque então as mulheres não usavam calças.
Às vezes havia prestação de serviços de “intendência” mas isso era só para soldados. Os oficiais mesmo à fome, faziam má boca para aquilo. No meio dos pinhais ou numa arrecadação com vigilância à distância, uma que outra mulher de bom coração vinha por ali dar ânimo à tropa. Nos exércitos de quinhentos, seiscentos e depois, estas mulheres, as "aguadeiras", seguiam em trupes, os exércitos e sem dúvida ajudavam-nos a manter senão a moral pelo menos o moral.
Em Santa Margarida, deitada de costas, de pernas abertas em cima dum cobertor a resguardar-lhe as viçosas nádegas do mato áspero, ali estava, numa tarde de Junho, mais uma vez, aquela alma benfazeja entre os 25 e os 35 anos. Por apenas vinte e cinco tostões à peça, que ali a clientela era de parcos haveres, aquela abnegada servidora do Estado prestava um meritório serviço público. Numa tarde despachava uns trinta ou quarenta sequiosos soldados formando bicha. O esquema organizativo, a rapidez e as moedas a crescerem, funcionava a seu favor porque se alguém se demorava com sofisticações despropositadas, logo os da fila, de arma em riste mas ainda embainhada, gritavam vá, vá, vá toca a andar, pá, que é isso agora!?
Mas o caso que eu queria contar era o seguinte: estávamos todos ali, no salão nobre do quartel-general a festejar qualquer coisa – havia sempre um pretexto honesto porque havia 900 contos (era dinheiro então) orçamentados para despesas de representação. Ora com a guerra colonial, os exercícios da NATO estavam suspensos mas não as despesas de representação. Na ausência das centenas de oficiais estrangeiros da Nato que anualmente estavam presentes em exercícios e festanças tínhamos de nos sacrificar e cumprir escrupulosamente os orçamentos. Estávamos portanto ali umas dezenas largas de oficiais de todo o Campo a beber uns champanhes, a comer umas tapas com caviar, salmão e outras iguarias, enfim a festejar a Pátria, enquanto não se malhava com o canastro em Angola, quando um estafeta me chega ali, eu de serviço, por acaso, e me obriga a acorrer a uma qualquer emergência sem importância mas obrigatória. Quando regresso e me dirijo, displicente, para uma mesinha de comes e bebes, reparo num sepulcral silêncio à minha volta, um silêncio que me fez parar e olhar em redor. Deviam ter combinado. Então o chefe de estado-maior, o ten-cor G. J., na presença dos dois brigadeiros, dos comandantes e restante oficialagem do Campo, vira-se para mim e disse de modos que todos ouvissem bem "então afinal o nosso alferes Narciso é que é o comunista cá do Campo!" Julgo não ter sido fulminado por nenhuma síncope ou raio porque momentos depois dei por mim ainda ali especado mas… para morrer. Talvez fosse um instante mas na altura não fui capaz de avaliar. Na minha total estupefacção (porque o caso é que ainda que ninguém suspeitasse, não sendo eu "o" comunista lá do Campo era no entanto "um" dos poucos oficiais comunistas lá do Campo) comecei a pensar, julgo eu, que teria que dizer qualquer coisa. Ficar calado parecia-me pior. Mas dizer o quê?
Sou sim senhor com muita honra?
Era parvoíce e pouco engenho. Além de que, é claro... passavam-me a soldado e ia bater com os costados a Penamacor, ao batalhão disciplinar, ou talvez mais certamente ao forte de Caxias ou de Peniche, que a PIDE estava-se nas tintas para regulamentos da tropa.
Juro que não sou e o meu Chefe é um grande mentiroso.
Também não me pareceu resposta eficaz. Deus Nosso Senhor ou a Virgem Maria ou o Santo Condestável, dada a nossa cumplicidade, socorreu-me naquele mortífero transe e pela minha boca disse descontraído: “ora meu chefe, se tivesse dito da maçonaria, então é que acertava!” Ainda eu ouvia assustado o resto das minhas palavras quando explode uma gargalhada geral que só a seguir percebi porquê. É que toda a gente sabia, menos eu, afinal, ou se não sabia pelo menos dizia que um dos brigadeiros era "irmão" e usaria o legítimo avental dos pedreiros livres nas cerimónias da praxe. O próprio chefe de estado-maior se virou para ele e riu a bom rir. Um milagre! Se há milagres aquilo foi um milagre! Milagre que ainda hoje recordo agradecido ao Condestável.