O trânsito era tal que me atrasei
e Já não consegui apanhar os melhores lugares no café. Quando entrei na Av de
Roma a caminho do Vá-Vá para participar na tertúlia “Objetos de memória” (da
luta contra a ditadura), iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória, surgiu
um stop arreliador. Polícia de Trânsito,
um “creme nívea”, cães polícia, “Polícias de Choque” a pedirem documentos e
olharem-nos com olho de polícia, carros a encherem a avenida, um inferno. Que
será isto? Interrogávamos, os polícias, moita carrasco, nada e depois já se
sabe, cada cabeça sua sentença. Dizia um, aposto que é por causa do Papa. Olha
o papa! Isso já foi há dias!! Haverá futebol para estes lados? Adiantava outro,
incrédulo. Hum… não me parece, alvitrava uma miúda alta, Rita, acho que foi Rita que disse. Apercebeu-se que éramos do Movimento Não
Apaguem a Memória e à puridade bichanou-nos. Não é nada. Nem são bem polícias, acho eu. Perante o nosso espanto confidenciou: cá para mim isto foi ideia da direção
do NAM, da Helena Pato, da Lúcia Esaguy ou da Maria Manuel Calvet Ricardo, como
marketing da tertúlia, no Vá-Vá, agora às 16h. Não me parece nenhum stop
verdadeiro com aquele "Creme Nívea" antigo – acrescentava ela – é mas é um “objeto de memória” para lembrar o
tempo da ditadura. Abríamos a boca de espanto quando um dos pseudo-polícias ordenava:
vamos vamos cidadãos e dava ordem de marcha. Olha, olha, ouviste? Cidadãos! Vá
lá… sempre aprendem alguma coisa no contacto com as massas – dizia uma mulher,
a bem dizer uma Senhora, toda aperaltada mas com um certo ar comunista.
O Vá-Vá estava um luxo de gente
importante, alguns que até vêm na TV e tudo. Além das diretoras do NAM – disse
diretoras e disse bem que aquilo, parece impossível, são mais as mulheres que
os homens, lá na direção – estavam todos os interventores anunciados cada um
com seu objeto de memória a exaltar as lutas do passado e para exorcizar o
fascismo que julguei ser coisa que não voltaria nunca mais mas agora, com este
governo estrangeiro, “governo dos mercados” que aí temos já nem sei bem.
O Vá-Vá, quando cheguei, já fervilhava de gente quando a Srª presidenta do NAM, a
Helena Pato, apresentou a apresentadora a Doutora Luísa Tiago de Oliveira.
Desculpem lá mas vou omitir os títulos. São praticamente todos drs e drªs. Uns
mais que outros, doutores por extenso e professores, uns da primária e outras e
outros com F grande da universidade.
Luísa Tiago de Oliveira, um dos membros do NAM mais estimados, deu 10
minutos a cada conferencistas e calculando que todos iriam prevaricar deu secretamente
mais 5 minutos a cada. Começou por Alípio de Freitas que nos falou das
lutas de Portugal e do Brasil contra as ditaduras de cá e de lá e num discurso
bem articulado foi relacionando os tempos idos com os atuais, trocando
saudosismos por espírito combatente.
Gastou rapidamente os 15 minutos e teve de dar o lugar ao Artur Pinto, o verdadeiro, o que tem
organizado com mais alguns universitários, incansavelmente, sucessivos festas
comemorativas do “Dia do Estudante”. Artur Pinto relatou uma interessantíssima
história relacionada com o Henrique Galvão onde surgia o “objeto de memória” o
livro Vagô. Seguiu-se o Daniel Ricardo
que, como jornalista de passado anti- fascista, revelou-nos com muita graça,
interessantíssimos episódios da Capital
onde trabalhou. Como aquele caso, bem humano e, quanto ao desemprego, bem
atual, do funcionário da censura que foi despedido por ter deixado passar uma
notícia “perigosa” d’ A Capital e, muito logicamente, foi pedir emprego ao jornal.
Daniel Ricardo contou também a última ida, não ida, à censura do Jornal A Capital, no dia 25 de
Abril. Vai não vai. Não foi.
Depois ouvimos a Luísa Teotónio Pereira, do conselho diretivo do CIDAC que orientou o discurso para os lados de
Amílcar Cabral, esse grande revolucionário e amigo de Portugal e uma das
figuras maiores de África, assassinado pelos fascistas-colonialistas
portugueses. Trouxe ali bem viva a memória da luta da Guiné e Cabo Verde,
evocou os mísseis Strela que permitiram anular a arma terrível que era a
aviação portuguesa e os seus bombardeamentos.
Seguidamente ouvimos a Maria
Emília Brederode Santos. Apresentou-nos um livrinho escrito na prisão de
Peniche pelo seu irmão, uma deliciosa relíquia, um romance de aventuras e do
fantástico “ A bicicleta auto-móvel” a revelar os artifícios e a imaginação a
que os presos recorrem para, em circunstâncias terríveis, manterem o sangue
frio e a sanidade mental.
Evocou a solidariedade com os presos anti-fascistas de uma pessoa
amiga que lhe cedeu uma casa que tinha na vila para apoio quando visitasse o
irmão e depois alargou a solidariedade a outras pessoas suas amigas com o mesmo objetivo
e de generosidade em generosidade acabou por oferecer a casa a todos os que
visitassem familiares presos.
O empregado do café ia-nos
abastecendo com o seu café, a sua mini, o seu croissant, a sua água, voejando
sem ruído, invisível, por entre uma amálgama de gente atenta a histórias que as
paredes do Vá-Vá nunca tinham ouvido. Apesar deste bom trabalho de logística o
intervalo foi bem recebido para mais comes e bebes, mais abraços e mais beijinhos
aos chegaram depois ou aos que mereciam mais que uma rodada deles.
Aproveito o intervalo para vos
dizer que estas iniciativas trazem sempre no bojo a ideia feliz de atrair os
jovens. Para lhes passar a mensagem. Para que peguem no facho. Ora acho que os
jovens não estão para aturar as iniciativas dos pais ou avós. Lembro-me do que
se passava comigo. Pais e avós falavam da República, dos feitos gloriosos, dos
exemplos de cidadania e da recusa de benesses cujo exemplo maior foi o de Manuel
de Arriaga, o 1º PR português que dispensou o palácio de Belém e alugou com o
seu dinheiro uma casinha ao lado. Mas nós os jovens de então deixávamo-los com
a República e tencionávamos descobrir o caminho do futuro por nossa conta. Por isso ao
verificar a presença de uns quantos jovens me admirei e até perguntei vieram
com a família? Que não. Que não.
Como repararam não me demorei a
narrar as histórias pois era quase tudo material altamente confidencial e teria
até, talvez, de pagar direitos de autor. Bem… poderia dar outra explicação, a
verdade é que não tomei notas e vocês já sabem, depois dos 50 vamos perdendo a
memória (Não Apaguem a Memória!) e alguns ali já andávamos quase por essas
idades. Portanto não conseguiria nunca trazer-vos aqui o brilho de relatos tão cintilantes,
tão carregados de emoção.
A segunda parte foi iniciada pela
Helena Neves uma combatente de
glorioso passado de luta agora prof na Universidade e que é uma das minhas
amigas preferidas (se calhar não devia ter dito isto…) Evocou o passado mas
sempre com um olhar no presente e, é claro, dando destaque a tudo o que é lutas
das mulheres pela sua emancipação, pela igualdade de géneros enquanto circulava
uma foto onde ela está com essa grande Mulher que foi, que é, Maria Lamas.
Foi a vez então de Joana Ruas mostrou-nos
desenhos de um menino guineense que sofreu os bombardeamentos nas matas da
Guiné onde os guerrilheiros se escondiam. Desenho que relatava a guerra e os
bombardeamentos dos colonialistas portugueses e ainda outro “objeto de memória”
uma grande colher feita com o alumínio de avião português abatido por um dos
célebres mísseis Strela, fornecidos pelos soviéticos após o assassinato de
Amílcar Cabral e que pôs em terra a aviação portuguesa.
Joana Lopes, minha colega da luta armada, ainda que de exército
diferente, as Brigadas Revolucionárias, apresentou-nos ali o carimbo com que fazia
os selos brancos que tornavam verdadeiros os BI e passaportes falsos que os
combatentes usavam para arreliar a PIDE. A Joana especializou-se com tais artes
que era já uma espécie de Arquivo de identificação, mas das BR. Os Pides quando
nas fronteiras ou nos stops examinavam os documentos já diziam desanimados uns
para os outros: assim como é que podemos saber se são do arquivo de
identificação ou se são da Joana Lopes?
Mário de Carvalho – sim o escritor, o romancista – ora, dizia eu, o
Mário de Carvalho lembrou tempos de prisão política, em Peniche. Lembrou
companheiros, trabalhadores, homens simples cujo exemplo de serenidade,
simplicidade e firmeza perante a tormenta e o horror muito o impressionaram e
ensinaram. Recordou que um lhe fabricou a partir da ponta de um cabo da
vassoura um peão de xadrez, igual, igualzinho aos outros quando o guarda lho
roubou. E roubou porque o Mário de Carvalho batia com ele na parede mas batia com
toques pluridisciplinares, tipo morse, para conversas com a cela do lado. O
Guarda não gostou e levou-lhe o peão. Perdia-se o Morse e desfalcava-se o jogo
do Xadrês de um indispensável peão. O Velez, seu amigo, ali preso como ele, não
gostou do gesto do guarda e esculpiu-lhe um peão tão perfeito que circulou... no Vá-Vá, de mão em mão,
entre nós.
Como o devo anunciar, interrogava a Luísa Tiago de Oliveira no seu
papel de moderadora? Como “o marido da Custódia” respondeu ele. Ela não fez
caso e anunciou como devia ser, o Senhor Almirante Martins Guerreiro. Depois,
dentro da sua história, é que se desvendou esta de “o marido da Custódia”. Custódia é a mulher de Martins Guerreiro, uma
mulher de armas, que sobressaía nas reuniões de formação política e conspirativas
dos oficiais da Marinha, ao lado da Pilar, mulher do comandante Contreiras, a ativista
por excelência. Quando foram viver para uma nova zona em Algés ela que
circulava no bairro mais que ele e, estimada e popular, ela era a Custódia e ele,
um figura pública, um dos heróis nacionais do 25 de Abril, era simplesmente o marido
da Custódia. Martins Guerreiro teve uma salva de palmas a meio das histórias que
nos contava quando mostrou e leu a “Declaração de entrega dos ex-membros do
Governo” acabado de derrubar pelo 25 de Abril, no Quartel General do Comando
Territorial da Madeira. Quis-me parecer que o entusiasmo teria alguma coisa a
ver com o momento político atual.
Por fim falou a Rita Veloso,
a participante jovem que nos trouxe um testemunho diferente. Falou da prisão do
Forte de Peniche mas de quem o conheceu aos cinco anos ao visitar o pai Ângelo
Veloso membro do comité Central do PCP, preso em Peniche de 1968 a 1974. Um momento hilariante foi quando testemunhou
a existência da casa em Peniche de que falara Maria Emília Brederode Santos. Sim
sim, eu lembro-me dessa casa. Lembro-me porque foi aí que aprendi a atar os
atacadores dos sapatos. Trazia vários objetos de memória, um postal que o pai lhe escreveu e
bilhetinhos do pai e as suas respostas, bilhetes que um pai preso por lutar pela liberdade escrevia à sua filha
com cinco e seis anos.
Terminadas as exposições dos conferencistas seguiu-se um período de
interpelações e outras conversas e outros objetos de memória de espontâneos.
A Maria Eugénia Varela Gomes,
que eu só consigo tratar carinhosamente por Geninha, deu-nos a conhecer um baralho de cartas feito por 4 jovens
raparigas, uma das quais ela própria, de papel de prata dos maços de cigarros,
para empurrar o tempo a passar mais depressa.
Um dos momentos altos foi quando o João Caixinhas da direção do NAM manejou uma verdadeira espingarda,
em tamanho natural e ao vivo, o seu “objeto de memória”. Em pé, de arma em
riste, sobre a sala ondeou um movimento de corrida para a porta de saída felizmente
contido a tempo. Mas que é isto? Para onde vão? Para onde vamos? Então não
viram o sinal, vamos tomar o Palácio de Inverno o Palácio de S. Bento!.
Calma, não é nada disso, não é sinal nenhum, aquilo é um canhangulo antigo,
trazido de África, uma arma usada em antigas lutas rebeldes dos povos de Angola.
Cá, pelo menos por enquanto, a nossa arma é a palavra e a consciencialização de
que urge mudar de governo antes que a democracia e o país sucumbam.
Ciao. Até à próxima tertúlia. No Vá-Vá
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Nota: esta "ata" da 3ª tertúlia ainda não foi aprovada por isso estou a receber acrescentos e emendas. Eis a
1ª - Vejam só esta ternura de bilhetinho, este torrãozinho de açúcar, da Rita Veloso, aí por 1973, com os seus seis anos, que ela trocava com o pai nas visitas no Forte prisão de Peniche.