Faz hoje,
hoje mesmo, 43 anos. A esta hora, às 19:30, estamos a rever a matéria, na
"sala oval". Mesmo de propósito, assim, oval, a sala do prédio da Av
dos EUA que alugámos para refúgio do Ângelo de Sousa, quando mais logo disser
adeus definitivo à Base Aérea 3, em Tancos, onde é piloto dos helicópteros que
servem para instruir os pilotos para a guerra colonial. Ângelo, Carlos Coutinho
e António João Eusébio na sala oval às escuras exercitam a disposição de fios e
mais fios e interruptores que hão-de ligar 20 cargas explosivas e incendiárias
em outros tantos aviões e helis. Não se assusrtem que as cargas, estão lá fora,
no Volkswagen que vai partir só lá para as 21h.
Mas
ontem o susto o grande susto... e era isso que vos queria contar. Copio as páginas 134 a 137 do
livro ARA-Acção Revolucionária Armada (2000 D. Quixote, esgotado) que me dá
menos trabalho:
Interceptados pela Polícia de Choque
Os nossos
preparativos corriam tão bem que não podíamos imaginar que algum perigo
inesperado pudesse ainda levar tudo a perder... Depois de ter alugado o
Volkswagen com documentação falsa, sem qualquer incidente, na antevéspera da
ação, dirigi-me à arrecadação nos arredores de Lisboa onde tinha as cargas
explosivas e incendiárias. Com elas enchi o pequeno porta bagagens do automóvel
e fui, ao volante do Carro do Povo ter com o Carlos Coutinho que me esperava
perto da Praça de Espanha [em Lisboa].
Dali
partimos os dois para Belém onde tinha alugado uma garagem e onde o carro
ficaria até partir para Tancos. Quando entrámos na Avenida de Ceuta a caminho
de Alcântara, seriam umas nove horas da noite, passei o volante ao «Meneses»
para ele conhecer o carro e exercitar-se um pouco, antes de no dia seguinte ter
de o guiar, desembaraçado, até à base aérea. Seguíamos em descontraída e
animada conversa quando inesperadamente esbarrámos com um invulgar aparato
policial que enchia a rotunda de Alcântara de agentes da Polícia de Choque e de
cães-polícia. Com o carro cheio de explosivos, ficámos siderados. O nosso susto
foi maior pelo inesperado. Não vimos à distância todo aquela força policial,
que a nossos olhos assustados parecia superior a um batalhão. Vínhamos
conversando alegremente e, sem aviso, desaguámos de supetão no meio daquela
desproporcionada força policial. Tão fulgurante quanto a presença pouco
recomendável dos polícias me veio a lembrança de que um carro alugado só pode
ser legalmente conduzido por quem o alugou. Estávamos em transgressão! O
Coutinho conduzia o carro bem por dentro da rotunda o mais longe possível dos
polícias que pejavam as bermas. Suponho que me encolhi. Pelo menos
interiormente. Para incomodar o menos possível suas excelências os polícias, os
cães e os rádios. Foi tudo tão rápido que quando ainda íamos no meio do susto
já saíamos do Largo de Alcântara totalmente incólumes, a caminho da marginal.
Só por milagre nenhum daqueles polícias ali especados a verem-nos passar se
meteu connosco. Foi porque fizemos no escuro do carro um ar muito humilde e
respeitador da lei, comentava para mim o Carlos Coutinho, uns minutos depois,
já a descontrair e com um riso que me parecia ainda um pouco amarelo. Quem sabe
se não toparam mesmo quem nós éramos e o que levávamos e decidiram: deixemos lá
os rapazes seguir em descanso para não andarem sempre a dizer mal da polícia! Respondi
ao meu companheiro.
Já aliviados
o Carlos parou o carro e trocámos de lugar passando eu a conduzir. Seguíamos
então pela marginal naquele estado de espírito bonançoso que sucede às grandes
tempestades. Refazíamos forças com prognósticos de bom tempo. O Carlos Coutinho
animava-me e animava-se:
– Encontros
destes são coisas que só acontecem de longe em longe. De dois em dois anos.
Dispunha-me
a concordar plenamente quando, saindo não sei donde, se me atravessa ao caminho
um polícia a mandar-me parar. Fiquei petrificado. Resmoneava, inaudível,
indignado, sentindo-me vítima de intolerável injustiça: mas que raio é isto? é
uma conspiração ou quê? Simultaneamente veio ao de cima como primeira
preocupação não me atrapalhar na condução. Não só a carta de condução era falsa
como, sem ter tirado carta nem praticado o suficiente, guiava mal. Parei o
carro e procurei responder ao boa noite do bem educado guarda com um tom de voz
de descontraída calma.
– Os seus
documentos! – Pediu-me o polícia.
Não me
respondeu. Continuava a escrevinhar. Não conseguia evitar maus pensamentos e deixar
de me interrogar, o filho da puta está a tirar notas dos documentos? Ainda abri
a boca para dizer mais qualquer coisa que quebrasse aquele pesado silêncio
quando conclui que era mau sinal ele não me responder. Calei-me. Por fim após
uma eternidade levantou a cabeça do papel estendeu-mo e despediu-se com um boa
noite tão lacónico como o primeiro. Ainda sem perceber bem o que se passava
soletrei o papel que desconsoladamente não tive outro remédio senão receber da
mão do polícia. Afinal, que surpresa! A letrinha miúda e a lápis informava
simpaticamente uma eventual patrulha que posteriormente nos interceptasse «que
este senhor condutor já tinha sido inspeccionado».
Nem queria
acreditar! Era afinal uma espécie de salvo-conduto. Atestado de bom comportamento.
Prova… não direi de bagagem legal, que não foi objecto de atenção, mas pelo
menos de documentação sem mácula. Rezei a todos os santinhos para não arrancar
com o carro aos solavancos. Fui atendido. Deslizei com o Carlos Coutinho e tudo
o resto, com surpreendente suavidade.
Perdemos o
gosto para mais conversas e só quando finalmente arrumámos o carro, o Carlos
exclamou enfático com o ornamento de palavras próprias e sonoras que dispensam
reprodução que há dias em que não se pode sair de
casa!