No rescaldo da acção de
Tancos a madrugada de 21 de Março ainda nos trouxe um grande susto. Eram cinco
horas da manhã eu e a Maria fomos acordados em sobressalto com uma luz que
invadia o quarto onde dormíamos. Alguém tentava levantar do exterior, sem
sucesso porque lhe tínhamos montado um dispositivo especial, a persiana da
janela do quarto, no nosso rés-do-chão e nos apontava pelos orifícios uma
lanterna. Saltei da cama, convencido que era a PIDE e a Maria acendia um
fósforo para pegar fogo a uns papéis num dispositivo incendiário sempre
preparado para estas emergências, quando da janela nos chamam, com voz abafada,
para não acordar os vizinhos do primeiro andar
– Sou eu, sou eu, o «Alfredo».
Vesti-me rapidamente para ver se ainda iria a tempo de salvar o Ângelo de Sousa, pensando em simultâneo sobre a forma de não ser apanhado pela polícia se a casa já tivesse sido assaltada e para onde havia de levar o procurado piloto de helicópteros se estivesse são e salvo.
.....
Nem eu nem o Ângelo tínhamos televisão em casa por isso ambos dormíamos descansados. O Jaime Serra que tinha deixado o carro em que viera, longe da minha casa deu-me boleia até Lisboa e ficou no bairro de São Miguel a aguardar as minhas diligências. Se a polícia já tivesse descoberto a casa do Ângelo não seria fácil escapar-me. Era devido a esse perigo que ele decidira que ia eu e não ele. No entanto não era decisão que me passasse pela cabeça questionar. Sendo o Jaime Serra o mais responsável no Comando Central da ARA aceitava esta decisão com a mesma naturalidade com que permitia que fossem outros menos responsáveis que eu a executarem as acções e não eu. Apesar de ser improvável que em tão pouco tempo a polícia pudesse ter chegado ao Ângelo fui-me aproximando com todas as cautelas na tentativa de me aperceber a tempo de alguma coisa estranha. Avançava não demasiado rápido com um ar normal para que nenhum olhar de polícia ocasional desvendasse o destino dos meus passos. Felizmente ninguém se importava comigo e àquela hora madrigal só as árvores da rua António Patrício, atentas, distantes, e solidárias me acompanhavam. Nem um guarda nocturno, nem um vagabundo, ou sequer um operário pedestre e matutino a caminho do trabalho. Ia completamente só e desamparado mas não dava por nada disso porque tinha toda a atenção concentrada em hipotéticos pides por ali emboscados e em tirar de casa rapidamente o Ângelo, agora estrela involuntária de televisão por ter prejudicado a fazenda nacional sei lá em quantos milhares de contos. Parei do outro lado da Avenida dos Estados Unidos. O prédio dormia. A PIDE, se tinha tomado o prédio e o quarteirão, disfarçara-se lindamente. Mais uma vez me confrontava com aquela situação desagradável de ter por perto o desconhecido a rondar. Parei um momento a avaliar a situação e a tomar fôlego. Como se parasse maquinalmente para avaliar o trânsito. Por fim atravessei a rua afoito. Toquei a campainha cá em baixo apesar de a porta ter um vidro partido que possibilitava abri-la por fora. Voltei a tocar ainda duas vezes. Um toque longo e dois curtos. Era a nossa senha com a campainha. Por fim lá veio
– Quem é? – estremunhada, a pigarrear, a pergunta.
– Luís – respondi-lhe, contente de a ouvir e aguardei que pronunciasse a senha:
– Vens sozinho ou com a Teresa?
Respirei fundo e subi já seguro a sorrir do meu susto.
– Este país anda completamente à mercê de qualquer atrevido, com este fascismo decrépito. Que polícias! Uma vergonha, não prestam! – Ia dizendo para comigo, aliviado da forte tensão anterior. Foi assim jovial que falei para o Ângelo que estremunhado não percebeu bem porque é que eu lhe anunciava tão desagradável situação com um ar misto de vitória e alívio.
Passámos em revista os mais pequenos pormenores da sua entrada no apartamento de que apenas saíra uma vez à noite durante aqueles quinze dias. Concluiu calma e certeiramente que os estranhos que com ele contactaram não ligariam uma coisa à outra. Passámos uma e outra vez em revisão todo o passado ligado à casa e dei-lhe razão. Mandei-o dormir. Que não, agora que o tinha acordado tinha que beber um café.
– Não posso, o Jaime Serra está à minha espera – resmunguei-lhe, com pouca convicção e inclinado a condescender.
– Então vai chamá-lo para beber com a gente.
Percebi que tinha mesmo de beber o café com ele. Precisava de digerir o acontecimento.
– Com que então os cabrões puseram-me na televisão…
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BA 3 - TANCOS (2)
Na véspera da Acção de Tancos (7 de Março de 1971) ultimávamos os preparativos. No dia seguinte fizemos uma simulação do que se iria passar dentro do hangar, num apartamento no cruzamento da Av. dos EUA com a de Roma, em Lisboa (eu fazia lá ideia que 2 andares abaixo morava o meu primo Celestino! Felizmente que não nos cruzámos, não que ele não fosse contra o regime mas nestas coisas não podemos meter "estranhos" mesmo da família).
A casa serviria de refúgio para o Ângelo de Sousa que teria de abandonar a Força Aérea e cerca de um mês depois, quando tudo acalmasse, ser clandestinamente passado para o estrangeiro. Carlos Coutinho e Eusébio foram levados de olhos fechados para o local e depois para o prédio e o andar e do mesmo modo sairam sem poderem identificar o esconderijo futuro do Ângelo que eu teria de abastecer de alimentos, café, livros e entusiasmos.
– Sou eu, sou eu, o «Alfredo».
..............
[ Era Jaime Serra que me vinha avisar que a PIDE/DGS tinha publicado na televisão uma nota com a fotografia do Ângelo de Sousa a tentar colaboração para o prender.]
...............
A DGS tinha ordenado a
todos os órgãos de informação a publicação duma nota que começou pela Televisão
e a Rádio e continuou no dia seguinte em todos os jornais na qual acusava Ângelo de Sousa
de ser suspeito da destruição dos aviões da Base Aérea de Tancos, que usava
várias identidades e se intitulava falsamente de oficial da Força Aérea
regressado do Ultramar. Receando que a primeira acusação transformasse o Ângelo
num herói aos olhos de boa parte da população tentava «falsamente» fazer crer
que sendo simples cabo andava por aí, talvez por bares e cafés, pavoneando-se
de oficial.
Pelo sim pelo não a
PIDE/DGS punha a fotografia do Ângelo, fardado e à civil, para que os seus
informadores pudessem desde logo ficar de olho alerta. Vesti-me rapidamente para ver se ainda iria a tempo de salvar o Ângelo de Sousa, pensando em simultâneo sobre a forma de não ser apanhado pela polícia se a casa já tivesse sido assaltada e para onde havia de levar o procurado piloto de helicópteros se estivesse são e salvo.
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Nem eu nem o Ângelo tínhamos televisão em casa por isso ambos dormíamos descansados. O Jaime Serra que tinha deixado o carro em que viera, longe da minha casa deu-me boleia até Lisboa e ficou no bairro de São Miguel a aguardar as minhas diligências. Se a polícia já tivesse descoberto a casa do Ângelo não seria fácil escapar-me. Era devido a esse perigo que ele decidira que ia eu e não ele. No entanto não era decisão que me passasse pela cabeça questionar. Sendo o Jaime Serra o mais responsável no Comando Central da ARA aceitava esta decisão com a mesma naturalidade com que permitia que fossem outros menos responsáveis que eu a executarem as acções e não eu. Apesar de ser improvável que em tão pouco tempo a polícia pudesse ter chegado ao Ângelo fui-me aproximando com todas as cautelas na tentativa de me aperceber a tempo de alguma coisa estranha. Avançava não demasiado rápido com um ar normal para que nenhum olhar de polícia ocasional desvendasse o destino dos meus passos. Felizmente ninguém se importava comigo e àquela hora madrigal só as árvores da rua António Patrício, atentas, distantes, e solidárias me acompanhavam. Nem um guarda nocturno, nem um vagabundo, ou sequer um operário pedestre e matutino a caminho do trabalho. Ia completamente só e desamparado mas não dava por nada disso porque tinha toda a atenção concentrada em hipotéticos pides por ali emboscados e em tirar de casa rapidamente o Ângelo, agora estrela involuntária de televisão por ter prejudicado a fazenda nacional sei lá em quantos milhares de contos. Parei do outro lado da Avenida dos Estados Unidos. O prédio dormia. A PIDE, se tinha tomado o prédio e o quarteirão, disfarçara-se lindamente. Mais uma vez me confrontava com aquela situação desagradável de ter por perto o desconhecido a rondar. Parei um momento a avaliar a situação e a tomar fôlego. Como se parasse maquinalmente para avaliar o trânsito. Por fim atravessei a rua afoito. Toquei a campainha cá em baixo apesar de a porta ter um vidro partido que possibilitava abri-la por fora. Voltei a tocar ainda duas vezes. Um toque longo e dois curtos. Era a nossa senha com a campainha. Por fim lá veio
– Quem é? – estremunhada, a pigarrear, a pergunta.
– Luís – respondi-lhe, contente de a ouvir e aguardei que pronunciasse a senha:
– Vens sozinho ou com a Teresa?
Respirei fundo e subi já seguro a sorrir do meu susto.
– Este país anda completamente à mercê de qualquer atrevido, com este fascismo decrépito. Que polícias! Uma vergonha, não prestam! – Ia dizendo para comigo, aliviado da forte tensão anterior. Foi assim jovial que falei para o Ângelo que estremunhado não percebeu bem porque é que eu lhe anunciava tão desagradável situação com um ar misto de vitória e alívio.
Passámos em revista os mais pequenos pormenores da sua entrada no apartamento de que apenas saíra uma vez à noite durante aqueles quinze dias. Concluiu calma e certeiramente que os estranhos que com ele contactaram não ligariam uma coisa à outra. Passámos uma e outra vez em revisão todo o passado ligado à casa e dei-lhe razão. Mandei-o dormir. Que não, agora que o tinha acordado tinha que beber um café.
– Não posso, o Jaime Serra está à minha espera – resmunguei-lhe, com pouca convicção e inclinado a condescender.
– Então vai chamá-lo para beber com a gente.
Percebi que tinha mesmo de beber o café com ele. Precisava de digerir o acontecimento.
– Com que então os cabrões puseram-me na televisão…
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BA 3 - TANCOS (2)
Na véspera da Acção de Tancos (7 de Março de 1971) ultimávamos os preparativos. No dia seguinte fizemos uma simulação do que se iria passar dentro do hangar, num apartamento no cruzamento da Av. dos EUA com a de Roma, em Lisboa (eu fazia lá ideia que 2 andares abaixo morava o meu primo Celestino! Felizmente que não nos cruzámos, não que ele não fosse contra o regime mas nestas coisas não podemos meter "estranhos" mesmo da família).
A casa serviria de refúgio para o Ângelo de Sousa que teria de abandonar a Força Aérea e cerca de um mês depois, quando tudo acalmasse, ser clandestinamente passado para o estrangeiro. Carlos Coutinho e Eusébio foram levados de olhos fechados para o local e depois para o prédio e o andar e do mesmo modo sairam sem poderem identificar o esconderijo futuro do Ângelo que eu teria de abastecer de alimentos, café, livros e entusiasmos.
Dali partimos para Tancos na noite de 08MAR71. Eu no Volkswagen com o Ângelo e o Carlos Coutinho com o António Eusébio no seu célebre "carro da ARA" um Opel Cadete verde escuro.
Próximo da Base trocámos de carro, eu voltei para trás e esperei-os na estação do comboio de Santarém (uma espera dramática, receei com a demora que já não voltassem. Deveria ter-me-ido embora, de acordo com as regras. Mas pareceu-me na altura que aquela regra não estava bem e decidi esperar ainda mais. Finalmente vieram. Uma hora, uma hoooora, céus!!! depois do previsto. Jurei para nunca mais! Mas só por uns momentos.)
Agora um extracto do livro:
"Os nossos preparativos corriam tão bem que não podíamos imaginar que algum perigo inesperado pudesse ainda levar tudo a perder. E foi o que esteve à beira de acontecer. Depois de ter alugado o Volkswagen com documentação falsa, sem qualquer incidente, na antevéspera da acção, dirigi-me à arrecadação nos arredores de Lisboa onde tinha as cargas explosivas e incendiárias. Com elas enchi o pequeno porta bagagens do automóvel e fui, ao volante do Carro do Povo ter com o Carlos Coutinho que me esperava perto da Praça de Espanha. Dali partimos os dois para Belém onde ficava uma garagem alugada e onde o carro ficaria até partir para Tancos. Quando entrámos na Avenida de Ceuta a caminho de Alcântara, seriam umas nove horas da noite, passei o volante ao «Meneses» para ele conhecer o carro e exercitar-se um pouco, antes de no dia seguinte ter de o guiar, desembaraçado, até à base aérea.
Seguíamos em descontraída e animada conversa quando inesperadamente esbarrámos com um invulgar aparato policial que enchia a rotunda de Alcântara de agentes da Polícia de Choque e de cães-polícia. Com o carro cheio de explosivos, ficámos siderados. O nosso susto foi maior pelo inesperado. Não vimos à distância todo aquela força policial, que a nossos olhos assustados parecia superior a um batalhão. Vínhamos conversando alegremente e, sem aviso, desaguámos de supetão no meio daquela desproporcionada força policial. Tão fulgurante quanto a presença pouco recomendável dos polícias me veio a lembrança de que um carro alugado só pode ser legalmente conduzido por quem o alugou. Estávamos em transgressão! O Coutinho conduzia o carro bem por dentro da rotunda o mais longe possível dos polícias que pejavam as bermas. Suponho que me encolhi. Pelo menos interiormente. Para incomodar o menos possível suas excelências os polícias, os cães e os rádios. Foi tudo tão rápido que quando ainda íamos no meio do susto já saíamos do Largo de Alcântara totalmente incólumes, a caminho da marginal.
Só por milagre nenhum daqueles polícias ali especados a verem-nos passar se meteu connosco. Foi porque fizemos no escuro do carro um ar muito humilde e respeitador da lei, comentava para mim o Carlos Coutinho, uns minutos depois, já a descontrair e com um riso que me parecia ainda um pouco amarelo. Quem sabe se não toparam mesmo quem nós éramos e o que levávamos e decidiram: deixemos lá os rapazes seguir em descanso para não andarem sempre a dizer mal da polícia! Respondi ao meu companheiro. Já aliviados o Carlos parou o carro e trocámos de lugar passando eu a conduzir. Seguíamos então pela marginal naquele estado de espírito bonançoso que sucede às grandes tempestades. Refazíamos forças com prognósticos de bom tempo. O Carlos Coutinho animava-me e animava-se:
– Encontros destes são coisas que só acontecem de longe em longe. De dois em dois anos.
Dispunha-me a concordar plenamente quando, saindo não sei donde, se me atravessa ao caminho um polícia a mandar-me parar. Fiquei petrificado. Resmoneava, inaudível, indignado, sentindo-me vítima de intolerável injustiça: mas que raio é isto? é uma conspiração ou quê? Simultaneamente veio ao de cima como primeira preocupação não me atrapalhar na condução. Não só a carta de condução era falsa como, sem ter tirado carta nem praticado o suficiente, guiava mal. Parei o carro e procurei responder ao boa noite do bem educado guarda com um tom de voz de descontraída calma.
– Os seus documentos! – Pediu-me o polícia.
Entreguei tudo. Certinho. A carta de condução, o livrete, o título de propriedade, o documento do aluguer, o meu bilhete de identidade. Tudo falso como convinha! Foi o que traiçoeiramente me veio à cabeça dizer. Felizmente que só em pensamento. O guarda examinava os documentos um a um. Pelo canto do olho reparei no escuro da berma da estrada, três motos e mais dois polícias de trânsito. O homem era minucioso o que não me animava. O meu colega não sei como estava. Só reparei que tinha as mãos apertadas sobre as pernas e olhava em frente pretendendo talvez insinuar que estava completamente desinteressado do que se estava a passar. Para criar mau ambiente e acelerar o compasso do meu coração o desagradável guarda começou a tomar umas notas num papelinho qualquer. Talvez para me animar, não sei bem, deu-me na cabeça conversar, com naturalidade, com o polícia.
– Então o que é que se passa? É a segunda barreira por que passamos. É ladroagem?
Não me respondeu. Continuava a escrevinhar. Não conseguia evitar maus pensamentos e deixar de me interrogar, o filho da puta está a tirar notas dos documentos? Ainda abri a boca para dizer mais qualquer coisa que quebrasse aquele pesado silêncio quando conclui que era mau sinal ele não me responder. Calei-me. Por fim após uma eternidade levantou a cabeça do papel estendeu-mo e despediu-se com um boa noite tão lacónico como o primeiro. Ainda sem perceber bem o que se passava soletrei o papel que desconsoladamente não tive outro remédio senão receber da mão do polícia. Afinal, que surpresa! A letrinha miúda e a lápis informava simpaticamente uma eventual patrulha que posteriormente nos interceptasse «que este senhor condutor já tinha sido inspeccionado».
Nem queria acreditar! Era afinal uma espécie de salvo-conduto. Atestado de bom comportamento. Prova… não direi de bagagem legal, que não foi objecto de atenção, mas pelo menos de documentação sem mácula. Rezei a todos os santinhos para não arrancar com o carro aos solavancos. Fui atendido. Deslizei com o Carlos Coutinho e tudo o resto, com surpreendente suavidade.
Perdemos o gosto para mais conversas e só quando finalmente arrumámos o carro, o Carlos exclamou enfático com o ornamento de palavras próprias e sonoras que dispensam reprodução que há dias em que não se pode sair de casa!
2 comentários:
Adrenalina pura ;))
É sempre com prazer e emoção que lei os relatos da vossa vida, e não posso deixar de contyinuar a sentir por vós muito respeito e carinho e orgulho por ser vossa amiga.
Graças a muitos como vós pude sonhar Abril, mas hoje ainda que os cravos estejam murchos, ainda resta a esperança de que exemplos como o vosso possam ajudar a dar a volta.
Um abraço
Mize
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