2006/12/07

Tribunal Plenário da Boa Hora

Em 2006-12-06, nas instalações do antigo Tribunal Plenário da Boa Hora, em Lisboa, foi descerrada uma lápide evocativa da "justiça" da ditadura fascista que funcionava às ordens da PIDE, evocativa dos que contra ela lutaram e dela foram vítimas. Na iniciativa do MOVIMENTO NÃO APAGUEM A MEMÓRIA e na presença do Ministro da Justiça e do presidente do Supremo Tribunal Constitucional, António Borges Coelho, historiador, ex-preso político, professor universitário jubilado, fez a primeira intervenção:



"Em nome das vítimas dos Tribunais Plenários, dos mortos e dos vivos, saúdo os juízes do Tribunal da Boa Hora que quiseram activar a memória dos tempos sombrios. As vítimas que represento foram neste local gravemente ofendidas na sua dignidade e no seu próprio corpo. Avivar, hoje e aqui, a memória constitui, pois, um acto necessário e exemplar de cidadania.

Os presos políticos, mulheres e homens, que durante dezenas de anos pisaram a barra deste tribunal, não eram gente vencida. Tinham experimentado os perigos da luta contra a ditadura e o rigor da vida clandestina. Tinham suportado a prisão, os espancamentos, a tortura da estátua, os meses de isolamento nos buracos do Aljube ou em Caxias. Muitas vezes chegavam aqui ainda com as marcas da tortura.

Esta sala, que foi do Tribunal Plenário, era previamente ocupada por agentes da polícia. Um deles escrevia o relatório pormenorizado da audiência e não se coibia de comentar a actuação dos próprios juízes. Mas a polícia não podia impedir a presença de assistentes incómodos. Desde logo, a dos advogados que gratuitamente e com elevado risco assumiam a defesa dos réus. Depois, a das testemunhas que louvavam a conduta ética dos acusados e por vezes defendiam a justeza das ideias que eles professavam. Algumas testemunhas saíam directamente da sala de audiências para o calabouço. E havia ainda os olhos e os ouvidos dos que conseguiam vencer a barreira.

Os “julgamentos” começavam com a entrada do Promotor e dos Juízes do Tribunal Plenário. Entravam sem venda nos olhos e sem balança. Sabiam ao que vinham: julgar mulheres e homens cujos processos tinham sido instruídos, não por juízes, mas por agentes e inspectores da polícia política. E de que crimes eram essas mulheres e homens acusados? Do crime de exprimirem por palavras e escritos o seu pensamento; do crime de exercerem a liberdade de reunião e de associação.
Os Tribunais Plenários integravam-se no sistema de terror, legitimando-o.

No decorrer da audiência os acusados acusavam. A televisão não estava lá para abrir uma janela para o mundo; a imprensa silenciava; o país seguia cabisbaixo. Mas as vozes daqueles que aqui se ergueram acusando ecoaram fundo no coração de muitos portugueses. Não vou referir nomes. Alguns têm o seu lugar na nossa história. Hoje lembro somente aqueles que acusaram e de que ninguém fala. Por vezes agredidos e empurrados para o calabouço.
Estas paredes assistiram a muita agonia, a opressão, a desprendimento total das coisas terrenas, a gestos comoventes de sacrifício e dedicação aos outros. Mulheres e homens que nada tinham senão os corpos e a mente indicavam com o seu sacrifício que há momentos em que é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa.
Vinham de todas as camadas sociais mas predominavam os camponeses, os operários, os intelectuais e os jovens. Recordo-os a todos como pessoas nas suas diferenças sociais e políticas e queria com estas palavras erguer um longo mural que chamasse, um a um, todos os nomes.
Eles assumiam, letrados ou não, a dignidade antiga e quase sagrada de Sócrates perante os quinhentos juízes do tribunal de Atenas.

No final do espectáculo, o Tribunal Plenário condenava as vítimas a anos e anos de prisão, a que acrescentava as medidas de segurança de seis meses a três anos, renováveis tantas vezes quantas a polícia política decidisse com a dócil assinatura dos servidores do Plenário.

Renovo a saudação a todos quantos participaram nesta breve memória dos tempos sombrios. Mas as últimas palavras reservo-as para a primeira noite dos condenados depois da leitura da sentença: embrulhados nas mantas imundas, cortados da vida, sem outro futuro à vista que não o do cárcere e o da “fé”.

2006/12/06

Juizes da democracia branqueam juizes dos Tribunais Plenários

Na cerimónia promovida pela Associação Cívica NÃO APAGUEM A MEMÓRIA em 2006-12-06 (ver posts abaixo) será descerrada uma lápida evocativa dos Tribunais Plenários.
"O almirante Martins Guerreiro, "capitão de Abril", explicou ao PÚBLICO [encontrei o link no Câmara Corporativa] que o Movimento apresentou uma proposta de texto para a lápide:
"Nesta sala do então Tribunal Plenário, entre 1945 e 1974, foram julgados inúmeros adversários políticos da ditadura, acusados de "crimes" contra a segurança do Estado. "O tribunal não actuava com independência, aceitava e cobria as torturas e ilegalidades cometidas pela PIDE/DGS, limitava-se, salvo excepção, a repetir a sentença que a polícia política já tinha definido. Muitos juízes ignoraram e impediram os presos políticos de denunciarem as agressões e metódos da PIDE/DGS. A justiça e os direitos humanos não foram dignificados nem respeitados no Tribunal Plenário."
"Após negociação com o tribunal da Boa-Hora, através do juiz Carlos Berguette, o texto acabou por sofrer algumas alterações:
"Aqui funcionou o "Tribunal Plenário", onde, entre 1945 e 1974 - período da ditadura -, foram condenados inúmeros adversários do regime, acusados de crimes contra a segurança do Estado. A justiça e os direitos humanos não foram dignificados. Após o 25 de Abril de 1974 a memória perdura e a justiça ganhou sentido. À dignidade dos homens e mulheres aqui julgados por se terem oposto ao regime da ditadura."
Os juizes destes tribunais foram submissos executantes das ordens da PIDE e o 25 de Abril, mercê de ambiguidades do processo político de então, nunca chegou a responsabilizá-los pela sua cumplicidade com o terror fascista. Alguns juizes, hoje, em vez de se sentirem bem com a denúncia daquela situação parece que tentam encobri-la. Seria uma solidariedade corporativa comprometedora. Não sei se pensam que defendem a dignidade da Justiça tentando ocultar a indignidade dos seus colegas dos Plenários mas na realidade o que resulta é comprometer aquela com estes . Vergonha!
 

O último julgamento do tribunal plenário

"Na manhã do próprio 25 de Abril [de 1974], antes da consolidação do MFA, decorria, na Boa Hora, mais uma sessão do julgamento do caso da ARA (Acção Revolucionária Armada), organização afecta ao Partido Comunista. Foi o último processo a ser julgado naquele tribunal de execrável memória. Presidia o desembargador Fernando Morgado Florindo. Na sequência da ligação directa do Plenário com a PIDE, Morgado Florindo exarou um despacho, até agora inédito e que reproduzimos na íntegra:

"Tendo a Direcção-Geral de Segurança comunicado telefonicamente a impossibilidade de assegurar a condução dos réus a este tribunal, devido ao Movimento das Forças Armadas, adio "sine-die" o julgamento. "

In: DN de 25 de Abril de 1999, artigo de António Valdemar Bem informados do 25 de Abril... pela PIDE

Os Tribunais Plenários.


Gravura de Dias Coelho, assassinado por uma brigada da PIDE, numa rua de Lisboa, em 19 de Dezembro de 1961 [por gentileza da Fundação Mário Soares].

O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! vai concretizar, em pedra e cal, um dos seus objectivos: assinalar para os presentes e vindouros que no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, funcionou, de 1945 a 1974 um arremedo de justiça, designada por “tribunais plenários”.

Convém recordar que no dia 24 de Abril de 1974 ainda este sinistro tribunal (?) se reuniu e ordenou ao meirinho para trazer à sessão os acusados de “acções subversivas, visando o derrube do Estado Novo”. O meirinho respondeu que não havia acusados, a carrinha que os devia trazer da prisão de Caxias não chegara e, ao que constava, decorria uma revolução que tinha por objectivo libertar todos os presos políticos e derrubar definitivamente o Estado Novo.

Consta que os juízes arrumaram as becas, recolheram a penates e ficaram assolapados nas suas mordomias, aguardando que a situação se esclarecesse. Comportaram-se como o camaleão e, tal como ele, abocanharam a presa. Estes togados, que anos a fio tinham agido com baixeza moral e sido um exemplo de ignomínia para com a Justiça humana, conseguiram emergir do pântano da vileza e servilismo para, revestindo-se do manto do exercício irresponsável da lei, voltar a distribuir a Justiça dos códigos jurídicos. A maioria reformou-se por limite de idade, mas houve quem chegasse ao Supremo Tribunal, numa atitude de supremo desplante, que infelizmente nenhum colega de mister teve a justeza de denunciar publicamente.

Só agora, 32 anos passados, foi possível, graças a uma nova geração de magistrados, para quem a democracia é o regime natural das sociedades humanas, reabilitar a dignidades dos muitos resistentes que ali foram julgados e algumas vezes espancados pelos agentes da PIDE, a feroz polícia política do regime, no decorrer do próprio julgamento, perante a cúmplice passividade dos juízes (?) que presidiam à sessão.
A sentença vinha já inscrita na acusação instruída pela própria polícia política. Ela investigava, procedia à detenção, interrogava sem limite nem peias, instruía o processo e determinava a pena a aplicar, que os juízes (?) do tribunal plenário aplicavam com obediência canina – incluindo as “medidas preventivas”, que determinavam a prorrogação automática da pena, de seis em seis meses, se a PIDE o achasse conveniente para “a segurança do Estado”.

O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! sente um legítimo orgulho em poder afirmar que esta denegação da Justiça, praticada num secular lugar de Justiça vai ser reparada, na medida simbólica que a história o permite.
No próximo dia 6 de Dezembro, pelas 17h30, na 6ª Vara Criminal do Tribunal da Boa-Hora, lugar de opróbrio para justiça portuguesa, pois aí funcionaram os famigerados tribunais plenários, vai ser descerrada uma lápide chamando à atenção do visitante para que ali, durante o regime ditatorial do Estado Novo, a dignidade dos homens e mulheres livres foi ultrajada por vis juízes e desprezíveis torcionários.
O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! considera um dever de memória a divulgação deste acto, por isso convida-vos a estar presentes na cerimónia de descerramento da lápide e a dar a divulgação que julgamos que este acto merece. Junto enviámos o programa da sessão que decorrerá a 6 de Dezembro próximo. "

2006/11/29

Almeida Santos: "Quase Memórias"


“Traição de Omar” faz correr lágrimas em Spínola”

(Excertos, 2.° volume, pp. 66-70)
In Público 2006-11-28

Na véspera da partida da delegação portuguesa que ia iniciar em Dar-es-Salam as negociações com uma representação da Frelimo [ 15 de Agosto de 1975] recebeu-se em Lisboa a notícia, de fonte militar, de que uma companhia das Forças Armadas portuguesas havia sido “emboscada e aprisionada” por forças da Frelimo, em Omar, no Norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia.
Justamente indignado o Presidente Spínola exigiu que antes de dar inicio às negociações e como condição desse início a delegação da Frelimo apresentasse desculpas à delegação portuguesa, por essa traiçoeira atitude das suas forças.
Assim fizemos. Mas com surpresa nossa, Samora Machel começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar:
– Emboscada de Omar?! Uma companhia aprisionada?!...
Por fim fez-se luz no seu espírito:
— O quê? Aquela “entrega” dos vossos soldados?
E voltando-se para um qualquer assessor da sua delegação:
— Traz a cassete...
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida, e ouvi-la ficou a constituir uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.
O que nós ouvimos foi o registo sonoro de uma “entrega”, não apenas voluntária, mas insistentemente solicitada
-Vocês quem são?
(Veio a identificação.)
- E querem entregar-se porquê?
— Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!
Não garanto a exactidão das palavras — cito de memória — mas asseguro o sentido delas.
Seguiram-se os abraços, o “pega lá a minha arma, meu irmão”, etc., etc. É claro que não havia lugar a exigência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo.
Mal chegados; a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.
— Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete...
— Uma cassete?!
— É verdade! Uma cassete!
Logo se pediu um leitor de cassetes. Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás do seu inseparável monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? Se aquilo era para ele o que era para mim, inveterado paisano, o que não seria para o lendário cabo-de-guerra?... (...)

2006/11/25

O que foi o 25 de Novembro de 1975?

O que se segue é uma adaptação de parte da entrevista que dei ao Público, em 21 de Novembro de 2000.
Nela procuro apresentar o confronto militar do 25 de Novembro como o culminar de um processo político e militar caracterizado pela sucessão de lances e respostas político-militares até um momento de máxima tensão e rotura. E não, portanto, um momento em que após maior ou menor preparação, os contendores em presença desencadeiam um golpe militar. 

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Ambas as partes consideram o confronto militar do 25 de Novembro um golpe da parte adversa. Os vencedores: PS, o centro e a direita com o Grupo dos 9 e os Comandos usam como argumento o facto de o 25 de Novembro ter sido desencadeado pela Esquerda com os paraquedistas que foram na madrugada de 24 de Novembro ocupar as bases da Força Aérea em Tancos, Monte Real, Montijo e o Comando em Monsanto, Lisboa. Os vencidos: PCP, alguns partidos de extrema esquerda, a esquerda militar gonçalvista e a esquerda militar otelista alegam que esse movimento militar era um movimento defensivo face à informação de ataque iminente da Força Aérea que não havia um plano subsequente nem estado maior militar, institucional (Otelo deixou o COPCON, foi dormir e só reaparecu a 25 de tarde, já o confronto estava mais ou menos decidido) ou paralelo ( o SDCI era um serviço de informações e sem condições de posto de comando) enquanto a parte contrária tinha um posto de comando e forças preparadas no Regimento de Comandos, reforçado com a chamada clandestina a fileiras de centenas de ex-comandos. 

Do Público de 21 de Novembro de 2000: 

Raimundo Narciso: "... A minha leitura desses acontecimentos é que a ordem aos pára-quedistas para a ocupação das bases parte da esquerda militar e tem o aval do PCP. Mas o que se esquece é o contexto, o que se estava a passar no próprio regimento de pára-quedistas, e seus antecedentes. O 25 de Novembro é só o culminar de uma situação, uma parada um pouco mais alta que o PCP e esquerda militar não conseguiram sustentar e que foi o momento em que as forças opostas, com um plano de operações prepardo acharam que podiam responder com uma acção vitoriosa. Há uma sucessão de ofensivas e contra-ofensivas, desde Maio, da esquerda revolucionária e das forças que se lhe opõem.
Público: - Pode explicar melhor?
RN - A 19 de Maio, o PS abandona o Governo, a 8 de Julho há uma resposta da esquerda: sai o Documento-Guia Aliança Povo-MFA - que é uma proposta de estrutura de organização política que os adversários apelidavam, de um novo corporativismo. 
- A 10 de Julho, há a tomada do 
jornal "República" (acção de influência da UDP) e como resposta a esta efervescência revolucionária, no mesmo dia, a saída definitiva do PS do Governo. 
- No dia 19 a 
manifestação do PS na Alameda e o pedido para que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves se demita. A 8 de Agosto, a esquerda militar e o PCP conseguem impor o V Governo Provisório. 
- Há logo uma resposta: vocês tomaram conta do Governo mas vamos esvaziá-lo de poder. A cúpula do MFA, onde o PCP tinha poder, é reduzida ao chamado 
directório, onde Costa Gomes, Otelo e Vasco Gonçalves não se entendem e a operação salda-se numa derrota da esquerda.
Público.- Pelo meio aparece a FUR...
RN.- A esquerda em desespero pela perda de influência de massas, já com os ataques às sedes do PCP, perda de influência militar e sem possibilidade de aliança com o PS, cria a 
FUR [efémera e tácita aliança entre o PCP e forças "esquerdistas"], uma coisa inédita. Carlos Brito (membro do Comité Central e Comissão Política do PCP) e eu (membro do Comité Central do PCP) passámos uma noite inteira a negociar com a esquerda revolucionária [no Centro de Sociologia Militar com a iniciativa e a presença de militares do MFA mais radical] num ambiente verdadeiramente surrealista. Nesta altura, foram criados no Porto os SUV por militantes do PCP e outros partidos de esquerda, que apareceram como resposta ao saneamento pela hierarquia tradicional, recentemente reposta pela substituição do brigadeiro Corvacho pelo brigadeiro Pires Veloso, dos membros das Assembleias de Dinamização de Unidade. Foi uma explosão, fez-se uma enorme manifestação de civis e soldados no Porto, outra em Coimbra e duas em Lisboa, algo que o PCP considerou que não era de condenar, mas de apoiar. A situação era, na realidade, já de desespero mas a comissão política do PCP avaliou em comunicado, erradamente, que se tratava de um novo fluxo revolucionário. A seguir, em Setembro, há outra resposta que é a assembleia do MFA em Tancos, e em resultado a esquerda militar foi saneada [dos órgãos político-militares e de comandos militares]. Vem o VI Governo provisório. Depois surge o AMI, grupo de intervenção militar influenciado pela direita, e há uma resposta da esquerda, a Rádio Renascença, reocupada por forças da esquerda radical. A 7 de Novembro, os oficiais pára-quedistas vão às instalações da Rádio Renascença e fazem explodir o emissor. Segue-se, a 8, a resposta dos sargentos e soldados pára-quedistas, que recusam a presença na unidade de Tancos do chefe do Estado-Maior da Força Aérea [Morais da Silva] e tomam conta da unidade. No dia seguinte, há a grande manifestação do Terreiro do Paço afecta às forças que se opõem ao processo revolucionário...
P. - Estava-se à espera de um pretexto, de uma casca de banana?
R.
 - Todos os dias havia cascas de banana. A 10 de Novembro, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea decide 
retirar os oficiais de Tancos [200?] e isso cria uma situação de sublevação em toda a unidade onde ficam 5 oficiais, os sargentos e as praças com um comando paralelo. A 12, há a manifestação e o cerco da Constituinte. Não quer dizer que as coisas estivessem programadas nos estados-maiores de um e outro campo em confronto. Havia os planos estratégicos: recuperar poder e avançar a revolução e, do outro lado, suster o processo revolucionário, institucionalizar a democracia representativa ou, para as forças de extrema-direita, aniquilar o PCP e instalar um poder musculado. Mas o dia a dia obrigava os estados-maiores políticos e militares a gerir o processo "desorganizado" por mil e uma força civil ou militar, política ou social que marcava o compasso da revolução. No dia 19, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea ordena a dissolução da unidade, e dá ordem aos sargentos e oficiais milicianos e do quadro permanente desta unidade da Força-Aéwrea para regressarem às suas unidades de origem no Exército. mas eles não abandonam o quartel que passa funcionar em auto-gestão. No dia 20, o Governo auto-suspende-se.
P.- O golpe podia ter ocorrido aí?
R.-
 A situação podia ter-se precipitado aí, podia ser essa a casca de banana, mas ainda não estavam maduras as condições. Em 21 de Novembro, há um 
juramento de bandeira revolucionário no Ralis [Regimento de Artilharia de Lisboa]. E a 23, há a luta pela conquista do batalhão de pára-quedistas que regressa de Angola. São militares que não viveram a revolução e desconhecem a "guerra" em que os para-quedistas, em Portugal, estão metidos. O bote da polícia marítima que faz o primeiro contacto com o navio que foi decidido não atracar ao cais leva um agente, um civil, do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea com uma mensagem para entregar ao comandante da unidade o ten-coronel Almendra, a preveni-lo de que a unidade não vai para o quartel de Tancos e para não deixar entrar no navio os sargentos que iam no bote, agentes dos para-quedistas sublevados de Tancos que pretendiam ganhar a tropa para o seu lado. Depois, nesse mesmo dia, há um comício de apoio ao VI Governo em Lisboa. No dia 25, a tropa pára-quedista está em polvorosa, foi-lhe cortada a água, a luz e a alimentação, acreditando em boatos de que agora é que os "contra-revolucionários" vão dar o golpe.
Nessa noite, há um arremedo de estado-maior da esquerda militar, ainda pouco consolidado, no SDCI, que tem ramificações insuficientes no Copcon e está em contacto com os pára-quedistas. 
Corre o boato que a Força Aérea ia bombardear. Portanto isto é um pretexto melhor ou pior para os "páras" saírem. É uma medida excessiva, porque não corresponde a uma real força, nem do PCP, nem da esquerda militar que não tem comandantes, nem dispositivo suficiente. Sair com um aparato destes pode ser tomado como um acto de guerra. A direita estava preparada e viram que havia condições para dar a resposta. A seu lado têm a legitimidade institucional, têm o apoio do Presidente da República, o que foi decisivo. Do outro lado o que há? Há o desaparecimento do Copcon... "

2006/11/20

O Relatório de Krutchev , repercussões e actualidade"

Colóquio organizado pela Associação Renovação Comunista na Biblioteca Museu da República e da Resistência no dia 7 de Novembro de 2006
Participantes: Carlos Fidalgo – moderador, Carlos Brito, Fernando Rosas, Raimundo Narciso.

Intervenção de Raimundo Narciso:

...Nikita Krutchev conseguiu importantes vitórias mas as suas reformas revelaram-se insuficientes e falhou o intento de colocar o comunismo em boa via. Gorbatchov, 30 anos depois, diria que pegando no testemunho de Krutchev, fez nova tentativa com o mesmo objectivo e… com o mesmo resultado. Com ele fracassou a experiência soviética e o próprio país. Não estou certo que aqui os meus amigos renovadores do comunismo português tenham êxito maior mas apesar de tão temerária ambição desejo-lhes, sinceramente, o maior sucesso.


Funeral de Stáline. Da esq p a dir, 1º plano: Béria, Voroshilov, Krutchev.
Na noite de 24 de Fevereiro de 1956, Nikita Krutchev não quis deixar para o dia seguinte a leitura aos delegados do seu explosivo relatório, verdadeira bomba atómica política, com a qual queria mudar o rumo da União Soviética, exorcizar o seu passado e sem dúvida consolidar o seu poder. Uma reunião do Praesidium do CC realizada no decorrer do próprio congresso, na qual se discutiu a decisão de Krutchev de apresentar o relatório da denúncia do culto da personalidade e dos crimes de Stáline tinha revelado a forte oposição de um poderoso grupo de dirigentes, entre os quais, Molotov, Kaganovitch, Vorochilov.

...Uma das consequências da sua iniciativa viria a beneficiá-lo directamente. A partir de agora as diferenças de opinião, não aquelas que se cinjam à ideologia ou à orientação política mas aquelas que afectem a preservação do poder, deixavam de ser resolvidas com o fuzilamento de quem tinha menos força.

Lembremos que Nikita Krutchev já tinha resolvido com os seus aliados conjunturais o problema Béria.

...Quem era Krutchev, que se atrevia a abalar os alicerces do Estado totalitário e a deitar por terra a imagem do homem cuja evocação ainda, em 1956, fazia tremer os que com ele privaram de mais perto, aqueles que nos últimos tempos da vida de Stáline nunca sabiam se a sua chamada ao Kremlin lhes garantia o regresso a casa ou os destinava à prisão? Era um ucraniano inteligente, extrovertido, sagaz, de pouca cultura, de origem muito pobre a quem a revolução abriu caminho ao sucesso. Começou a trabalhar ainda criança como operário. Foi estudando aqui e ali até atingir o quarto ano de escolaridade e depois já adulto frequentou por insistência sua, nas oportunidades que lhe surgiam, cursos mais de formação profissional que de ciência pura.
Voluntário no Exército Vermelho, activista político e sindical inscreveu-se no partido bolchevique em 1918...

Em 1921/22, período de grande fome, já um quadro político do partido com importância local, trabalha numa mina. As condições de vida são tais que se não é socorrido pelo dono da casa onde partilhava um quarto – ironia do destino, um kulak - teria certamente morrido à fome. O que aliás viria a suceder mais tarde à sua primeira mulher. Fez uma carreira bem sucedida sob a protecção de Lazar Kaganovitch.
Subia a pulso, com uma fé inquebrantável no comunismo e a sua trajectória é paradigmática das oportunidades de ascensão criadas na nova ordem social às camadas mais despossuídas da sociedade.
Em 1934, Krutchev foi eleito delegado ao célebre XVII congresso que ficou conhecido como o “congresso dos vencedores”. E sofreu uma das primeiras machadadas na sua fé sem limites no partido. Kaganovitch já um dos poderosos dirigentes, do círculo próximo de Stáline pede-lhe a ele e outros novatos da sua confiança que na votação risquem o nome de Molotov e Voroschilov, porque era preciso garantir que Stáline fosse o mais votado.
Depois da morte do ditador veio a descobrir-se que ele tinha tido 260 votos contra e não os 6 que foram anunciados enquanto que o mais popular dirigente da época, Kirov tinha tido, de facto apenas 3 votos contra. (1)

...Quem era este “Nikita Krutchev que acabou por ir mais longe que os todos os seus colegas na via da desestalinização” pela “aceitação pessoal de enfrentar o seu passado de estalinista, por autêntico arrependimento, habilidade política, populismo específico,… vontade de voltar à legalidade comunista”?
Era um quadro político que da experiência comunista da Rússia só conheceu o estalinismo. Que em 1937 fora eleito, ou nomeado, 1º secretário do comité da região de Moscovo e discursava assim numa conferência pública:
“Os trotskistas levantam as suas mãos traidoras contra o camarada Stáline, Stáline a nossa esperança; Stáline o nosso desejo, Stáline: a luz da humanidade avançada e progressista. Stáline a nossa vontade, Stáline: a nossa vitória” (2)
...Quando o ditador morre Krutchev é a 5ª figura do poder tendo à sua frente e por esta ordem Malenkov, Molotov, Beria e Kaganovitch.
Após a morte de Staline o Praesidium do CC nomeou Malenkov chefe do Governo e 1º secretário do CC. Decidiram acabar com o lugar de secretário-geral que fora criado para Stáline e que foi depois recuperado por Brejnev. Começou a ser restabelecido o poder dos órgãos do partido, CC e Praesidium do CC sobre o todo poderoso serviço secreto (Krutchev diz nas suas Memórias a página 66 que havia 1 milhão de agentes) mas desde logo se iniciou a arrumação de poderes e hierarquias no Praesidium. Todos sentiam que a sua segurança era precária enquanto Béria, com o controlo dos serviços secretos, executante e cúmplice mais directo de Stáline em incontáveis crimes andasse por ali.
...Béria foi julgado com um julgamento farsa igual aos que ele organizava e com os mesmos resultados. Foi fuzilado.
O método de Stáline para lidar com os seus camaradas ou rivais acabou com a eliminação de Béria. A acusação usou ainda a retórica e utensílios legais do ditador e foi condenado como inimigo do povo, espião do estrangeiro e outras convincentes acusações do mesmo estilo.
Livre de Béria e dos seus colaboradores que, estes sim, foram apenas presos, o poder foi sofrendo ajustes e em Setembro de 1953, sete meses após a morte do ditador, o Praesidium eleva Krutchev a 1º Secretário do CC, cargo até aí acumulado por Malenkov com a presidência do Governo.

Consequências internacionais

A viragem da política soviética que o Relatório de Krutchev representou se foi grande no plano interno não foi menor no plano internacional.
A maior das suas consequências foi sem dúvida a tese sobre a possibilidade de coexistência pacífica entre Estados com sistemas económicos e sociais diferentes concretamente entre os Estados socialistas e os Estados capitalistas.
Um corolário deste princípio era a aceitação da possibilidade de se evitar a guerra entre os dois sistemas. Era uma nova orientação virada para a paz e o desarmamento que viria a tornar-se numa orientação duradoura da União Soviética apesar de não ter sido suficiente para evitar o crescente confronto entre os dois campos e a “guerra fria”.
Outra tese que não deixava de ter alguma relação com aquela foi a da possibilidade da passagem ao socialismo por diferentes vias entre elas a via pacíficaA alteração do rumo político relativamente a Stáline introduzida por Krutchev apesar de forte resistência do sector conservador e que vinha já dos anos anteriores ao XX congresso manifestou-se no restabelecimento das relações de amizade com Tito e a Jugoslávia na normalização das relações com a Áustria..
Com este país a União Soviética estabeleceu um tratado de paz, no âmbito das negociações com as potências vencedoras da 2ª GM e promoveu a desocupação militar em troca da sua neutralidade.

De acordo com os novos princípios apresentados no XX congresso Krutchev deu início a uma estratégia de distensão militar com os Estados Unidos, de reforço da paz mundial e pelo desarmamento.
As boas intenções chocaram no entanto com a realidade. O campo liderado pelos Estados Unidos não desistia do cerco, político, militar, económico e tecnológico e mantinha como ponto central da sua política a derrota da União Soviética e do comunismo. A situação era tal que em 1965 a ligação aérea entre Moscovo e Havana tinha de ser feita pela rota do pólo Norte e pelo Atlântico porque os aviões soviéticos das carreiras aéreas de passageiros não estavam autorizados a sobrevoar a Europa Ocidental.

A União Soviética não desistia, apesar do acento posto agora na diversidade de vias para ao socialismo entre elas a via pacífica como orientação para a luta dos partidos comunistas e outras forças contra o capitalismo, de se opor por todos os meios incluindo o da força armada à defesa dos regimes sob seu controlo na Europa de Leste.
O comprometimento das direcções partidárias e dos Governos da maior parte destes países, com purgas de sua iniciativa ou impostas por Stáline, era grande e a desestalinização não deixou de ser um processo dramático nalguns destes países.

As novas teses de Krutchev sobre a coexistência pacífica e a diversidade de vias para o socialismo acabaram por se chocar com as posições da China e contribuir, aliás como toda a política anti-estalinista de Krutchev, para o grande cisma comunista resultante do denominado diferendo sino-soviético.
Outro ponto culminante do confronto entre os dois sistemas mundiais e que levou o mundo, como nunca antes, nem depois, à beira da catástrofe nuclear foi a crise dos mísseis com armas nucleares em Cuba. Como se sabe a crise teve como desfecho, no fim de Outubro de 1962, o acordo com Kennedy pelo qual a União Soviética retirava os mísseis de Cuba e os EUA comprometiam-se a não invadir a ilha de Fidel Castro, que aliás se opôs ao acordo, e a retirar os mísseis norte-americanos apontados à União Soviética instalados na Turquia.
Este acordo saldou-se em termos de imagem num revés para Krutchev que aliado ao fracasso da sua política agrícola, o calcanhar de Aquiles de todos os Governos soviéticos, foi aproveitado para o seu afastamento em Outubro de1964.
No capítulo do desarmamento a política de Krutchev acabou por assinalar um êxito importante com a assinatura do Tratado de Moscovo de suspensão das experiências nucleares submarinas e na atmosfera em Agosto de 1963.

Repercussões em Portugal

A nova orientação de Krutchev contra o culto da personalidade de Stáline e o estalinismo em geral também não deixou de ter repercussões em Portugal ainda que relativizadas à condição de um partido que não só não está no poder como luta obrigado a duras condições de clandestinidade.
Na primeira reunião do CC do PCP realizada em Maio de 1956, três meses depois do XX congresso do PCUS, e depois no 5º congresso (Setembro de 1957, Estoril) vai triunfando, influenciada pelo XX congresso, uma orientação política de luta contra a ditadura fascista que substitui a via do levantamento nacional violento, o derrubamento do regime pela força, pela via pacífica. Ora um levantamento nacional pacífico ora através de eleições.
É de acordo com esta linha que em 1959 o PCP promoveu a “Jornada nacional pacífica pela demissão de Salazar”, após as eleições farsa de 1958, em que o general Delgado foi sem a mais leve surpresa “derrotado”. Essa jornada nacional pacífica incluía um abaixo assinado que por acaso também assinei e reuniu, se bem lembro, a assinatura de 402 corajosos portugueses seguramente tão descrentes da eficácia de tal exorcismo como eu.

Esta orientação “pacifista” para o derrubamento do regime do “Estado Novo” foi muito causticada por Álvaro Cunhal, após a sua fuga da cadeia de Peniche, em Janeiro de 1960, no documento O DESVIO DE DIREITA NO PCP NOS ANOS 1956-1959, e foi substituída no 6º congresso (Setembro de 1965, Kiev) pela linha que propunha a via insurreccional armada para o derrubamento da ditadura no célebre documento O RUMO À VITÓRIA.

Também estimulada pelo novo alinhamento com o PCUS de Krutchev se procurou identificar no PCP uma tendência para o culto da personalidade de Álvaro Cunhal, então preso, que viria a apagar-se, tal como nascera, sem grande ruído, por minguada consistência.

As repercussões do XX Congresso e de Krutchev à frente da URSS também se poderiam medir pelo desaparecimento dos malefícios da continuação do culto religioso de Stáline entre nós. Pelo menos a mim, tão pouco atreito a rezas, poupou-me o risco de ter de o incensar como “pai dos povos”.

Que futuro para o Socialismo?

Que espécie de socialismo é este? Não sou eu que interrogo. É Krutchev no fim da sua vida, em prisão domiciliária, relativamente benévola, nos arredores de Moscovo, na última página das suas Memórias. E continua: “o paraíso é um lugar para onde as pessoas querem ir, não é um lugar de onde se foge. Mas as portas deste país continuam fechadas e trancadas. Que espécie de socialismo é este? Que espécie de merda é esta se temos de manter o nosso povo agrilhoado? (1)

Isto remete-nos para outra ordem de questões e questões fundamentais.

O comunismo galvanizou milhões de pessoas porque oferecia um mundo melhor do que aquele que aos trabalhadores estava reservado pelo capitalismo. A difícil luta pelo socialismo e o comunismo tinha para lá do fim da exploração do homem pelo homem, das metas a cada um conforme o seu trabalho, ou no horizonte a cada um de acordo com as suas necessidades, para lá da conceptualização do fim da opressão e da alienação do homem, o socialismo tinha uma justificação imediata simples: uma vida melhor do ponto de vista material e espiritual para os trabalhadores e a população em geral.
A União Soviética e o “campo socialista” apesar de enormes realizações na industrialização do país, na educação, na saúde, na ciência, nas armamentos, na conquista do espaço, não conseguiu revelar-se no plano económico e nos ritmos de desenvolvimento, em especial nos desafios da sociedade pós-industrial, superior às sociedades capitalistas mais avançadas.

O homem que a retórica marxista-leninista considerava estar no centro de tudo. De toda a actividade económica, social e política, não passou no estalinismo de figura de estilo e depois um pouco melhor mas não o suficiente.
A Rússia em 1917 era um mar de camponeses saídos da servidão apenas há meio século donde emergiam algumas ilhas industrializadas e o calcanhar de Aquiles do poder soviético foi não ter conseguido nunca resolver satisfatoriamente, a não ser por pequenos períodos, os problemas económicos principalmente no âmbito da agricultura e dos bens de consumo corrente que garantissem uma qualidade de vida superior à dos trabalhadores dos países da Europa Ocidental ou dos EUA..
Daí que momentos de viragem tão dramáticos como os de 1927/28 com a imposição administrativa da colectivização e “deskulakização” dos campos, o saque do trigo e outros produtos aos camponeses, estejam ligados à incapacidade de abastecer o país com pão e produtos agrícolas, dificuldades que chegam até ao XX congresso e irão ciclicamente continuar.
Com Stáline e mesmo depois a economia foi dirigida por métodos administrativos até ao absurdo com a substituição das leis económicas pelo voluntarismo.
Krutchev tentou descentralizar a economia e atacar os problemas agrícolas mais urgentes, e retirar a economia do colete de forças administrativo e voluntarista mas não conseguiu encontrar a essência, as causas profundas dos insucessos nem um rumo coerente para os vencer.
A substituição de Krutchev em 1964 com um golpe palaciano que viria a ser repetido sem êxito – ou com excesso de êxito – contra Gorbatchov, em 1991, teve para além de motivações imediatas de âmbito político e luta pelo poder, causas mais profundas de ordem económicas e em especial a crise na agricultura com o desvanecimento das esperanças no celeiro das terras virgens, uma área de muitos milhões de hectares que não levou em conta as objecções dos cientistas soviéticos que já então adivinhavam o impacte ambiental negativo que levou rapidamente ao desastre.

Muitas questões coloca o XX congresso do PCUS aos comunistas mas muitas mais colocam as reformas de Gorbatchov e o fim da União Soviética precedido pelo fim do socialismo nos países da Europa do Leste e pelo que se passa na China, em Cuba ou na Coreia do Norte.
Teria sido possível avançar para uma sociedade verdadeiramente socialista persistindo na via de reformas encetada por Krutchev?
Teria sido possível a Gorbatchov com medidas mais ousadas ou cautelas mais previdentes encontrar uma saída diferente para a Rússia?



E os problemas nacionais que se dizia estarem resolvidos!? Tão insistentemente que dava que pensar. Seria consistente a tese de Lenine, de que o socialismo era possível vencer a partir do “elo mais fraco da cadeia dos países capitalistas na era do imperialismo”? A partir da Rússia atrasada contrariando a ideia de Marx de que a revolução só poderia triunfar a partir do conjunto dos países mais desenvolvidos do capitalismo?

Na minha opinião os impasses do socialismo real têm na sua base a incapacidade demonstrada para resolver as questões de desenvolvimento económico que possibilitassem um nível de bem estar maior e mais harmonioso, isto é com justiça social, superior ao capitalismo. Mas a chave para resolver este problema de fundo está, no meu modesto entendimento, na super-estrutura política, está na liberdade individual. A superação das dificuldades económicas pressupõe o contributo livre e criativo à escala de massas. Sem mais e melhor democracia sem mais e melhor liberdade individual do que aquelas que gozam as grandes massas da população nos países capitalistas, a sociedade que se quer socialista não poderá vencer.
Não sei se era possível equilibrar a defesa da liberdade e da participação democrática com a defesa do Estado do cerco e da guerra que lhe era movida pelo campo imperialista.
Por outro lado como é do conhecimento, não diria geral, porque não é, como se vê por aí, mas de conhecimento muito generalizado, os ideias progressistas de reforma social, chamemos-lhe socialismo, têm de abordar uma realidade social completamente distinta das dos tempos de Marx, Lenine, Krutchov, ou mesmo de Gorbatchov. E a utensilagem teórica se não dispensa o conhecimento crítico da História não pode ser a mesma para o comboio a vapor ou o motor eléctrico que para a do mundo globalizado, do conhecimento, da informação, da Internet do telemóvel. Não sei se a solução desponta dos estudos de Penin Redondo que tenho curiosidade em conhecer ou dos estudos de teóricos de vanguarda por esse mundo além. Para tantas dúvidas deixo o esforço das respostas aos renovadores comunistas portugueses que tiveram a amabilidade de me convidar.

Notas: Os títulos "Consequências internacionais" e "Repercussões em Portugal" não foram lidos no colóquio, como lá informei, devido à extensão do texto.

(1) - Memórias de Krutchov – As gravações da Glasnost – Editorial Inquérito (1990 by Jerrod Schecter), página 42.

(2) Le dossieer Russie 1 Marcel Liebman Edit. Marabout Université , com outros,1966, Editions Gerard& Cº Verviers. pág.165

Outras fontes consultadas:
Relatório de N. Krutchev ao XX congresso do PCUS. Editions Novosti, 1988.
Operações Especiais de Pavel Sudoplatov e Anatoli Sudoplatov. Publicações Europa- América 1994.
Let History Judge de Roy Medvedev – 1971, Editions Alfred A. Knopf.
Le Phénomène STALINE – vários autores soviéticos Editions NOVOSTI Moscovo 1988.
Historia de la URSS – Editorial Progresso Moscovo 1977. Vários autores.
O Livro Negro do Comunismo – Quetzal Editores Lisboa/1998

Imagens: 1ª - Da esquerda pora a direita, em primeiro plano Béria, Voroshilov (?) e Krutchev. 2ª Funeral de Stáline. 3ª Kamenev e Lenine, 4ª Bukarini. 5ª Stáline. 6ª Krutchev com Kenedy. 7ª Cartaz da grande "diva" Maya Plissetskaya. 8ª Estação do metropolitano de Moscovo, Komsomolskaya. 9ª Cartaz do Sputnik, o primeiro satélitre artificial da terra. 10ª Dias Lourenço, dirigente do PCP, que assistiu ao XX congresso do PCUS. 11ª Palácio dos Congressos no Kremlin XXVII Congresso do PCUS 12ª Vista da Torre Spasskaya do Kremlin de Moscovo com a igreja de São Basílio na Praça Vermelha, à esquerda.

2006/09/22

Com Álvaro Cunhal no funeral de Tito

Estive duas vezes na ex-Jugoslávia com Álvaro Cunhal. A primeira ainda antes de 25 de Abril de 1974, com a presença, também, na delegação do PCP, de Pedro Soares (falecido num acidente em 13 de Maio de 1975).
Mais tarde na era pós-Jusgoslávia estive mais duas vezes nesta zona dos Balkãs. Na Bósnia, de visita às tr0pas portuguesas e outra vez na Sérvia, partícipe de uma equipa internacional de fiscalização de umas eleições que foram dadas como livres e justas. Histórias para outra altura.
Na primeira visita, (encontrámo-nos em Belgrado. Eu ido clandestinamente de Portugal, Pedro Soares da clandestinidade na emigração, talvez de Roma e Cunhal julgo que de Paris) no decorrer do encontro com a delegação da Liga dos Comunistas da Jugoslávia Cunhal apresentou-me como um combatente da luta armada, na clandestinidade, em Portugal. Foi uma referência à ARA e creio que o fez ali atendendo à relevância dada pela Liga ao seu passado de luta armada contra Hitler durante a II Guerra Mundial.
A segunda visita teve lugar em Maio de 1980 e partimos, legais! de Lisboa. Cunhal conversou quase toda a viagem que fizemos de avião sobre histórias do seu passado na guerra civil de Espanha. Coisa rara falar de si.

O funeral de Tito foi uma das maiores concentrações de dirigentes políticos e chefes de Estado de todo o mundo. Para quem goste de números: 209 delegações de 137 países e segundo a Time: four Kings, 32 Presidents and other heads of state, 22 Prime Ministers, more than 100 secretaries or representatives of Communist or workers parties.
Estava a Senhora Tatcher, o vice-presidente dos EUA, Walter Mondale, com uma grande e vistosa delegação, Hua Guofeng, presidente da China, com não menos chineses, Breznev que já estava doente e envelhecido. Ia praticamente levado em braços por dois ajudantes e o único que teve de ser sentado num cadeirão para evitar os assentos baixos da grande tribuna, no jardim interior, junto ao mausoléu. Também se evidenciavam o rei de Espanha Juan Carlos e o chefe do Governo Adolfo Suarez, Arafat, Sadam Hussein, Kadafi e muitas figuras políticas de todo o mundo.
De Portugal lembro-me de ver o Presidente Eanes, o primeiro ministro Sá Carneiro, e creio que estavam também Mário Soares e Otelo, entre outros.

Recordo-me de seguir num carro oficial com Álvaro Cunhal, numa das avenidas de Belgrado, a alta velocidade, batedores com sirenes a fazerem um chinfrin incrível e afastarem todo o trânsito. Cunhal segredou-me: "vês! Eis um exemplo da arrogância do poder."
Uma das cerimónias fúnebres era o desfile no Palácio das Flores perante a urna de Tito com um minuto de silêncio e uma vénia. Não gosto muito de vénias e quando têm de ser feitas procuro evitar excessos. Em momentos como aqueles avançando lentamente com a fila inventamos maneira de passar o tempo e dei comigo a medir as flexões para ver se correspondiam à identificação política. Por exemplo, vaticinei Sá Carneiro a fazer apenas uma ligeira inclinação da cabeça mas enganei-me, não foi avaro na vénia.
Nestas cerimónias públicas, de políticos como de outras estrelas, percebe-se logo quem tem experiência ou é novato. São, por exemplo, aqueles momentos informais e sem arrumação protocolar na presença das sôfregas televisões e batalhões de fotógrafos. É ver os menos conhecidos a correrem para junto dos que atraem todas as atenções para também ficarem na fotografia.
Álvaro Cunhal conseguia não ser ignorado mas com tanto Chefe de Estado e de Governo nada que se parecesse com a atracção que suscitava nas reuniões restritas ao universo comunista.
Reparei na arte de, sem se dar por isso, Cunhal acabar por estar com muita frequência nos locais onde as luzes mais incidiam. Quase naif era o esforço de algumas figuras, muito importantes noutras circunstâncias e lugares mas que ali ficavam esquecidas, para se chegarem à frente ou cruzarem com estrelas de primeira grandeza para um efémero momento de glória.




Margaret Thatcher

Sadam Hussein

2006/08/04

Quatro casos de subversão da lei


Quatro histórias verdadeiras. Duas são dos tempos da (minha) clandestinidade. A primeira (1972) é transcrita do livro ARA, início do cap XII (Ed.D. Quixote,2000)


1972 - Sintra - O Almendra

"Almendra é pseudónimo. De momento não estou autorizado a revelar o nome. Hoje um conhecido artista, Almendra era o jovem estudante que estivera com Francisco Miguel* no curso militar de Moscovo, tinha 25 anos e estava casado com uma estrangeira a “Mary” que não quis deixar os seus pergaminhos revolucionários por mãos alheias e acompanhou o marido nesta corajosa e revolucionária aventura pela Liberdade do Povo Português. Nunca lho perguntei mas convenci-me que se inspirara no Che Guevara. Era uma mulher corajosa, simpática e bonita. Confirmei que não tinha razão um elemento do Partido Comunista Italiano que em Roma convictamente me tentava convencer que revolucionárias e bonitas não havia.
— Se são bonitas não vão para revolucionárias! Garantia-me.
A primeira casa ilegal alugou-a Almendra na Portela de Sintra onde fizemos algumas reuniões com a participação de Francisco Miguel e também de Joaquim Gomes** da Comissão Executiva do partido. Para o aluguer da casa e outras actos "legais" o Almendra necessitava de bilhete de identidade falso e em certo momento necessitou de abrir sinal num notário. Abrir sinal é registar a assinatura para posteriormente poder servir para autenticar outras assinaturas por comparação com aquela. Para bem se desembaraçar nesta operação que requeria duas testemunhas presenciais no cartório notarial de Sintra comuniquei-lhe a minha experiência na matéria.
— É muito simples — explicava eu ao Almendra— chegas lá olhas para as pessoas que estão por ali e é fácil identificares rapidamente as que estão no cartório como tu a tratar de qualquer assunto e as que estão por ali para servirem de testemunhas. São “testemunhas” de ofício e ganham um dinheirito que a falta de emprego lhes nega com o acto de garantiram ao notário, em tácita cumplicidade, que fulano de tal é mesmo fulano de tal porque o conhecem muito bem quer conheçam quer não conheçam.
— Mas estão nalgum local especial? Estão na sala de espera? Explica-me bem como é isso.
A sala de espera é apenas uma parte de uma sala grande dividida por um balcão. De um lado está o público do outro estão os empregados, uns a atender outros lá mais para trás a escrever à máquina. O notário, esse deve estar noutra sala e raramente aparece ao balcão.
— Então peço-lhes para serem minhas testemunhas?
— Isso mesmo. Testemunham de boa fé e com convicção que és quem não és como nos convém. Para eles tanto faz. Já estão ali para ser testemunhas. Passas-lhes uns vinte paus para as mãos, ficam todas contentes e confirmam logo que tu és o José Maria da Silva ou o Joaquim da Cunha Santos. Não lhes passa pela cabeça que és um clandestino nem ninguém ali sabe o que é isso.
Normalmente num clandestino a dar os primeiros passos na clandestinidade o estado de alma dominante perante situações novas é o medo, por isso reforçava o carácter banal e pacífico daquela transacção. Devo ter exagerado. O Almendra precisaria antes que eu o acautelasse. Chegou ao cartório notarial e não vendo lá ninguém com o ar de testemunha falsa como eu as retractei Almendra não esteve com meias cerimónias chegou-se ao balcão e interrogou a funcionária que estava mais próxima.
— Por favor sabe-me dizer quem são aqui as testemunhas? O que o Almendra foi dizer?! A senhora fez-se de novas e indignada vai de o admoestar, de ameaçar, que aquilo não era o da Joana, com ar assanhado. O Almendra terá feito cara de espanto, arrependimento, ignorância, pediu desculpa e serenou a impoluta funcionária que, bem impressionada pelo aspecto garboso do nosso guerrilheiro urbano, avaliou melhor a situação, recompôs-se e aproximando-se dele disse-lhe ao ouvido, já cúmplice, então não vê que são ali aqueles! E eram. E cumpriram honestamente a sua tarefa."

* - Francisco Miguel Duarte (Baleizão, 1907- Lisboa 1988) Operário. Membro do Comitá Central do PCP. 22 anos de prisão. 4 fugas (uma delas, em 1961, no carro blindado de Salazar, guardado na prisão de Caxias) Regressou à clandestinidade em 1969, por sua insistência, após alguns anos em Moscovo, para participar nas "acções especiais", na ARA)
** - Joaquim Gomes membro da Comissão Executiva do CC do PCP. (Marinha Grande 1917) operário vidreiro (aprendiz aos 6 anos). Preso 3 vezes fugiu 2.
1968 – Lisboa. Rua Veloso Salgado

Estava a viver na clandestinidade desde 1964 já tinha uma certa experiência desta forma de viver. Pouco apelativa, diga-se em abono da verdade. Tocaram a campainha. Tocaram, tocaram, tocaram. Arre. A Maria, que ali era Helena, espreitou pelo óculo e perguntou o que era.
- Abra se faz favor.
- Desculpe mas estou só em casa não abro a porta a desconhecidos.
- Bem então vamos chamar a porteira.
Pelo óculo da porta a Maria viu chegar a porteira. Trocámos impressões e a "Helena" abriu a porta.
- Somos fiscais da rádio.
Naquele tempo de Salazares pagava-se um taxa pela posse de um aparelho de telefonia e, apesar de raro, podia suceder aparecerem fiscais. A porteira foi-se embora. Pareceu-me melhor assim.
- Aaahh... estava a dizer que não abria… que estava sozinha em casa e afinal com o seu marido aqui!
A casa não estava boa para ser vasculhada pelos fiscais à procura de telefonias sem licença. O guarda-vestidos em vez de roupa escondia uma copiadora a stêncil, manual, grande e feia. As gavetas da mesa de cozinha estavam cheias de papéis uns já impressos outros por receber os gritos de revolta do povo trabalhador que estávamos incumbidos de reproduzir. O aparador da sala isso então é melhor nem contar. Até uma pistola de guerra tinha disfarçada de sapatos numa caixa própria para estes. Pensei.Vou-lhes dizer que sim senhor, estávamos a ver se escapávamos. Tínhamos de facto uma telefonia que, como bons portugueses, tinha lá agora licença! Pensei ainda melhor. Vou mesmo dizer que tenho dois rádios, revelando franqueza e parvoíce e reduzindo à partida suspeitas de mais que um.
- Pois é desculpe lá, tá a ver, olhe vou ser franco. Nós até temos dois rádios. Aquela telefonia ali e um transístor que até vou buscar. Mas veja lá, agora uma multa, fica sempre mal.
Fui resoluto à carteira puxei de uma nota de 50 mil réis e dei-a delicadamente ao chefe dos fiscais. Fiquei para morrer. Então não é que me calha um fiscal sério, incorruptível?!
- Mas quem é que o Senhor julga que sou. Está a querer comprar-me? Mais isto, mais aquilo e eu ali - suponho que mais branco que o meu natural o que já não era pouco, estávamos neste sufoco ou impasse, eu sem estratégia que tivesse previsto tão imprevisível como reprovável atitude do fiscal, quando o chefe (o que falava era o chefe, o outro coitado…)
- Olhe - e chamou-me para o lado como se a coisa ficasse mais limpa. Está a ver - e desembrulha-me um papel grande, maior que jornal, cheio de letras miudinhas que eu não tinha tenção de ler. Olhe aqui - e apontava com o dedo sapudo - está a ver aqui, dois aparelhos... ganho de comissão 60 escudos. Um banho de felicidade inundou-me de alto a baixo. Resplandecia disse-me depois a Maria que ali era Helena.
- Ah, pois, com certeza, que estupidez a minha, e rapei de uma segunda nota de cinquenta. Aí o chefe praticamente tirou-me as notas da mão enquanto fingia perguntar ao colega o que é que acha… aqui estes senhores coitados também não são gente de posses… que é que acha está de acordo?
O inferior só abanava com a cabeça num pró-forma enquanto o outro me instruía.
- Bem agora muito cuidado não diga nada a ninguém que eu já multei aqui um seu vizinho no prédio. - Claro, claro, esteja descansado. Fica entre nós. Fechámos a porta aos bons fiscais, quase uns amigos, como quem afugenta a PIDE.

1956 - Torres Vedras

Estava à beira de uma das minhas mais sonhadas aventuras, partir às 13 horas e 50 minutos de Santa a Polónia, no Sud-Express, chegar à Gare de Austerlitz às 17 horas e trinta minutos do dia seguinte e... passar oito dias em Paris. Um hotel baratinho do Quartier Latin.
Miúdas francesas, livros proibidos pela PIDE, filmes sem os cortes da censura nas cenas de sexo, o Boulevard de Saint-Michel, o Boulevard Saint-Germain, dançar no Caveaux da Rue du Chat qui Peche, percorrer os alfarrabistas na margem do Sena, o Louvre, os impressionistas então no Jeu de Paumme.
No Governo Civil não se contentaram com o bilhete de identidade para o passaporte, exigiram uma certidão de nascimento. Fui à pressa a Torres, à Conservatória do Registo Civil. A mulher que me atendeu tomou boa nota do que lhe pedia e, ao que tinha a pagar acrescentou, venha cá daqui a três semanas. Três semanas? Três semanas... repetia eu alarmado - mas assim não posso ir a Paris. Expliquei meio escandalizado que era urgente. Urgentíssimo podia agora esperar esse tempo! Impassível a funcionária acrescentou: então assim é mais quinze escudos, pede urgência e é uma semana. Enquanto desembolsava mais aqueles escudos da urgência garanti à mulher que não podia ser. Que tinha vindo de propósito de Lisboa e tinha que partir hoje com a certidão. Já se afastava sem me responder quando a interpelei, desculpe, diga-me lá, que é que obriga a tanto tempo um simples papel com meia dúzia de linhas. Que operações é que necessita de fazer que levem oito dias. Ela então regressou ao balcão corrido, a madeira lustrosa dos muitos braços e cotovelos que por ali estadearam e disse-me descarada em surdina, leva meia hora se tanto. É ir ali buscar um dossiê e passar à máquina a sua certidão de nascimento. Ah - renasci de alívio. Então faça-me esse favor... mas ela não me deixou continuar e esclareceu - mas não posso fazer uma coisa dessas! Então ia lá agora ultrapassar as dezenas de pedidos que estão à sua frente. Cabra - rosnei para dentro - bem te percebo. Paris a esfumar-se e conclui pela necessidade de fazer o que tinha jurado nunca fazer. Escondi com o rabo de fora uma nota de vinte escudos na mão e em voz baixa e mansa informei-a que tinha a camioneta para Lisboa daí a uma hora. Uns dias depois parti em alvoroço, no Sud para Paris, com o Rui e o Laurentino

1946 - Na minha aldeia.

O Senhor Castanheira conversava com o meu pai e eu com 8 anos brincava com os filhos dele. Chamaram-nos para jantar e fiquei ali à espera que a conversa terminasse e o meu pai se fosse embora comigo pela mão. Era lusco-fusco e o que era só uma silhueta a trinta metros revelou-se ali ao pé já bem dentro da quinta, um homenzinho de chapéu na mão, uma reverência a cada passo de estudada aproximação. Dá-me vossa senhoria licença, senhor Castanheira? Ele fingia que não dava por ele e continuava a conversa com o meu pai. O homem pequeno fez mais uma vénia, curvou-se um pouco mais, baixou o chapéu na ponta da mão e pediu de novo licença. Que é? Diz lá depressa. Senhor Castanheira peço desculpa mas mandaram-me... o senhor sabe como é... e eu tenho de lhe entregar... peço desculpa... Cala a boca. E tirou-lhe de rompante o papel oficial com a multa que o outro segurava a medo entre os dedos. O Senhor Castanheira sem ler os dizeres da multa, levou a mão à carteira, puxou de duas notas que amachucou juntamente com o papel timbrado e atirou-as para o chão como quem atira uma pedra a um cão e voltou insensível a pegar na conversa que tinha com o meu pai.
O Senhor Castanheira ainda me pareceu, naquele momento, mais forte e maior do que já era para os meus oito anos de olhos assustados que, se não entendiam toda a extenção do que se passava, percebiam muito bem que o Senhor Castanheira era muito grande e o fiscal muito pequeno. Se o caso não me tivesse metido medo até me teria rido. É que o homem pequeno, o fiscal, ficou ainda mais pequeno agachado a apanhar o papel da multa e as notas e teve de dar uns passinhos corridos, quase de joelhos, porque o vento queria levar uma das notas de cinquenta mil réis. Uma nota que para ele era quase uma fortuna apesar de não chegar à quinta parte da multa. Mas tinha de a dividir com outros.
(O post foi corrigido em 3 de Setembro de 2006)




2006/07/08

Francisco Ariztia

Pintor chileno, radicado em Portugal, desde 1974, em cujo site [link] podemos ficar com uma ideia das suas belas pinturas, transbordantes de cor e poesia. Uma janela a revelar o homem de cultura e ideais humanistas.

2004


Acrílico s/ tela 50x50 cm

2003


"Hands up", acrilico s/ tela, 130x130cm galeria ARA, 2003.

2000




"Una vieja historia" díptico (as duas pinturas acima)acrilico s/ tela 300x150cm

1983


"La captura", acrílo s/ tela e lápis cera 130x130cm

1975


"Desde Quillota quitandome el sueno", acrílico s/ tela, 170x130cm

2006/07/01

NÃO APAGUEM A MEMÓRIA

Na concentração junto à ex-prisão do Aljube estiveram presentes ex-presos políticos que passaram por aquela prisão e muitos outros resistentes à ditadura alguns dos quais são figuras conhecidas da cultura, dos meios académicos, do Movimento das Forças Armadas, da política. Edmundo Pedro e António Borges Coelho evocaram a sua passagem pelo Aljube, o almirante Martins Guerreiro e Artur Pinto apresentaram uma perspectiva do Movimento. Entre os presentes estavam José Manuel Tengarrinha, Manuel Serra, Nuno Teotónio Pereira, o coronel José Fontão, Fernando Rosas, Mário de Carvalho, Garcia Pereira, Diana Andringa, Alfredo Caldeira, Fernando Vicente e Henrique de Sousa da Renovação Comunista.

Comunicado do Movimento Não Apaguem a Memória:
A cadeia do Aljube, instalada num edifício que resistiu ao terramoto de 1755, era a prisão utilizada pela PVDE/PIDE para encarcerar os presos políticos, no período da instrução do processo, conduzido por essa mesma polícia. Era nesse período de “instrução”, que podia durar até seis meses, que os presos eram interrogados, através de torturas, e submetido a rigoroso isolamento, potenciado pela escuridão, as estreitas celas tumulares e a péssima alimentação. A Reforma Prisional de 1936, pela qual, teoricamente, se devia reger a vida dos presos, sofria constantes atropelos nas cadeias políticas. Por exemplo, no Aljube, não havia qualquer local para recreio e as salas e celas eram impróprias para viver.

A «sala 2A» dessa prisão tinha uma só janela, gradeada e coberta por uma rede fina, com catres presos à parede durante dia, os quais, à noite tinham uma enxerga e duas mantas. Essa sala era, porém, bem melhor do que os catorze «célebres “curros” ou “gavetas” do Aljube», pequenas celas, «com cerca de um metro de largura, com catres basculantes, que, ao baixarem ocupavam todo o espaço, obrigando o preso a ficar sentado. Esses “curros” eram fechados por duas portas, uma gradeada e outra de madeira, normalmente fechada, apenas com um pequeno postigo, estando quase todo o dia mergulhadas numa semi-obscuridade.
Eram essas as instalações que a PIDE usava para manter os presos incomunicáveis, durante todo o período mais intenso dos interrogatórios, onde «a falta de luz estava associada a todo um quadro de tortura e de violência física e psicológica a que o preso estava submetido», conforme contou um ex-detido. Durante o primeiro período, o preso não tinha acesso a caneta, nem a lápis, nem a papel, nem a jornais, nem a livros, nem a relógio, nem sequer espaço para se mover. Havia ainda a cela disciplinar, n.° 14, onde o preso estava permanentemente às escuras, sem enxerga e, às vezes, a pão e a água.
No seu relato, o padre angolano Joaquim da Rocha Pinto de Andrade contou que, no Aljube, esteve encarcerado «numa enxovia estreitíssima, de um metro de largura por dois de comprimento, onde a luz e o ar entravam por um postigo de 15 x 20 cm., filtrados através de duas férreas portas, postigo, aliás permanentemente fechado». A «tarimba que lhe servia de cama era apenas provida de um enxergão sebento, duro como pedra, sendo proibido usar lençóis. «Sentado na tarimba, os joelhos roçavam a parede», isto tudo na penumbra. Devido a queixas várias, entre as quais da Amnistia Internacional, o Aljube acabou por ser fechado, em Agosto de 1965.
A cadeia do Aljube é pois um dos principais paradigmas e «ícone» da repressão exercida durante a ditadura salazarista/caetanista, pela PVDE/PIDE/DGS.
Por isso, o Movimento “Não apaguem a Memória!” considera que é um dos melhores locais para ser instalado um espaço museológico, sobre o que foi a violência do Estado Novo e da sua polícia política, mas também da luta contra a ditadura e pela liberdade.


Aljube: memórias de quem passou pela "mais
sinistra prisão do fascismo"



[RTP on line]

"Tinha um botão no chão e jogava, mas quase não podia mexer as pernas", descreveu à Lusa o historiador e membro do movimento cívico "Não Apaguem a Memória!" que quer transformar a antiga prisão do Aljube num museu da resistência ao fascismo.
Na cadeia do Aljube, perto da Sé, onde agora funciona o Instituto de Reinserção Social, permaneciam os presos políticos que estavam a ser interrogados na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso.
Encarcerado em 1956 durante seis meses nos "curros", que descreve como celas do comprimento do seu corpo e da largura do tronco "mais um braço estendido", Borges Coelho, então com 26 anos, entretinha-se os seus imaginários jogos de futebol.
O antigo preso político lembra as "mantas horrorosas, que não eram lavadas" e que "guardavam vestígios de esperma de vários presos, que se foram acumulando".
"No isolamento, o tempo escoa-se e nós vivemos unicamente da memória, que atinge níveis completamente incríveis", diz.
Acusado de pertencer ao PCP, "o que por acaso até era verdade", Borges Coelho não chegaria aos seis meses de isolamento, já que o seu débil estado de saúde, depois de recusar a "comida quase podre, intragável", obrigaria a um internamento na enfermaria da cadeia.
No meio das "piores recordações" que tem do Aljube, Carlos Brito, antigo dirigente do Partido Comunista Português e actual membro do movimento Renovação Comunista, guarda uma memória "muito positiva":
a do dia 25 de Maio de 1957, em que conseguiu fugir da cadeia, acompanhado por outros dois companheiros.
Depois de serradas as grades, os presos percorreram um algeroz "muito estreito" no último andar do edifício, "com grande dificuldade de equilíbrio", desceram a pulso um vão de seis metros por uma corda de lençóis, caminharam sobre dois telhados, saltaram as águas-furtadas e atingiram o chão com uma escada ali colocada.
"É a cadeia que simboliza a repressão da ditadura de uma maneira mais evidente e mais gritante. Por isso senti tanta alegria quando consegui fugir", descreveu à Lusa.
Naquele lugar, que recorda como a cadeia "mais sinistra", Carlos Brito esteve em três ocasiões distintas, entre 1957 e 1959, a maior parte do tempo "incomunicável e em isolamento".
Numa das vezes, após ter sido espancado, ficou durante dias "sem colchão nem cobertores nem qualquer espécie de agasalho, em cima de um bailique (tarimba) de madeira". "Ali se passaram dos momentos mais lancinantes. Lembro-me de ver companheiros que não conseguiram resistir e estavam ali à beira do suicídio", conta.
O historiador José Manuel Tengarrinha observou uma dessas situações: quando, em 1961, regressou de um interrogatório na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, encontrou as manchas de sangue do seu companheiro de cela, que se suicidara cortando as veias. Tengarrinha sublinha que o Aljube era "a pior prisão do fascismo", onde permaneciam "em condições indescritíveis" os presos políticos que se encontravam em fase de interrogatório.
"Era duríssimo", garante.
"As condições eram concebidas de propósito para desmoralizar os presos", afirma, lembrando a "angústia" que sentia quando ouvia a carrinha da PIDE a chegar, sem saber se seria o próximo a ser levado para "a António Maria Cardoso".
Nos "curros" durante um mês e meio, Tengarrinha, então com 30 anos, passava a tempo a fazer peças de damas com miolo de pão, que usava para jogar sozinho.
"Houve uma barata que entrou na cela. Conservei-a como uma amiga, uma companheira, o único ser vivo que estava ali comigo", conta.
A única vez que fumou foi durante o isolamento no Aljube, durante cerca de um mês, recorda o socialista José Medeiros Ferreira.
"Não podia ler, não podia sair da cela. Tinha uma grande variação: fumava às 09:00, às 10:00, às 11:00, às 12:00 e, no dia seguinte, às 09:30, às 10:30, às 11:30", descreve com alguma ironia.
O antigo ministro do PS esteve três meses no Aljube, entre 1962 e 1963, acusado de realizar "actividades subversivas contra a segurança do Estado".
O antigo preso afirma que "a maior violência do isolamento é em termos psicológicos", por não haver nada para fazer.
Naquele período, a sua única companhia eram as vozes de "uma menina que cantava canções populares e a de um preso que cantava o `Menina Estás à Janela`".
Mais tarde, na sala comum, Medeiros Ferreira e os companheiros "iam ao cinema" todas as noites, com cada preso a relatar aos outros um filme que tivesse visto.
Na primeira vez que foi preso no Aljube, em 1934, Edmundo Pedro tinha apenas 15 anos e chegou a partilhar uma cela com o seu pai. Voltaria àquela prisão mais duas vezes, a última já com 43 anos, após o assalto ao quartel de Beja, uma tentativa de golpe falhada ocorrida em 1961.
Edmundo Pedro, hoje com 87 anos, atribui à "determinação, à auto-confiança e à imaginação" a força para suportar o isolamento:
recordava os livros que tinha lido, fazia cálculos matemáticos.
Através de uma abertura de um dos "curros" onde permaneceu, conseguia ver a Sé, onde observava os pombos a fazer os ninhos, as pombas a ter os ovos, os borrachos a nascer.
Mais tarde, foi levado para outro "cubículo", ao lado do qual estava um companheiro com quem jogava damas, apesar da parede que os dividia.
"Riscávamos a tabela do xadrez no chão e depois, com um código de batidas na parede, fazíamos um jogo", afirma.
Apesar da dureza da cadeia, Edmundo Pedro acredita que "não há heróis".
"Perante as situações, as pessoas não têm outro remédio senão adaptar-se. Por duas ou três vezes ouvi pessoas a berrar, devem ter enlouquecido. Mas a maior parte das pessoas acaba por resistir".
(Outras fotografias do movimento não apaguem a memória. link)