2012/10/31

A ditadura portuguesa e a sua polícia política


Este é o título do excelente artigo da historiadora Irene Pimentel (Público de 2012-10-29) que a seguir se reproduz.
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Nota: acabei de "reciclar" o post. Tive uma trabalheira para alinhar aqui o artigo do Público. Digitalizei-o, mas a imagem não ficava legível, então dividi-o ao meio e coloquei as duas imagens. Mas também não resultou. Parei então para pensar, coisa que nem sempre ocorre a um cidadão atormentado por um governo submetido, por vocação e gosto, à tutela dos mercados financeiros. Espera aí (sou eu a pensar) mas a Irene escreve no JUGULAR será que ela colocou o artigo no blog?
Pois é, está lá e melhorado, na versão original que não teve de sofrer as limitações de espaço dos jornais. Pensei então substituir o artigo pelo link para o blog mas reconsiderei: convém pensar, sem dúvida, mas não demais! E aqui fica o artigo copiado, tim tim por tim tim, do JUGULAR com uma vénia para a Senhora Historiadora.
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"Versão mais alargada do meu texto relativo à Ditadura portuguesa e à sua polícia política, publicado no jornal «Público», de 29 de Outubro de 2012. Por razões de espaço, a versão do jornal teve de ser abreviada.

Escrever História ou «fazer História» é uma prática baseada num conjunto de regras que, a partir da colheita e análise de fontes, propõe encadeamentos e interpretações para transmitir um conhecimento que se pretende o mais próximo possível da verdade – sempre provisória e relativa -, ou, melhor, da veracidade de uma determinada realidade passada. O historiador, porém, produz um local e um tempo diferentes do local e do tempo onde ele próprio está, e depende dos testemunhos, sabendo que, ao tentar conhecer, analisar e organizar o passado através de um discurso narrativo, o faz em função do presente e perspectivado por este. O historiador pode ser de direita ou de esquerda, mas deve porém, tender para o máximo de imparcialidade. A escrita da História não é neutra e é sempre modelada por escolhas e figuras de retórica e interpretativas, certamente moldadas pela ideologia e a mundivisão do investigador, mas não deve estar ao seu serviço.

O «fascismo» não existiu em Portugal?
Nos anos 80 do século XX, Eduardo Lourenço colocou a pergunta retórica: «o fascismo nunca existiu?» Hoje, segundo penso, não interessa tanto, no estado actual da investigação histórica em Portugal, afirmar que o regime político existente em Portugal entre 1932/33 e 1974 era «fascista», «totalizante» ou «autoritário». Afirmar que se tratava de uma ditadura com características conservadoras, reaccionárias e uma matriz católica não provocará grandes divergências. Ou seja, não interessa tanto saber se o «fascismo» existiu em Portugal, como interessa afirmar que vigorou uma Ditadura em Portugal durante muitos anos, tendo até sido a que maior longevidade teve na Europa do século XX.
O que interessa é caracterizar com o máximo de profissionalismo, capacidade interpretativa e veracidade como funcionava esse regime ditatorial, através das suas diversas instituições, dos diferentes factores e aspectos sociais, económicos e políticos devidamente contextualizados. Interessa também verificar de que forma isso tudo foi vivido no dia-a-dia dos portugueses, sabendo-se que estes não eram uma entidade colectiva mas uma colectividade de indivíduos com interesses e vivências diferentes. A cronologia e a contextualização obrigam a matizar essas mesmas experiências, que foram vividas de forma diferente nos anos 30 do que o foram nos anos setenta do século XX.

Outro aspecto muito importante é a análise comparativa, mas esta, quanto a mim, só deveria ser feita em períodos coevos e entre regimes afins, em contextos com um mínimo de denominadores comuns. Comparar permite não só detectar as semelhanças, como distinguir as diferenças e singularidades. Por exemplo, tão errado, quanto a mim, é concluir que a ditadura salazarista nos anos trinta e quarenta se assemelhava, na sua essência, ao nacional-socialismo alemão, sem ter em conta a diferença de monta que é a ausência de anti-semitismo na ideologia e no eStado salazarista, como o faz Manuel Loff (O Nosso Século é Fascista!, 2008), como afirmar que a ditadura portuguesa seria «moderada», o que já em si e uma contradição em termos, ou permitiria um pluralismo limitado ou «contido», exemplificando com a existência, entre 1932 e 1934, de um partido fascista – o movimento nacional-sindicalista, como faz Rui Ramos (História de Portugal, 2009, pp. 634 e 653, 698).

Mortes e prisões por razões políticas
Num estudo sobre a polícia política da ditadura de Salazar e Caetano, entre 1945 e 1974, procurei saber quantas detenções e mortes houve por razões políticas em Portugal, comparando esses números com outros em regimes ditatoriais, no mesmo contexto histórico. Eu própria fui surpreendida, ao detectar que a PIDE/DGS – na chamada metrópole – prendeu e matou menos do que eu pensava. Já a sua antecessora, a PVDE, entre 1933 e 1945, prendeu e matou mais que a PIDE. A tentação, sobretudo se é voluntária e ideologicamente motivada, pode ser retirar daí a conclusão de uma «moderação» da ditadura portuguesa. Mas há muitas outras explicações e factores explicativos. Por exemplo, um deles é que a sociedade «civil» em Portugal era muito menos forte e plural, na primeira metade do século XX, que noutros países europeus.
Em complemento a esta explicação, pode-se referir o facto de, entre 1926 e 1932, a ditadura militar, depois chamada Ditadura Nacional, ter vivido em clima de «guerra civil», aproveitando para eliminar progressivamente os diversos opositores políticos. À medida que fracassavam os movimentos civis e militares «reviralhistas” de 1927, 1928, 1930 e 1931, que se saldaram aliás por centenas de mortos, sucediam-se as vagas de prisões, deportações administrativas e saneamentos políticos. E não eram necessários os julgamentos para se enviar alguém durante dez anos para o Tarrafal. Após os republicanos e os «reviralhistas», foram derrotados os anarco-sindicalistas, até Salazar erigir como principal adversário político o comunismo, «a grande heresia da nossa idade» e, dessa forma, o PCP manteve-se como o principal adversário político até à irrupção das organizações de esquerda radical e de luta armada, no «marcelismo».
Quanto às mortes físicas, já se viu que houve muitas entre 1926 e 1932 e, entre esse ano e 1945, mas menos de então até 1974. Lembre-se sempre que me refiro aqui à na chamada metrópole. Depois, surgiu o contexto do pós-II Guerra, em que o regime português se enquadrou na NATO e na ONU, em clima de ditadura interna e de guerra-fria externa, a polícia política continuou a torturar, mas sem que isso se soubesse, ou que houvesse mortes. Francisco Martins Rodrigues foi submetido, em 1966, a uma simulação de fuzilamento, mas não acreditou que o fossem matar, pois sabia que não acontecia. Isso aconteceu, depois de dias e noites de tortura do sono e de constantes espancamentos. Sim, porque, tal como existiram saneamentos políticos «gerais» na ditadura portuguesa (Ramos, p. 634) – com picos em 1935 e 1947, mas sem deixarem de se verificar ao longo de toda a Ditadura –, e ninguém ingressava na Administração Pública, sem uma informação “boa” da PIDE, esta recorreu à tortura.

A tortura
E por que não utilizar a expressão, uma vez que as torturas foram os principais métodos de “investigação” da polícia política? A escolha de certas expressões, em detrimento de outras, dá um tom a uma realidade, iluminando-a ou deturpando-a. Dizer que a polícia utilizava «agressões verbais e físicas (especialmente a privação de dormir)» (Ramos, op. cit., p. 695) p. Ti., é uma verdade, mas não referir a duração da tortura do sono, nem as consequências para a vida, pode distorcer a realidade. Em 1965, Alvaro Veiga de Oliveira, foi torturado pela PIDE durante 37 dias, dos quais 17 dias na “estátua” e “sono”, além de espancado «com um cassetête eléctrico». Existem inúmeros outros testemunhos sobre o sofrimento causado pelas torturas, a pontos de presos desejarem a morte e lamentarem que esta não surgisse.
A detenção política, em Portugal, combinou três lógicas: a lógica de afirmação da autoridade, de carácter preventivo; a lógica da correcção, de carácter correctivo e a lógica, de neutralização. A primeira lógica, com carácter dissuasivo e intimidatório, era utilizada para a população em geral, sobre a qual pairava a ameaça do que lhe poderia acontecer, caso se metesse em «política». A segunda lógica era reservada aos que tinham sido “momentaneamente transviados” e, através do “susto” da prisão preventiva e correccional, nunca mais terem a ousadia de actuar contra o regime. Finalmente, a terceira lógica, de neutralização, tinha como objectivo retirar do espaço público os dirigentes e funcionários dos partidos considerados subversivos, nomeadamente os comunistas, através da prisão e das medidas de segurança.
A durabilidade do regime deveu-se a diversos factores, dois dos quais decisivos: por um lado, o sucesso da desmobilização/intimidação cívica/repressão, através de vários instrumentos, entre os quais se contou PIDE/DGS e, por outro lado, o facto de o regime ditatorial, nos momentos de crise ter conseguido manter a coesão das Forças Armadas em seu redor. Razão tinha Silva Pais (cit. por Ramos, p. 695), ao afirmar, em 1966, que, depois de Salazar, «apenas as Forças Armadas» aguentariam «isto». O estertor do regime foi acompanhado por uma maior repressão e um aumento da violência policial, que coincidiram com a multiplicação dos problemas enfrentados pelo regime, entre os quais se contou a diversificação da oposição. No “marcelismo”, Portugal parecia então uma “panela de pressão”, pronta a explodir, por si própria, ou com ajuda. Esta surgiu, mas de outro meio - do seio de uma parte das Forças Armadas, com as quais a PIDE/DGS colaborava nos teatros de guerra.