Sinto-me como que desarmado - tão grande é a leviandade ou a estupidez ou a ausência de valores - sempre que vejo alguém fazer a apologia da guerra. Qualquer guerra. Colonial, imperialista, disputa de fronteiras, guerra civil. Excepto claro está, depois de esgotados todos os outros recursos, a guerra de libertação.
A guerra é sempre a máxima violência física e moral. É sempre o sofrimento máximo e a máxima tragédia. Veja-se o Iraque, o Vietnam, a Tchechénia, o Ruanda. Ou as guerras coloniais portuguesas.
Vem isto a propósito de um post de um amigo meu, Marques Lopes, num blog de ex-combatentes da guerra colonial, que descobri transcrito pelo João Tunes no Água Lisa. É um depoimento pungente e que nos conta um triste episódio de guerra que ceifou a vida de uma jovem guineense e perseguirá, traumático, por toda a vida o jovem alferes miliciano obrigado pelo colonial-fascismo português a "defender a pátria" na... Guiné Bissau.
A guerra na Guiné tornara-se muito perigosa com o crescente poder militar do PAIGC. O jovem miliciano já tinha sido ferido e estava de novo de volta à guerra. É uma manhã de Julho de 1967. Conduz pela mata o seu pelotão, perigos estão por todo o lado. Deparam com uma força inimiga! A tensão é grande mas é apenas uma escola do PAIGC no mato. Uma jovem professora talvez com 18 anos ensina Português a crianças guineenses. No quadro preto está escrito "um vaso de flores" e por baixo o desenho correspondente.
Surpreendida e assustada a professora lança mão da Kalachnikov pendurada no quadro. Marques Lopes grita-lhe "firma lá" ("está quieta aí"). O que se segue é o perigo, o susto, o medo, a raiva, o pânico. A guerra!
A jovem professora de Português caiu esventrada com uma rajada de metralhadora e Marques Lopes carrega há trinta e oito anos essa cruz.
Ele conta ainda algo mais. Algo terrível. Algo que exemplifica bem no que as guerras podem transformar os homens. Ele tem de impedir à pancada um soldado do seu pelotão (um rapaz vulgar de uma nossa qualquer aldeia) de violar a jovem agonizante.
Uma escola do PAIGC, na mata. ( 1970 ?)
Marques Lopes:
"...Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira [Bissau, 1998], tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus.
Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava.
Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho [de 1967].
Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada.
Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia [cinema de Lisboa], fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)"
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