Âgela Marques no DN, hoje. Mostra-nos a Lisboa que não vemos. Avenida Almirante Reis, Américo, 75 anos. Dorme sentado num caixote de papelão, com um cobertor a esconder a cara do frio. "Não quero nada... só quero abrir os olhos todos os dias de manhã."
Vivo "um dia, depois mais um dia, depois outro dia". Assim há 15 anos. "Antes disso, fui empregado no Banco Nacional Ultramarino."
2005/12/04
"O frio é a minha morada"
A Guerra
Uma escola do PAIGC, na mata. ( 1970 ?)
Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava.
2005/11/27
O 25 de Novembro de 1975 (2)
José Manuel Barroso é um especialista, investigador (quase historiador) que ano após ano, no DN, escalpelizou os meandros da revolução e conseguiu, a pulso, contra as meias verdades e os bem guardados segredos, da esquerda e da direita, expor à luz do dia os episódios e as motivações mais resguardadas da revolução e do 25 de Novembro em especial.
TEMA DE ABERTURA - DIÁRIO DE NOTÍCIAS, DOMINGO 26 DE NOVEMBRO 1995
memória do
25 DE NOVEMBRO
José Manuel Barroso
O Partido Comunista
a esquerda militar
e o 25 de Novembro
RAIMUNDO NARCISO deputado independente eleito nas listas do Partido Socialista no passado dia 1 de Outubro foi militante do Partido Comunista cerca de 30 anos, dirigente da ARA e do Comité Militar do PCP. Era ainda membro do seu Comité Central quando em 1991, abandona o partido, depois de um processo de divergências e de rotura que se acentua no XII Congresso em 1988. Com ele saem António Graça, Victor Neto, Pina Moura, José Barros Moura e José Luís Judas entre outros. Foi membro fundador da Plataforma de Esquerda. Esta é a primeira entrevista que concede sobre os tempos da revolução e o relacionamento entre o PC e os militares, aproximação a uma densa realidade, ela constitui, desde já, um documento indispensável para entender o período revolucionário e o 25 de Novembro de 1975.
A ENTREVISTA que se publica nas páginas seguintes passará a constituir seguramente um do mais importantes documentos até hoje publicados sobre o 25 de Novembro de 1975 e o processo revolucionário em curso nesse ano. Na entrevista que Raimundo Narciso concedeu ao DN não são feitas revelações de pormenor que nos permitam ir ao fundo do conhecimento sobre o papel do Partido Comunista Português nesse evento e sobre o seu relacionamento com a esquerda militar e o MFA. Mas, sem nunca ferir a lealdade e o respeito devidos a pessoas que fizeram um percurso comum, o entrevistado desfaz suficientemente a teia do pensamento e da acção do PCP, nos idos da Revolução, para permitir ao leitor atento tirar conclusões claras das suas respostas.
A entrevista de Raimundo Narciso tem a autoridade que lhe dá o facto de ele ter sido um importante dirigente do PCP, durante muitos anos, membro do seu Comité Central e do Comité Militar do partido — o que lhe deu a possibilidade de, como ele próprio diz, ter acompanhado e participado «em todos o acontecimentos decisivos da Revolução», incluindo o 25 de Novembro. A entrevista tem, também, a ousadia e a inteligência de facultar um conjunto de informações muito importantes sobre esses acontecimentos, por considerar que «vinte anos depois é tempo para disponibilizar todos os elementos aos historiadores», com excepção de alguns «segredos» que não são só seus.
Excepção feita a esses «segredos», Raimundo Narciso faculta-nos, assim, elementos suficientes para compreender quanto a actuação do PCP, junto dos militares, foi a consequência de um plano estratégico, pacientemente aplicado ao longo dos anos, incluindo os quase dois da Revolução. Fica claro, também, quanto o PCP utilizou os seus homens, no interior das casernas, para estar presente no 25 de Abril, para influenciar, por dentro, o MFA e o rumo dos acontecimentos — até aproximar a «revolução democrática e nacional» de Abril de 1974 da «revolução socialista», que na sequência do 11 de Março se toma possível. E a aplicação, sem temores, do programa do partido, fase por fase, exclusivamente dependente da «relação de forças» — até ao 25 de Novembro.
A «porta para o socialismo» (tal como o PCP o entendia, a partir da matriz soviética) que o 11 de Março abre — com as nacionalizações a reforma agrária e a recomposição favorável à esquerda revolucionária dos órgãos do poder político–militar - havia sido quase fechada pela resistência civil, com o PS de Mário Soares à cabeça, e pela resistência militar, liderada pelo Grupo dos Nove.
Tendo perdido, nesse «Verão quente», largo apoio social e poder nas instituições político-militares, o PCP e seus aliados querem recuperar posições institucionais e forçar um entendimento, no seio do MFA, para «derrotar a direita», sob pena de ser por ela mais tarde derrotado. Sem desistir do seu projecto nacional. O 25 de Novembro terá sido isso. Matéria que, naturalmente, fica para o final desta série de trabalhos.
O 25 de Novembro de 1975
Entrevista conduzida por José Manuel Barroso, publicada no DN de 26 de Novembro de 1995,
«Uma derrota relativa»
DN— Em termos políticos, o saldo do 25 de Novembro foi uma vitória ou uma derrota do PC e da esquerda militar?
RN – O 25 de Novembro foi uma derrota para o PCP e para a esquerda militar. Em todo o caso, foi apenas uma derrota relativa — devido ao papel moderador de Costa Gomes, Melo Antunes, Vasco Lourenço e, nalguma medida, de Ramalho Eanes, também.
Foi uma derrota porque o 25 de Novembro impediu o prosseguimento da revolução no sentido do projecto de sociedade do PCP e que, à parte as particularidades nacionais, era na essência, igual ao da sociedade comunista de Leste. Derrota por que afastou o PCP do Governo e de um modo geral dos órgãos do poder de Estado, porque impediu a estabilização de conquistas da revolução já adquiridas, tais como a Reforma Agrária, as nacionalizações, etc.
Para o PCP, o 25 de Novembro também pode ser considerado uma vitória no sentido em que uma pessoa que parte uma perna tem imensa sorte por não ter partido as duas.
Assim, o 25 de Novembro representa uma vitória parcial porque o PCP não foi ilegalizado e pôde viver em democracia, numa democracia que, como se sabe, o comunismo nunca facultou aos seus adversários.
DN — No Verão de 75, tendo a esquerda revolucionária sofrido grandes derrotas, porque avança o PCP para a agudização das lutas sociais e militares?
RN — O PCP tentou com a agudização de todo o tipo de lutas, fomentando umas, dando cobertura ou não se demarcando de outras, compensar o seu crescente isolamento político, social e militar e conduzir a revolução por aí fora. Caso República, cerco da Assembleia da República, manifestação dos SUV (Soldados Unidos Venceremos!).
É necessário, para compreender a situação, não esquecer a rede bombista e a vaga de assaltos às sedes do PCP, do MDP de sindicatos e outras organizações de esquerda, no Verão quente, desencadeada pela extrema-direita. A 13 de Julho é assaltada e destruída a sede do PCP e da FSP em Rio Maior, a 16 assaltada a sede da Batalha, a 17 a do Cadaval, a 18 a da Lourinhã e assim até ao 25 de Novembro e depois.
DN — Tendo a revolução entrado em derrapagem e o PCP em perda de posições não deveria antes moderar a sua acção e aproximar-se do PS e do sector moderado do MFA?
RN — Uma particularidade do comunismo português na revolução do 25 de Abril, foi o PCP, muito cedo, pensar que podia dispensar o PS, na sua política de alianças. Para tanto utilizou a fórmula Aliança Povo-MFA em que o povo estaria suficientemente representado pelo PCP e o MDP ou, no Verão quente, em estado de desespero, também pelas outras organizações da FUR. Pareceu ao PCP que a aliança com a base social representada pelo PS poderia ser assegurada através do sector moderado do MFA complementada pela Intersindical.
O PCP reconhece, no plano teórico, no Verão de 75, a urgente necessidade de lutar pela unidade do MFA e de evitar a radicalização da luta que isole o PCP. É esse o resultado do debate havido na reunião do Comité Central em Alhandra, a 10 de Agosto, um dia depois da publicação do Documento dos Nove. Também o discurso de Vasco Gonçalves, em Almada, a l8 de Agosto, é apreciado de modo negativo. O PCP esperava desta intervenção uma tentativa de aproximação aos "Nove" e o que saiu foi radicalização.
Curiosamente a par desta análise teórica a intervenção prática do PCP não vai no sentido de travar a radicalização das lutas, umas por si organizadas, outras pelos sectores da esquerda mais radical, outras espontâneas.
RN — Que eu conheça não. Havia — e provavelmente continua a haver — dirigentes mais radicais e outros mais moderados. Isso acontece em todas as formações partidárias, mesmo que não seja reconhecido. Mas a liderança incontestável de Álvaro Cunhal não dava abertura para um debate que pudesse pôr em causa a sua orientação – e em risco a tão desejada «unidade de pensamento».
DN — Que representa a FUR no contexto do Verão quente de 1975?
RN — A necessidade de ocultar o crescente isolamento político do PCP resultante da crescente radicalização da sua acção política.
DN — O comportamento do PCP teve por objectivo um regime de matriz soviética ou democrática do tipo ocidental?
RN — Logo a seguir ao 25 de Abril e até ao auto-afastamento de Spínola, a preocupação fundamental do PCP era a consolidação do regime democrático do tipo ocidental. Depois do 11 de Março o PCP orientou a sua luta para as conhecidas «grandes conquistas da revolução».
No entanto, em momento nenhum, o PCP esquecia que o objectivo último da luta era o socialismo. Isso mesmo fazia questão de constantemente lembrar, internamente, aos militantes. Havia a fase da revolução democrática e nacional e a fase da revolução socialista. Mas a passagem de uma a outra fase não era tanto um questão de meses ou anos mas de relação de forças.
DN — Até que ponto PCP acompanha as movimentações da área militar?
RN — Não só acompanha como intervém, no sentido de influenciar os acontecimentos militares. Os próprios acontecimentos militares do 25 de Novembro não aparecem como um acto isolado, mas de sucessivas acções da esquerda militar, dos “Nove” e da direita — no sentido de cada um ganhar posições, para o seu lado. E havia o claro entendimento de um provável choque militar.
DN – Pode dizer-se haver uma clara aliança entre a esquerda militar e o PCP?
RN – Pode dizer-se, com clareza, que a esquerda militar foi-se constituindo como a expressão da influência militar do PCP no MFA.
DN — Havia, portanto um relacionamento constante, entre a direcção do PCP e a da esquerda militar?
RN – A esquerda militar era o sector do MFA que estava mais próximo do projecto político do PCP e o que melhor podia defender as suas posições no plano político-militar.
DN – Otelo foi uma cartada mal jogada, no 25 de Novembro?
RN—Foi uma cartada que não foi possível controlar, apesar de haver esperanças e esforços no sentido de o aliar à esquerda militar. Como se sabe, houve um período em que dirigentes do PCP se deslocaram com alguma regularidade ao Copcon para troca de opiniões políticas — e que não tinham outro objectivo que não fosse poder aproximar Otelo da posição do PCP, com vista a uma unidade entre o sector do Copcon e a esquerda militar.
DN — Quando foi compreendido por parte do PCP, que essa unidade não era possível?
RN — O 25 de Novembro comprovou, definitivamente, que o PCP não podia contar com Otelo Saraiva de Carvalho.
DN – O PCP tinha uma significativa influência, entre os graduados do corpo de pára-quedistas de Tancos?
RN – Tinha, sobretudo, uma grande influência entre os sargentos «páras». Foram públicas várias sessões de esclarecimento para sargentos da Força Aérea — que incluía, em especial, sargentos pára-quedistas – num cinema da região.
DN — Seria normal que militantes do PCP, sobretudo sendo militares, tomassem decisões de grande importância, no campo da acção, sem aviso ou consulta ao partido?
RN — Não era normal — mas, por vezes, sucedia.
DN—E no caso da saída dos «páras» de Tancos?
RN — O partido teve informação da movimentação dos «páras», ante destes terem saído.
DN — O «trabalho militar» do PCP constituía uma área de actuação privilegiada?
RN — A actividade e a atenção do PCP às Forças Armadas é uma orientação muito antiga. Seria de uma grande irresponsabilidade e negaria a natureza revolucionária do PCP se, numa revolução como a do 25 de Abril, não prestasse a maior das atenções aos militares.
DN— Quando, logo a seguir ao 25 de Abril, António Spínola não consegue um apoio claro dos militares do MFA, no final do plenário da Manutenção Militar (que precedeu a crise Palma Carlos) que análise fez o PCP?
RN — Considerou ser urgente a coordenadora do MFA se auto-institucionalizar e traduzir assim no plano institucional, o seu papel de verdadeiro autor do 25 de Abril.
Sabia-se que o «imparável» movimento popular antifascista, liderado pelo PCP não deixaria de influir muito o MFA, ou parte dele, no sentido da revolução.
O PCP e as eleições
RN — A realização de eleições livres era um dos principais pontos do programa do PCP na clandestinidade — estávamos no fascismo, não no comunismo! Após o 25 de Abril, as eleições para a Constituinte era um objectivo a conquistar tanto mais importante quanto Spínola preferia um referendo que lhe conferisse poderes mais ou menos ditatoriais. Num encontro, em que participei, de uma delegação do PCP com elementos do MFA, suponho que em 1974, foi informalmente colocada a questão. Vasco Gonçalves que estava presente, respondeu que a data era um compromisso inalienável do MFA. Mais tarde, e em especial após o 11 de Março, surgiram dúvidas sobre a bondade de tal acto, a tão curto prazo. Mas foi assunto discutido à puridade.
No PCP, os resultados eleitorais das primeiras eleições livres, em 25 de Abril de 1975, eram aguardados ora com receio, porque comunismo e eleições eram coisas que nunca ligaram bem, ora com esperança. Neste caso, assente nos comícios sempre maiores do que os de qualquer outro partido, nas sondagens obtidas pelos camaradas em conversas de autocarro — ou, até, porque a gratidão do povo, de cuja representação julgávamos ter monopólio, não nos faltaria nesse momento.
As primeiras eleições, ao darem 12,5 por cento dos votos ao PCP e quase 38 por cento ao PS, revelaram um quadro de opções dos Portugueses completamente diferente do que era dado pelas mobilizações populares e foram um factor decisivo para a derrota a prazo do projecto do PCP.
2005/11/08
A gripe das aves
Era para combinar um almoço mas a conversa resvalou para o pavor. Se acho que devemos tomar medidas desde já? mas que medidas? Pois... mas... o caso é que assim alguém da família vai morrer... de acordo com as estatísticas. Tentativas bem dirigidas para desviar. Então sempre é verdade que o Martinho já está mesmo separado da Sofia? E a Célia, a Célia! disse-me a Joana que vai mesmo abortar a Badajoz. Consegui. Consegui livrar-me da Teresa, do pânico, das aves, da gripe e sem dar fôlego, fingi que tinha acabado e pim na tecla vermelha.
Meia hora depois. Metropolitano. Linha azul. Sete e meia da tarde. Cada um consigo mesmo e aquelas duas, descuidadas ou sem cerimónia, a fazerem-se ouvir. Oh, oh, oh, então vou lá agora ligar a isso! Ora, ora, essa é boa! se se quisessem preocupar com epidemias preocupavam-se com a droga e com o álcool. Vê lá se falam em vacinas para isso! Mas... mas... Qual mas, oh oh, quais aves! quais gripe! vou lá agora acreditar nisso. Fizeram mas foi alguma vacina que não se vende e agora querem que a gente vá a correr comprá-la. Ná, ná, eu cá não, eu não... Se isto é assim com as aves... com as aves... com as aves... que admiração uns serem pelo Soares e outros pelo Manel.
2005/11/01
O terramoto de Lisboa (3)
Neste recinto ficaram reduzidos a cinzas os sumptuosos conventos da Santíssima Trindade, de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de São Francisco, de Nossa Senhora do Rosário dos Irlandeses, do Espírito Santo, de Nossa Senhora da Boa-Hora, de Corpus Christi, de São Domingos e de Santo Elói, com as suas majestosas e bem ornadas igrejas...
...se queimou a sumptuosa Igreja de Santo António edificada na antiga casa, em que o mesmo santo nasceu, com a magnífica e bela casa que antes da divisão da cidade servia para as conferências do Senado da Câmara; e na mesma igreja muita e bem lavrada prata, e ricos ornamentos, de que se achava enriquecida. ... havendo o fogo na igreja sido tão violento que derreteu toda a prata, bronze e outros metais, que nela achou". [o relato prossegue com o registo de muitas dezenas de igrejas destruidas]E os palácios
Padeceram a mesma desgraça os edifícios de Alfândega Real, Casa da India, Vedoria, Consulado, Contos do Reino, Sete Casas, Terreiro do Pão, Ribeira das Naus e armazém dela, Casa do Tesouro, ao Arco da Consolação...
e os tribunais do Desembargo do Paço, Junta dos Três Estados, Conselho da Fazenda, Conselho Ultramarino, Mesa da Consciência, Casa de Bragança, Contadoria-Geral de Guerra, Tenência, armazéns com as suas grandes secretarias, e as de Estado do Reino, Guerra e da Marinha, cujos tribunais estavam no recinto do Paço, nos quais se perderam cartórios numerosíssimos livros e papéis, com grande detrimento da fazenda real e da dos particulares... "
E as preciosidades
ENTRE as muitas preciosidades que o fogo consumiu, foi muito sensível aos eruditos a perda de muitas e numerosas livrarias. Tem o primeiro lugar a biblioteca real que era numerosíssima e selecta: o senhor rei D. João V a tinha aumentado com grande número de livros modernos, e todos os antigos que se descobriram pela Europa; e uma grande cópia de manuscritos, assim originais como cópias bem escritas, tudo efeitos da sua sabedoria e magnificência.
A do marquês de Louriçal enchia e ornava quatro grandes casas, e era selecta em livros raros e excelentes manuscritos. Tinha sido formada pelos sábios condes da Ericeira, e ultimamente aumentada pelo conde D. Francisco Xavier de Meneses, cuja erudição ainda hoje admira, não só Portugal, mas toda a Europa.
A biblioteca do Convento de São Domingos estava em duas grandes casas e tinha muitos livros raros e grande número de manuscritos, que para ela deixou o erudito beneficiado Francisco Leitão Ferreira. Foi obra do padre frei Manuel Guilherme, que a constituiu pública com assistência de dois bibliotecários e renda grande para o seu aumento.
Na Casa do Espírito Santo havia uma grande e selecta livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a maior colecção de livros que tratavam de Maria Santíssima obra do padre Domingos Pereira.
Ficaram também reduzidas a cinzas as excelentes e antigas livrarias dos conventos do Carmo, São Francisco, Trindade e Boa-Hora. Tiveram o mesmo sucesso todas as dos palácios que arderam, em que havia algumas muito estimáveis.
As particulares foram muitas, e entre estas era muito preciosa a do inquisidor José Silvério Lobo por numerosa e selecta. Em cinco casas de mercadores de livros franceses, espanhóis e italianos, e vinte e cinco lojas e casas de livreiros portugueses, se consumiram grandes livrarias...
[Extractos de "Memórias das Principais Providências"... de Amador Patrício de Lisboa, 1758]
O terramoto de Lisboa (2)
As religiosas, abertas as clausuras pelo temor das ruínas, que experimentaram os seus mosteiros, procuravam, divididas, ou os ou os campos para o refúgio. Algumas, refugiadas nas cercas dos seus conventos, esperaram clausuradas a misericórdia de Deus. Vagavam por as ruínas os sacerdotes, tanto regulares como seculares, absolvendo a uns, agonizando a outros.
O senhor rei D. José e toda a real família se achavam em uma das reais casas de campo de Belém (excepto o senhor infante D. Manuel que habitava o real Palácio das Necessidades), que não tiveram ruína, e saíram para o campo, onde se formaram grandes barracas de campanha, em que viveram alguns meses, enquanto se não fez o Palácio da Ajuda fabricado de madeiras, que depois ardeu em 10 de Novembro de 1774,. onde em seu lugar se fez o grandioso palácio que ainda não está concluído. O senhor infante D. António mandou fazer na real Quinta da Tapada de Alcântara duas barracas de madeira, como diremos quando tratarmos da sua morte.
Passada a primeira noite em fervorosos clamores e continuados sustos, cresceu a aflição em todos, experimentando a falta dos cabedais, que perdiam, e cuidadosos dos parentes, que lhes faltavam; dispersas a maior parte das famílias, choravam uns a falta dos outros.
Continuava o fogo a devorar aquelas coisas, que o terramoto não havia prostrado; e os ladrões, sem temor de Deus, e dos seus castigos, à vista deles entravam pelas casas e delas tiravam os cofres de dinheiro, as jóias e a roupa. Muitas famílias, cujas habitações não arruinou o terramoto, nem destruiu o fogo, ficaram pobres pelos roubos: atribuíram-se estes a muitos forçados das galés, e criminosos, que então saíram das prisões"...
2005/10/31
O terramoto de Lisboa
Amanheceu o dia, em que a Igreja celebrava a festa de Todos-os-Santos, que era em um sábado, sereno, o sol claro e o céu sem nuvem alguma. Pouco depois das nove horas e meia da manhã, estando o barómetro em vinte e sete polegadas e sete linhas, e o termómetro de Reaumur em catorze graus acima do gelo, correndo um pequeno vento nordeste, começou a terra a abalar com pulsação do centro para a superfície; e, aumentando o impulso, continuou a tremer, formando um balanço para os lados do norte a sul com estragos dos edifícios, que ao segundo minuto de duração começaram a cair, ou a arruinar-se, não podendo os maiores resistir aos veementes movimentos da terra, e à sua continuação. Duraram estes, segundo as mais reguladas opiniões, seis para sete minutos fazendo neste espaço de tempo dois breves intervalos de remissão este grande terramoto.
Em todo este tempo se ouviu um estrondo subterrâneo por modo de trovão, quando soa ao longe. Escureceu-se algum tanto a luz do sol, sem dúvida pela multiplicação de vapores, que lançava a terra, cujas sulfúreas exalações muitos perceberam. Foram vistas em várias partes fendas na terra de bastante extensão, mas de pouca largura. A poeira , que causou a ruína dos edifícios, cobriu o ambiente da cidade com uma cerração tão forte que parecia querer sufocar todos os viventes.
A estes impulsos da terra se retirou o mar, deixando nas suas margens ver o fundo às suas águas, nunca dantes visto; e encapelando-se estas em altíssimos montes, se arrojaram pouco depois sobre todas as povoações marítimas, com tanto ímpeto que parecia quererem submergi-las, estendendo os seus limites. Três irrupções maiores, além de outras menores, fez o mar contra a terra, destruindo muitos edifícios e levando muitas pessoas envoltas nas suas águas.
Como era dia solene, estavam as igrejas cheias de gente ficando imensa debaixo de suas ruínas logo que as abóbadas e paredes destas se desfizeram, e caíram. Os que estavam ainda em casa e transitavam as ruas, igualmente uma grande parte foi vítima da mesma calamidade. Os gritos, alaridos, clamores ao Céu pedindo misericórdia, sucedendo-se uns aos outros, tudo consternava e movia a lágrimas. Nem os pais buscavam os filhos, nem esposas os consortes, nem os mesmos bens terrenos eram objecto do amor de seus proprietários; ninguém cuidava senão em salvar a vida, e pedir a Deus a salvação de suas almas.
Tinha muita gente buscado as margens do Tejo para se livrarem dos edifícios, temendo as suas ruínas: porém, entrando o mar pela barra com uma furiosa inundação de águas, fizeram o mais lamentável estrago, passando os seus antigos limites; e, lançando-se por cima de muitos edifícios fez aumentar o horror com a voz vaga que por toda a cidade se espalhou, que o mar crescia.
Logo depois do terramoto, primeiro se começou a ver arder o palácio do marquês de Louriçal, a igreja de São Domingos, o Recolhimento do Castelo, e outros edifícios, em que as luzes, ou fogões das casas, tinham comunicado o fogo aos madeiramentos. Isto, que aumentou as desgraças, fez multiplicar o susto. Jaziam pelas casas muitos doentes que, não podendo fugir, foram vítimas, e consumidos pelo fogo. Viu-se um religioso do Carmo calçado posto em uma janela muito alta, de onde não podia sair para dentro, nem para fora, pedir a absolvição a um sacerdote que passava de longe, e esperar resignado o fogo, que o consumiu.
Continuaram os tremores de horas a horas com menos violência, mas com igual horror, temendo-se que a terra se abrisse com a veemência de tantos abalos. Comunicado o fogo ao castelo correu uma voz que se retirassem todos dos subúrbios da cidade, pelo perigo de pegar à pólvora que ali se achava, e matar os que tinham escapado ao terramoto. Com este susto fugiram quase todos para fora da cidade aquela noite, para uma ou mais léguas. "
Principais sismos, em Lisboa, desde o séc XIV
2005/10/17
Portugal em vias de perder a colecção Berardo
Por burocracia, sonolência governamental, inépcia, filosofia de deixa andar e logo se vê, a importante colecção de arte que Joe Berardo tem vindo a adquirir está em vias de ir parar a França.
Portugal não consegue (desde há cinco anos!) arranjar um local para ela. A França que não é parva já lhe ofereceu duas soluções e as insígnias de Chevalier de la Légion d'Honneur (ver post no puxapalavra)
Maria José Aguiar-Colecção Berardo
Carlos Calvet na Colecção Berardo
Exposições colectivas no estrangeiro – (selecção): 1967 Bienal de S. Paulo, Bienal de Tóquio, 1970 Twenty Artists from Portugal, The Hudsun River Museum, USA, 1976 Arte Portoghese Contemporanea, Roma, 1984 “Surréalisme péripherique, Montréal. Exposições colectivas em Portugal (selecção): 1947-53 Gerais de Artes Plásticas 1949 Surrealistas, 1957 e 1961 Fundação Gulbenkian, 1972 Expo AICA, SNBA, 1982 História Trágico Marítima, SNBA, Lisboa.
Álvaro Lapa- Colecção Berardo
Pintor, poeta, e escritor, nasceu em Évora em 1939 e vive no Porto. Em 1956-60 frequenta a Faculdade de Direito e a de Letras, em Lisboa. Em 1962 começa a pintar e a dar aulas no ensino técnico, vindo a ser expulso da função pública, e só é reintegrado em 1976. Em 1962 conhece Areal. Expõe pela primeira vez em 1964... Em 1977 publica o livro “Raso como o chão”. Pintura e escrita são indissociáveis no trabalho de Lapa... Trabalho introspectivo e de conhecimento, a sua pintura é um território onde se cruzam diferentes domínios de criação – o filosófico, o literário, o político. Álvaro Lapa tem também importante trabalho na área da teoria estética, da poesia e da literatura, domínios que se cruzam frequentemente. Aliás, produziu uma série de Cadernos dedicados a 18 escritores, entre os quais se encontram Rimbaud, Miller, Michaux, e William Burroughs. [aqui]
Alberto Carneiro-Colecção Berardo
2005/09/13
Águas Silenciosas
Um belíssimo filme que não tem tido a promoção que merece. Ainda está aí. Agora no Quarteto em Lisboa.
Título original: Khamosh Pani.
Título em Portugal: Águas Silenciosas
Coprodução: Paquistão, França e Alemanha. 2003
Realização: Sabiha Sumar. Paquistanesa de Karachi.
Intérpretes: Kirron Kher (a mãe), Aamir Ali Malik ( o filho Saleem), Arsad Mahmud, Salman Shahid
Cinco prémios, em 2003, no Festival de Locarno, incluindo o Leopardo de Ouro para o melhor filme.
Estreia em Portugal: 18 de Agosto de 2005 (com 2 anos de atraso).
Ayesha é viuva, vive em Charkhi, uma aldeia do Punjab paquistanês, é muçulmana. Ganha algum dinheiro a ensinar o Corão a meninas da aldeia. Mas ela que pertenceu à comunidade de religião Sik ensina um Corão de amor a todos os homens e... a todas as mulheres.
Vive feliz, para o filho de 18 anos que procura ajudar a encaminhar-se na vida. Feliz tanto quanto o permitem os fantasmas do passado, as tenebrosas e ondulantes sombras da água funda do poço da aldeia, onde a mãe e irmãs foram afogadas para prevenir eventual desonra do pai e dos irmãos.
São histórias do passado, de 1947, quando a Inglaterra se vê obrigada a largar o império da India. A maioria muçulmana que habita o Paquistão, a Ocidente e a zona oriental que viria depois dar origem ao Bangladesh, contrariando os propósitos de Gandhi, separa-se da India com o agrado ou apoio da velha Albion.
Esta separação religiosa deu origem a milhões de deslocados de indus e siks para a India e de muçulmanos para o Paquistão. E a guerras e a disputas. Até hoje. Mais de meio milhão de mortos pelo meio.
Naquela aldeia a comunidade de religião Sik abandonou a sua terra que agora pertencia a um novo país chamado Paquistão para glória de Alá. Os siks abandonaram a sua terra mas antes que ela fosse ocupada pelos fiéis de Maomé e pudessem abusar das suas mulheres obrigaram estas, esposas e filhas a suicidarem-se atirando-se ao poço da aldeia. O odioso fanatismo sik à altura do odioso fanatismo muçulmano. Não estava lá o odioso fanatismo católico de antanho nem o mais actual das seitas evangélicas extremistas que apoiam (e se servem) de Bush.
Ayesha não consegue atirar-se ao poço. Ama a vida e não se submete. Perseguida pelos irmãos, pelo pai pelos siks ciosos da sua enorme honra de machos consegue fugir. Integra-se na sociedade muçulmana. Uma muçulmana multicultural, como hoje diríamos, que já sofreu e aprendeu muito para se submeter a ódios fanáticos.
O filho não tem emprego e está num momento instável da sua vida sem saber que rumo lhe dar, tão minguadas são as perspectivas. Apaixona-se por Zubeida que tem planos de estudos universitários que o ama e com ele quer casar.
Estão em 1979 (é essa a data dos acontecimentos) incomparavelmente mais livres que hoje no Afeganistão. Encontram-se a sós, trocam olhares com ternura, acaríciam-se as mãos, beijam-se, sonham sonhos de amor.
É então que chega à aldeia dois jovens clérigos fervorosos catequisadores que querem pôr a vida dos aldeões nos eixos. De acordo com o Corão, com a charia, de acordo com o poder delegado
pela Mesquita fundamentalista e pelo ditador Zia Ul Haq. Infiltram de intolerância e medo o quotidiano pacífico da aldeia, ameaçam e aliciam.
Saleem deixa-se ir. Afinal talvez tenha um futuro! Importante. Seguro. E talvez até poder. Quiçá pequeno ou não? E, paulatinamente, o que era amor e claridade o fundamentalismo islâmico vai transformando em ódio e trevas.
É que estava na mira o Afeganistão invadido pelos soviéticos que socorriam o Governo pró comunista ameaçado pelos EUA, Arábia Saudita e agora com maior empenho pelo Paquistão.
Criaram-se milhares de madrassas - escolas corânicas e de ódio. De ódio ao comunismo, de ódio ao Ocidente, de ódio às mulheres. Às suas mães, às suas irmãs, que desprezam e escravizam. Escolas de terrorismo. Ali se formou o exército dos Talibans, ali se organizou e treinou a Al Khaeda, ali se lavou o cérebro a dezenas de milhar de jovens sem trabalho, nem perspectivas, com o fanatismo religioso e as técnicas modernas do terror.
Especialistas norte-americanos, serviços secretos e exército do Paquistão, petrodólares da familia Saud que tem um país como sua quinta.
Exércitos de terroristas ao serviço do "Bem". O "Bem" segundo os cânones fundamentalistas do Islão Wahabista e conjunturalmente um "Bem" do Ocidente.
Primeiro no Afeganistão, depois ali ao lado na Cachemira disputada à India, na Tchechénia e Ásia Central, então ainda soviética, depois na Jugoslávia, na Bósnia e depois... já sem teatros de guerra e abandonados pelos Estados Unidos, em Nova York, nas Twin Towers, em Washington no Pentágono, e na Indonésia, e na Turquia, e na Arábia Saudita, por considerarem estes países ao serviço dos EUA, e num teatro de Moscovo, e numa escola de Beslam, que pertencem ao reino do diabo, nos comboios de Madrid, no metropolitano de Londres e o que falta vir.
Mas o filme não toca no contesto político nem em política, (como eu, ad contrario, faço aqui) salvo na recém chegada ao poder do ditador Zia Ul Haq.
E esse é um segredo que torna bom o filme. Não porque a ignorância acrescente algo, ciência ou arte, mas porque oferece a todos, de esquerda ou de direita, do centro ou agoniados com a política, acompanhar sem o campo de obstáculos dos preconceitos ideológicos, com a cabeça e o coração livre, o drama duma família (e duma aldeia e de um país!) o destroçar do amor, da fraternidade, da sanidade moral e intelectual de pessoas que começamos a amar.
Há que ir ver o filme. As salas estão vazias. Pode-se escolher o lugar. Antes que se vá.
2005/09/09
Fernando Botero
mais tarde, em meados de cinquenta, estuda Rivera e Orosco no México e em seguida os modernos norte-americanos.
2005/08/12
Olá Paulo!
Então como é que vais aí em Podentes com essa cinza toda no teclado?
Fugiste da cidade, ao que dizes. Realmente há muito que não te via. Nem no Cristóvão de Moura!
Faxavor tira da cabeça essa ideia de emigrar. O país precisa é de mais Varela Gomes e não de menos. Gente rija. De boa cepa. De carácter.
Um abraço ao pai João, à mãe Gena, à Geninha e à tua irmã mais nova. Não me lembro do nome dela. Fui ao livro, ao "Tempo de Resistência" onde o teu pai fala das 750 cartas escritas à família nos sete anos em que o fascismo o encarcerou por ser um homem honrado e valente. Mas o teu pai só tratava a filha mais nova, ainda muito novinha, por Chuchu... pronto um abraço para a Chuchu.
2005/08/06
Hiroshima - foi há 60 anos
8 e 15 minutos da manhã. A cidade já trabalhava. "Os comerciantes já tinham aberto as lojas, os estudantes estavam nas salas de aula, os escritórios e as fábricas funcionavam". A cidade, um tanto longe da guerra sentia-se um pouco mais segura do que outras por não ter valor militar.
Na Casa Branca, em Washington, o presidente Truman não partilhava as preocupações humanistas do seu antecessor Roosewelt e não pensava bem assim. Considerou que 343 mil pessoas, se mortas de uma só vez, poderiam constituir um muito aceitável objectivo militar.
Podia-se até adocicar um pouco as coisas. O avião B29 que faria "o trabalho" seria baptizado ternamente com o nome da mãe do piloto, Enola Gay e a bomba podia ter um nome carinhoso "Little Boy".
Às 8 e 15 da manhã um relâmpago entre branco e azul iluminou a cidade mais que o Sol e 5,5 milhões de graus Celsius levantaram um cogumelo róseo que cercou o céu e a cidade. Num raio de 500 metros ficou quase tudo reduzido a pó. 10 mil pessoas foram evaporadas mas de algumas ficou uma "sombra". À sua volta as pedras ficaram mais queimadas e escuras e desenharam assim a última posição no último momento das suas vidas.
Morreram cerca de 300 mil pessoas das quais 80 mil na primeira hora. Muitos milhares foram morrendo lentamente ao longo de muitos anos, com as radiações.
Washington desculpou-se com a poupança de sangue de militares americanos ao acelerar, assim, o fim da guerra. Outros acham que a guerra já estava decidida e fora uma forma de intimidar a URSS cujos exércitos levavam de vencida o grosso das tropas japoneses, destacadas na Manchúria.
Civis, longe dos combates, cidade sem valor militar, muitos não hesitaram em chamar a Hiroshima e a Nagasaqui (3 dias depois) o maior acto de terrorismo da história.
Washington achou que valeu a pena. Hiroshima e Nagasaqui não pensam assim e comemoram todos os anos a data do crime e exigem o fim das armas nucleares.
2005/07/16
Cunhal visto por Urbano
Urbano diz-nos que Álvaro Cunhal conhecia as chagas do socialismo real e que tinha para o socialismo que ambicionava para Portugal concepções muito diferentes, nomeadamente com democracia e pluralismo partidário. Questionado por Judite de Sousa explicou que nunca denunciou tais falências para não dar armas ao imperialismo.
Assisti dia a dia, durante os quatro anos que a Perestroica durou, às reacções de Cunhal e dos outros velhos (e novos!) dirigentes do PCP. Cunhal e a grande maioria daqueles continuavam, por necessidade a incensar a União Sóviética, a grande rectaguarda, mas tiveram relativamente à Perestroica sempre as maiores reservas e antipatia. Uma antipatia à flor da pele, reacção típica a um corpo estranho, seguida depois por uma crescente ainda que reservada condenação, muito antes ainda de se adivinhar a queda de Gorbatchov e o fim da União Soviética.
Outra coisa não seria de esperar. Nem é justo negar-lhes o "feeling", a clara percepção de velhos e experientes "revolucionários bolcheviques" de que aquilo ia desfigurar, senão acabar com o verdadeiro, o único, socialismo real existente, questionar a prática do PCP, pôr em causa a cartilha marxista-leninista, bíblia do partido e principalmente "retirar o tapete" à direcção do PCP, com Cunhal à cabeça, à semelhança do que sucedeu com todos os líderes comunistas que não se reciclaram imediatamente a seguir ao 20º Congresso do PCUS que denunciou o estalinismo.
Podemos anuir em que Cunhal e a direcção do PCP aceitaram a Perestroica nos seus primeiros (muito iniciais) momentos na estrita medida em que admitiam que ela não passava de mais uma operação de cosmética. Para mobilizar as massas. Mas muito cedo todos perceberam que a Perestroica não era, afinal, cosmética e que iria mudar "aquele socialismo".
Até 1989 ninguém admitia, nem os "sovietólogos", nem a CIA, nem mesmo Vasco Pulido Valente, com a excepção talvez do KGB, que aquilo ia dar no que deu. Cunhal e o PCP eram esclarecidos adeptos de um socialismo de rosto humano para Portugal. Não tanto por sensibilidade ou natural simpatia mas por óbvia estratégia. Se fosse possível!!! Assim como aquele pai portuga dizia ao filho que, no século passado, apertado pela miséria se via obrigado a emigrar para as Américas: filho vai. Vai e enriquece. Honestamente! Se possível.2005/07/12
Alcatruzes...
Alcatruzes em descanso é o título desta fotografia em Click Portugal um blog que oferece Portugal em fotografias, de Platero um visitante e comentarista do Puxa Palavra.
Um homem do mundo
O Alexandre Narciso tem belíssimas fotografias no EELKO VAN MULDER e no Crónicas de Um VagaMundo que lhe sucedeu e também interessantes relatos das sete partidas do mundo que ele
por razões profissionais incansavelmente percorre. Roubei-lhe a fotografia apesar de não ser fácil reproduzi-las. Boa viagem Caro Amigo.
2005/07/03
Ao cuidado do ministro António Costa
Já vos tenho confidenciado conversas, muito úteis aliás, com o meu vizinho, o Senhor Antunes. Este Sábado ia ler o jornal no aconchego de uma bica, no nosso café preferido, ali no largo e lá estava ele.
O Sr. Antunes mudou há pouco para este bairro e contou-me muito à puridade: não espalhe por aí porque o Governo já tem que baste, mas mudar de casa é uma odisseia!
Na semana seguinte voltei à Loja do Cidadão. Para a Segurança Social, ali, as bichas são sempre de horas mas já levava um livro. Foi óptimo porque me atendeu a mesma funcionária já quase amiga. Dei-lhe triunfante o papel das Finanças e estendi-lhe logo a outra mão para ela me dar a declaração de que não devo nada.
- Oh vizinho - dizia-me consternado o Senhor Antunes que, tão longa a história não me deixava ler o jornal - você não faz ideia a cara de espanto e reprovação da funcionária: Isso não é assim! O sr tem de ir ali comprar o impresso paga 7,05 € e eu preencho, e porque torna e porque deixa. Obedeci. Que remédio! Fiquei à espera mas ela depois de me pedir uns dados disse, agora o Sr recebe a informação em sua casa daqui a 10 dias. Aí amandei-me ao ar. Raios e coriscos mas em que m... de mundo estamos que não pode dizer ali para a sua colega! Então vou-lhe pedir para ela vir cá abaixo ver no seu computador.
- ?
- Pois vai a mulher zanga-se comigo. Que há regras e as coisas não podem ser como eu queria e tal. Fui à outra lá de cima, à da SS, mas só para me queixar da colega da CGA e mais uma vez protestar contra o sistema.
O papel da CGA levou 15 dias a chegar e uns dias depois lá voltei à Loja do Cidadão e à SS. A senhora já me conhecia e com pena de mim fez de conta que não estava a ultrapassar ninguém, chamou-me ali de lado e disse vá dê-me lá o papel que despacho-o já. Aguardei. Pode ir embora já está tudo, disse-me ela.
Ela fez-me aquele favor não tive lata de protestar mais. Meti o rabo entre as pernas e vim embora.
- Sabe o que é que aconteceu?
Passados não dez mas quinze dias veio o papel mas não dizia preto no branco, como eu queria, que não devia nada. Falava nuns decretos mais uns artigos e que agora estava tudo legal até que a situação se alterasse. Achei esquisito. Raio, será que me enviaram o papel errado?. Vou à loja do Cidadão ou vou às Finanças? Fui às Finanças. Assim como assim se o papel fosse bom ficava logo o caso arrumado.
Bicha, o costume. Agora diz-se fila, por causa dos brasileiros que acham que bicha é outra coisa. O Homem das Finanças até se rio, não é nada disto, conheço muito bem o papel, já hoje recebi três.
- É porque ainda não chegou?
- Mas se era 10 dias e já lá vão mais de 15?
- Há-de chegar.
Em resumo, oh vizinho - contava-me o Senhor Antunes, já completamente insensível à burocracia, esvaído de forças - tinha um prazo de 60 dias para o IMI... julgava que era demais e afinal não me vai chegar. Já lá vão quase dois meses agora devia partir de férias e o papel não chega. Aqui para nós, conhece lá alguém no Governo?
2005/06/30
BA 3 Tancos (3)
– Sou eu, sou eu, o «Alfredo».
Vesti-me rapidamente para ver se ainda iria a tempo de salvar o Ângelo de Sousa, pensando em simultâneo sobre a forma de não ser apanhado pela polícia se a casa já tivesse sido assaltada e para onde havia de levar o procurado piloto de helicópteros se estivesse são e salvo.
.....
Nem eu nem o Ângelo tínhamos televisão em casa por isso ambos dormíamos descansados. O Jaime Serra que tinha deixado o carro em que viera, longe da minha casa deu-me boleia até Lisboa e ficou no bairro de São Miguel a aguardar as minhas diligências. Se a polícia já tivesse descoberto a casa do Ângelo não seria fácil escapar-me. Era devido a esse perigo que ele decidira que ia eu e não ele. No entanto não era decisão que me passasse pela cabeça questionar. Sendo o Jaime Serra o mais responsável no Comando Central da ARA aceitava esta decisão com a mesma naturalidade com que permitia que fossem outros menos responsáveis que eu a executarem as acções e não eu. Apesar de ser improvável que em tão pouco tempo a polícia pudesse ter chegado ao Ângelo fui-me aproximando com todas as cautelas na tentativa de me aperceber a tempo de alguma coisa estranha. Avançava não demasiado rápido com um ar normal para que nenhum olhar de polícia ocasional desvendasse o destino dos meus passos. Felizmente ninguém se importava comigo e àquela hora madrigal só as árvores da rua António Patrício, atentas, distantes, e solidárias me acompanhavam. Nem um guarda nocturno, nem um vagabundo, ou sequer um operário pedestre e matutino a caminho do trabalho. Ia completamente só e desamparado mas não dava por nada disso porque tinha toda a atenção concentrada em hipotéticos pides por ali emboscados e em tirar de casa rapidamente o Ângelo, agora estrela involuntária de televisão por ter prejudicado a fazenda nacional sei lá em quantos milhares de contos. Parei do outro lado da Avenida dos Estados Unidos. O prédio dormia. A PIDE, se tinha tomado o prédio e o quarteirão, disfarçara-se lindamente. Mais uma vez me confrontava com aquela situação desagradável de ter por perto o desconhecido a rondar. Parei um momento a avaliar a situação e a tomar fôlego. Como se parasse maquinalmente para avaliar o trânsito. Por fim atravessei a rua afoito. Toquei a campainha cá em baixo apesar de a porta ter um vidro partido que possibilitava abri-la por fora. Voltei a tocar ainda duas vezes. Um toque longo e dois curtos. Era a nossa senha com a campainha. Por fim lá veio
– Quem é? – estremunhada, a pigarrear, a pergunta.
– Luís – respondi-lhe, contente de a ouvir e aguardei que pronunciasse a senha:
– Vens sozinho ou com a Teresa?
Respirei fundo e subi já seguro a sorrir do meu susto.
– Este país anda completamente à mercê de qualquer atrevido, com este fascismo decrépito. Que polícias! Uma vergonha, não prestam! – Ia dizendo para comigo, aliviado da forte tensão anterior. Foi assim jovial que falei para o Ângelo que estremunhado não percebeu bem porque é que eu lhe anunciava tão desagradável situação com um ar misto de vitória e alívio.
Passámos em revista os mais pequenos pormenores da sua entrada no apartamento de que apenas saíra uma vez à noite durante aqueles quinze dias. Concluiu calma e certeiramente que os estranhos que com ele contactaram não ligariam uma coisa à outra. Passámos uma e outra vez em revisão todo o passado ligado à casa e dei-lhe razão. Mandei-o dormir. Que não, agora que o tinha acordado tinha que beber um café.
– Não posso, o Jaime Serra está à minha espera – resmunguei-lhe, com pouca convicção e inclinado a condescender.
– Então vai chamá-lo para beber com a gente.
Percebi que tinha mesmo de beber o café com ele. Precisava de digerir o acontecimento.
– Com que então os cabrões puseram-me na televisão…
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BA 3 - TANCOS (2)
Na véspera da Acção de Tancos (7 de Março de 1971) ultimávamos os preparativos. No dia seguinte fizemos uma simulação do que se iria passar dentro do hangar, num apartamento no cruzamento da Av. dos EUA com a de Roma, em Lisboa (eu fazia lá ideia que 2 andares abaixo morava o meu primo Celestino! Felizmente que não nos cruzámos, não que ele não fosse contra o regime mas nestas coisas não podemos meter "estranhos" mesmo da família).
A casa serviria de refúgio para o Ângelo de Sousa que teria de abandonar a Força Aérea e cerca de um mês depois, quando tudo acalmasse, ser clandestinamente passado para o estrangeiro. Carlos Coutinho e Eusébio foram levados de olhos fechados para o local e depois para o prédio e o andar e do mesmo modo sairam sem poderem identificar o esconderijo futuro do Ângelo que eu teria de abastecer de alimentos, café, livros e entusiasmos.
– Encontros destes são coisas que só acontecem de longe em longe. De dois em dois anos.
Dispunha-me a concordar plenamente quando, saindo não sei donde, se me atravessa ao caminho um polícia a mandar-me parar. Fiquei petrificado. Resmoneava, inaudível, indignado, sentindo-me vítima de intolerável injustiça: mas que raio é isto? é uma conspiração ou quê? Simultaneamente veio ao de cima como primeira preocupação não me atrapalhar na condução. Não só a carta de condução era falsa como, sem ter tirado carta nem praticado o suficiente, guiava mal. Parei o carro e procurei responder ao boa noite do bem educado guarda com um tom de voz de descontraída calma.
– Os seus documentos! – Pediu-me o polícia.
Entreguei tudo. Certinho. A carta de condução, o livrete, o título de propriedade, o documento do aluguer, o meu bilhete de identidade. Tudo falso como convinha! Foi o que traiçoeiramente me veio à cabeça dizer. Felizmente que só em pensamento. O guarda examinava os documentos um a um. Pelo canto do olho reparei no escuro da berma da estrada, três motos e mais dois polícias de trânsito. O homem era minucioso o que não me animava. O meu colega não sei como estava. Só reparei que tinha as mãos apertadas sobre as pernas e olhava em frente pretendendo talvez insinuar que estava completamente desinteressado do que se estava a passar. Para criar mau ambiente e acelerar o compasso do meu coração o desagradável guarda começou a tomar umas notas num papelinho qualquer. Talvez para me animar, não sei bem, deu-me na cabeça conversar, com naturalidade, com o polícia.
– Então o que é que se passa? É a segunda barreira por que passamos. É ladroagem?
Não me respondeu. Continuava a escrevinhar. Não conseguia evitar maus pensamentos e deixar de me interrogar, o filho da puta está a tirar notas dos documentos? Ainda abri a boca para dizer mais qualquer coisa que quebrasse aquele pesado silêncio quando conclui que era mau sinal ele não me responder. Calei-me. Por fim após uma eternidade levantou a cabeça do papel estendeu-mo e despediu-se com um boa noite tão lacónico como o primeiro. Ainda sem perceber bem o que se passava soletrei o papel que desconsoladamente não tive outro remédio senão receber da mão do polícia. Afinal, que surpresa! A letrinha miúda e a lápis informava simpaticamente uma eventual patrulha que posteriormente nos interceptasse «que este senhor condutor já tinha sido inspeccionado».
Nem queria acreditar! Era afinal uma espécie de salvo-conduto. Atestado de bom comportamento. Prova… não direi de bagagem legal, que não foi objecto de atenção, mas pelo menos de documentação sem mácula. Rezei a todos os santinhos para não arrancar com o carro aos solavancos. Fui atendido. Deslizei com o Carlos Coutinho e tudo o resto, com surpreendente suavidade.
Perdemos o gosto para mais conversas e só quando finalmente arrumámos o carro, o Carlos exclamou enfático com o ornamento de palavras próprias e sonoras que dispensam reprodução que há dias em que não se pode sair de casa!