Ver post abaixo sobre este tema.
2008/07/13
Sentencia Juicio Von Wernich
Rasguei o papel mas depois os pedaços juntaram-se no que reconheci acto milagroso e a mão de Deus. Onde é que isto vinha escrito, interroguei-O. Talvez por não estar em Sua plena Graça fui ao Google que nisto de milagres pede meças ao mais sábio Deus.
O assunto apaixonou a Argentina e até a restante América cristianizada a fio de espada e golpe de canhão por portugueses e espanhóis, que sofreu a onda de ditaduras militares (Brasil, Chile, Argentina, Paraguai (a deste era uma ditadura ancestral), Bolívia, Colombia, etc, mais ou menos fascistas dos anos 70/80 do século passado.
O Padrinho de tais ditaduras que causaram muitas dezenas de milhar de assassínios e centenas de milhar de seviciados, perseguidos e desterrados por quererem liberdade e mais independência nacional foi o paladino dos direitos humanos... nas ditaduras comunistas, Kissinger secretário de estado de Nixon e depois do impeachment deste, na sequência do Whatergate, de Gerald Ford. A barbárie era repugnante as torturas e outros crimes eram requintados. Desde levarem os presos de avião para os atirarem ao mar depois de convenientemente torturados, até ao roubo de filhos aos presos para, com outra identidade, serem criados (noutra cultura política) por sicários da ditadura, respeitabilíssimas famílias católicas, com suficientes teres e haveres, para uma educação como deve ser.
Sobre a matéria podem consultar o Globo, ou aqui na Procuradoria Geral da República do Brasil, ou num site ateista:
"En Argentine, de 1976 à 1983, l'armée impose un régime barbare et 30 000 personnes "disparaissent". 30 000 assassinats perpétrés après les tortures les plus sauvages..." "Qual foi então o papel da Igreja Argentina? Um número resume o conjunto da obra de Emilio Mignone: em 80 membros do corpo episcopal argentino só 4 bispos protestaram contra os militares. Foi um apoio de 95% da hierarquia católica aos golpistas..."
ou, como contraponto, num sítio que defende o padre condenado, a Igreja Argentina, os militares golpistas e toda a sua redentora acção conta o "comunismo diabólico":
"Um fato insólito, perverso e demoníaco acaba de ocorrer na Argentina, com a condenação à prisão perpétua do Padre Christian Federico Von Wernich, pelo “crime” de ter sido durante a ditadura dos anos 70-80 Capelão da Polícia de Buenos Aires. Este caso arrasta-se há 4 anos, desde os quais o Padre Von Wernich esteve preso mesmo antes do julgamento, na penitenciária Marcos Paz.
2008/01/12
Passa por mim no Rossio

Passo por ali todos os dias. Excepto quando vou pela Praça da Figueira e apanho a outra entrada do Metropolitano. Passo por ali todos os dias mas nem sempre lá está. Ou nem sempre reparo.
Entre o que acabo de fazer, dois quarteirões atrás, no escritório sempre igual e o que planeio para as horas que me restam, quando chegar a casa, avanço contra o mar de gente que se atropela e, pensamento errando por largo, não vejo caras e não vejo corações. Por isso talvez ela lá esteja mais vezes. Talvez lá esteja todos os dias. Entre as montras faiscantes da Camisaria Moderna e os apelos da última moda exibidos pela Primaz, ela está, encostada ao umbral, em cantaria, do número 113, da Praça de D. Pedro IV. O Rossio.
Não sei o que se passou mas hoje dei por mim parado, a olhar, quase inconveniente, empurrado pela onda humana que desliza alheia, insensível, fugindo cansada para casa.
Parei. Voltei atrás. Fingi observar as camisas, os pulóveres, da Primaz. E olhava aquela mulher.
Era uma mulher. Seria uma mulher? Pensamentos desordenados, sentimentos opostos, piedade, revolta... olhava a mulher disfarçadamente e olhei à volta, também.
A mulher, a velhinha, era cega, como se via pela bengala meio caída que só os cegos usam. Tinha pendurada ao pescoço uma tabuleta. Andei para trás e para a frente, "a ver as montras", até conseguir ler as letras encarnadas em fundo branco de madeira: ajudem-me sou ceguinha e sofro do coração. Estava sentada, caída, num tripé de lona velha, corcovada, quase um novelo, tombada sobre a direita, rente ao chão. Não se via. Ninguém a via. Por isso tocava uma campainha. Tocava com mão pouco segura, aos soluços, desesperadamente, uma sineta que atraía ( não atraía...) as atenções.
Agora me lembro melhor... aquele som..., aquele som agreste da campainha! agora me lembro que a "via" mais vezes. Olhei à volta. Reconfortei-me. Parado, como eu, com o espanto no olhar e um estertor na alma, estava ali, também, especado, um homem. Olhei de novo a velha que não parava de badalar sem resultado visível a estridente sineta. Virei-me então para o homem, cúmplice, para lhe dizer com um olhar, vejam isto! ao que pode chegar um ser humano! porque era disso que se tratava. Um ser humano! E naquela torrente de homens e mulheres que apressada, a um metro, corria, ninguém parava, ninguém se indignava, ninguém congeminava em revolta, deitar governos a baixo, esventrar a ordem social que permite isto, despejar o mundo em toalha limpa e, peça sobre peça, encaixar tudo de novo, sem exploração do homem pelo... sem afinal...
Virei-me para o homem. Mais alto do que eu. Vestia com gosto. Calças de flanela bege a condizerem com uma camisola de malha castanha e um agradável lenço de seda ao pescoço. O homem - não acreditei - passado aquele momento de incredulidade inicial e percebendo melhor o exótico, mesmo o ridículo, da mulher da campainha, quando a esposa, ou namorada a sair da casa de modas já a ele se chegava, riu-se, riu-se, riu-se francamente, com gosto. E olhava-me para que risse. Talvez da boa ideia da sineta. Talvez da coleira com a tabuleta de pau. Talvez porque a velha estava tão inclinada para o chão que parecia cair. Ou porque tocava irregular mas desesperadamente a campainha e nem uma única pessoa deitava uma moeda no mealheiro a tiracolo levantado desajeitadamente com a outra mão cega.
Meti-me então rapidamente na multidão. E foi provavelmente o homem, aquele homem, estrangeiro, talvez sem culpa, mas desapiedado ou inconsciente que me obrigou a registar, ainda que só mentalmente, enquanto vinha, sardinha em lata e absorto, no Metro, isto que agora aqui vos conto.
25 de Outubro de 1991.
_______________
Trabalhava então num escritório na Baixa e o Rossio atravessava-se no meu caminho, diariamente, entre a estação do Metro e a Rua dos Fanqueiros. E aquela mulher ali. Sem incomodar ninguém sem que ninguém se incomodasse.
2007/12/22
Prémio Pessoa 2007

"Irene Pimentel é, de acordo com o comunicado do júri, "uma das figuras mais notáveis da actual historiografia portuguesa". Com recentes trabalhos publicados em 2007 sobre a história da PIDE, a Mocidade Portuguesa Feminina, os judeus em Portugal e a história das organizações femininas do Estado Novo, Irene Pimentel estuda "temas difíceis e polémicos".
Os seus livros, afirma o júri, "nunca negam adesão à causa das liberdades e dos direitos humanos, num esforço de rigor intelectual e objectividade académica".
Irene Flunser Pimentel: 57 anos, licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1984. Concluiu o mestrado em História Contemporânea (variante Século XX) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com a tese Contributos para a História das Mulheres no Estado Novo. É investigadora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa...
...
É autora dos seguintes livros: História das Organizações Femininas do Estado Novo, "Textos relativos a Portugal" in Contai aos Vossos Filhos. Um Livro sobre o Holocausto na Europa, 1933-1945, de Stéphane Bruchfeld e Paul A. Levine, Fotobiografia de Manuel Gonçalves Cerejeira, Fotobiografia de José Afonso e "A PIDE/DGS, 1945-1974".
O Prémio Pessoa é um dos importantes galardões do país, atribuído anualmente a uma figura de nacionalidade portuguesa com "intervenção relevante na vida científica, artística ou literária". [link]
2007/10/07
Não Apaguem a Memória

Ao Presidente da Assembleia da República foi entregue o seguinte memorando das diligências do NAM agora promovidas:
O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! nasceu de uma acção de protesto realizada no dia 5 de Outubro de 2005 por um grupo de cidadãos indignados com a demolição do antigo edifício-sede da polícia política portuguesa, a PIDE, e sua substituição por um condomínio fechado, sem que nele figurasse uma menção à memória do sofrimento causado pelo regime ditatorial, que vigorou durante quase 50 anos, aos portugueses que lutaram pela liberdade e ali foram submetidos a interrogatórios, vexames e tortura.
Desta iniciativa cívica resultou um vasto movimento de cidadãos, democrático, plural e aberto, motivado pela exigência da salvaguarda, investigação e divulgação da memória da resistência antifascista. Este Movimento considera ser responsabilidade do Estado a preservação condigna desta memória para o que lhe incumbe tomar iniciativas e apoiar outras que lhe sejam propostas e considere adequadas.
Pese embora a intensa mobilização cidadã, as diversas audiências havidas com representantes de todos os grupos parlamentares, com membros do Governo e com vereadores da Câmara Municipal de Lisboa, é forçoso admitir que o Movimento está longe de ter alcançado os resultados possíveis dois anos após a sua criação, nomeadamente nos casos que a seguir se mencionam.
Assembleia da República:O conjunto de acções levadas a cabo pelo Movimento culminou com a entrega, na Assembleia da República, de uma petição nacional que reuniu 6.007 subscritores – entre eles os antigos Presidentes da República, Jorge Sampaio e Mário Soares – e que foi objecto de debate parlamentar no passado dia 30 de Março.A petição deu origem a dois projectos de Resolução parlamentar e espera-se a aprovação de uma resolução que recomende um conjunto de medidas, de ordem política e jurídica, passíveis de criar condições para a concretização da memória da resistência à ditadura e da liberdade conquistada em Abril de 74.
Câmara Municipal de Lisboa:As negociações com vista à constituição de um espaço museológico no edifício ex-Sede da PIDE/DGS, em Lisboa, apesar do promotor imobiliário ter disponibilizado um espaço no futuro condomínio da Rua António Maria Cardoso e das diversas reuniões havidas do Movimento com a anterior vereação do Urbanismo e da Cultura da Câmara Municipal, não lograram qualquer resultado.A expectativa do Movimento é de que a nova Presidência da CML retome, o mais breve possível, este processo negocial, de forma a estabelecer bases sólidas para a elaboração do projecto arquitectónico e museológico já em discussão. Este projecto conta com a colaboração de um grupo técnico de arquitectos, designers e historiadores que apoiam esta iniciativa e do qual fazem parte, entre outros, o designer Henrique Cayatte e os arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Raul Hestnes Ferreira.
Ministério da Justiça:A promessa do Ministro da Justiça, em audiência havida com o Movimento, de ceder as instalações da antiga cadeia do Aljube criou a expectativa da criação do Museu da Resistência e da Liberdade que venha a constituir-se como importante centro dinamizador, em articulação com universidades e outras instituições e organizações que desenvolvem relevante actividade neste domínio. No entanto não foram ainda tomadas medidas no sentido da concretização desta expectativa.É nossa expectativa de que, a curto prazo, tendo em conta a audiência para o efeito já acordada, o Senhor Ministro da Justiça dê início a este processo.
No momento em que comemora dois anos de existência, o Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! Apela aos poderes públicos para que seja dado andamento a estas iniciativas e se mantenha aberto ao diálogo relativamente a outras iniciativas que lhe sejam colocadas.Passadas mais de três décadas após o derrube da Ditadura e a instauração da Democracia, urge adoptar medidas que tornem efectiva a preservação da memória da resistência e da liberdade conquistada pelo povo português em Abril de 74.
Lisboa, 5 de Outubro de 2007
2007/08/30
Histórias do Sol nascente

Uma leitora do Puxa Palavra enviou-nos esta fotografia com o título O acordar do estádio e explica que este é o estádio do Odivelas e aquele um Sol que terá pernoitado pelo Parque das Nações e se levanta por detrás da Alta de Lisboa.
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Aproveito a fotografia e a mensagem, acrescento-lhe mais alguma coisa e fica feito o post para o Memórias.
Entre o estádio e o Sol, num baixio invisível na fotografia, corre a Ribeira de Odivelas que em 1967, num outro 25 de Novembro, saltou as margens, avalanche de água e lodo, derrubou e matou. os Bombeiros Voluntários de Odivelas recolheram 64 cadáveres de habitantes ribeirinhos. Gente de poucos haveres, a dormir em casebres, meios escondidos em terras de ninguém, apanhados pela torrente e a escuridão da noite. Salazar tomou medidas drásticas à altura da tragédia deu ordens severas à censura para, nas notícias, não deixar passar nem mortos nem feridos. A ordem (fascista) foi mantida.
Mas a ribeira em si não é má e no seu quotidiano serviu dedicadamente com seu fio de água, desde a fundação, em 1295, o mosteiro de S. Dinis, casa das freiras bernardas, da Ordem de Cister. "As residentes eram filhas da nobreza, que não casavam por não disporem de bens, quando a família não lhes atribuía um dote. Não estando prometidas em casamento a algum nobre, as raparigas recolhiam à sombra protectora dos mosteiros, enriquecidos com as doações dos reis e dos nobres, para aí levarem uma vida segura, em termos económicos."
O tempo foi dando as suas voltas ao mosteiro, distante de Lisboa bem uma hora a cavalo e no reinado de D. João V o Magnânimo, um rei tão piedoso quão concupiscente e desprezível, a vida tinha outra animação dada pelas sortidas noturnas de fidalgos em visita a noviças e freiras mais maduras. O exemplo vinha de cima pois a Madre Paula era nem mais nem menos que a célebre amante do rei, de quem chegou a ter um filho para logo ser desprezada. A missa era ouvida pelo rei e por esta duvidosa "rainha" de uma câmara que se abriu para a frente para o púlpito da igreja, para a hóstia e o cálice e para trás, para o lupanar. Costumes da época. Nada de dramático afinal.
"Em 1834 extinguiram-se as ordens religiosas, durante a Monarquia Constitucional, e em 1902 o convento foi entregue ao infante D. Afonso que nele promoveu a instalação do actual Instituto de Ensino." Colégio interno para filhas de militares.
À tarde, 1971, com sol, o jardim do mosteiro era muito aprazível, pelo silêncio bucólico, pela restrita frequência de dois ou três idosos, um cão e dois gatos das casinhas de rés-do-chão circundantes. Os plátanos de braços retorcidos e torturados por podas a preceito, o coreto, o fio de água a fingir de cascata e na outra ponta do largo um cafézinho minúsculo, sem frequência certa nem suficiente. E nós. Eu a Maria e a Leonor com 2 anos. Era a nossa praia, o nosso cinema, o nosso centro comercial. E mesmo assim só a certas horas e de longe em longe. Mas só até 1972 porque a PIDE/DGS interessada, vá-se lá saber porquê, na minha presença não achou nada de mais interessante que colocar a minha fotografia nos jornais e na televisão e pedir que, por desconhecer a minha morada, alguém lhe desse qualquer pista para poder chegar à conversa comigo. A fotografia era antiga, os leitores de jornais e espectadores de televisão, estavam lá agora dispostos a fazer o trabalho da PIDE, nós lemos as notícias e vimos as imagens. Apenas deixámos de ir ao jardim. E preferir a noite ao dia para saídas de casa.
Nada de dramático afinal. Eram os costumes da época. Que acabariam em 1974.
2007/05/26
Carlos Brito. Fugiu!...
2007/05/15
Núcleo museológico do "Posto de Comando do 25 de Abril
Sobre a visita escreveu o jornalista José Teles, membro do movimento e aqui apresento alguns extractos do seu relato (integral aqui) que inclui a saborosíssima conversa telefónica entre os ministros da Defesa e do Exército da ditadura.
Diz José Teles da visita e do "posto de comando":
“Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas… – uma memória discreta, como deve ser. Mas insuficiente.
Estivemos lá. Lá onde o 25 de Abril se coordenou e decidiu. Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, ao tempo uma discreta arrecadação militar pouco utilizada no meio do aquartelamento, hoje pouco mais do que isso, como vamos contar. Mas foi a “sala de operações” do movimento que derrubou a Ditadura, já lá vão 33 anos. Um local para lembrar o sucesso da Revolução dos Cravos. Para gozo e fruição do Povo como nós.
[relatos do levantamento militar]
...
RE 1, 25ABR74, 03H15: Palavra de honra? Isso é porreiro, pá! Exultante pela facilidade da ocupação da Emissora Nacional, o capitão Frederico Morais, do CTSC, liga para o PC: – Daqui Maior de Lima 18. Informo ocupámos Tóquio sem qualquer incidente. – OK. Parabéns e um abraço. Do outro lado, o cap Morais não pousa o telefone, hesita e insiste: – Alô, Óscar. Peço informe se estamos sós ou se já houve outras ocupações. – Afirmativo quanto à segunda parte da pergunta. Não estão isolados: Mónaco e México já caíram nas nossas mãos. A “seca linguagem das transmissões militares” cede perante a boa notícia: – Eh pá! Palavra de honra? Isso é porreiro, pá! – Ok, aguentem firme. Está tudo a correr bem.
...
E sobretudo como este? Ouçam bem (ah se houvesse gravação, uma reconstituição, o texto deste diálogo, nas paredes nuas do auditório, por exemplo!):
– Como está, senhor ministro?
– Então ainda a trabalhar a uma hora destas?
– É verdade. É que tenho de me deslocar ao Alentejo e não estarei cá todo o dia, pelo que estou aqui a arrumar os papéis.
– Alguma coisa no Alentejo?
– Não, nada de importante. Mas interessa-me sobretudo ir até Beja, onde vou assistir a uma transmissão de comando e inspeccionar a Companhia de Ordem Pública. O comandante que lá está é muito amigo do homem do monóculo, a quem telefona muitas vezes. Por isso mandei mobilizá-lo para o Ultramar e coloquei lá outro de confiança, que hoje toma posse.
– Óptimo. E como é que está a situação? Corre tudo bem?
– A situação está sem alteração e perfeitamente sob controlo. Peço-lhe que não se preocupe, pois está tudo sossegado e não há qualquer problema em qualquer ponto do País. Se houvesse alguma coisa, era evidente que eu não ia hoje ao Alentejo, não acha?
– Claro, claro, só perguntei para ir para casa dormir descansado. Então não o maço mais. Boa viagem pelo Alentejo.
“ Eram três horas e dezasseis minutos. Tínhamos na mão três objectivos fundamentais para a informação pública e o QG/RMP, raras eram as unidades do Exército que em todo o território não rolavam na estrada ou estavam prestes a fazê-lo, havia vários quartéis onde os comandantes se encontravam detidos ou tinham a sua acção neutralizada, e… os mais altos responsáveis militares do velho regime preparavam-se para dormir, tranquilos, as horas a que se sentiam com direito!”
· Otelo Saraiva de Carvalho, major de artilharia, no seu blusão de cabedal, de pé, junto ao mapa de 1973 do Automóvel Clube de Portugal
· Amadeu Garcia dos Santos, tenente-coronel de transmissões, sozinho numa mesa, às voltas com os seus rádios, antenas e telefones.
· Fisher Lopes Pires, tenente-coronel de engenharia, com um telefone de discar, como eram todos naquele tempo, sempre com o cachimbo na boca, dizem os cronistas.
· Sanches Osório, major de engenharia, enviado por Vítor Alves como representante do Estado-Maior naquele grupo de comando, à esquerda de Lopes Pires, tomando notas.
· Luís Macedo, capitão de engenharia, responsável pela segurança do edifício, que protegeu com um perfeito “black-out”, com cobertores nas janelas, e organizara rondas permanentes no exterior: de pé, na única estátua de cera.
· Hugo dos Santos, major de transmissões, sozinho, ao lado, numa pequena mesa, com vários rádios.
· Vítor Crespo, capitão de fragata, de pé junto à porta do fundo, em uniforme de gala, azul-escuro, com botões dourados e o boné branco dos dias de festa Junto às paredes, armários, tão austeros como as mesas, com brochuras e encadernações, de ordens de serviço do quartel e outros documentos.
...
José Teles
(Imagens obtidas aqui e aqui )
2007/04/26
2007/04/04
Capela do Rato - 1972

A luta de um grupo de católicos, de que os presentes na fotografia faziam parte, assumindo-se nessa condição, contra a guerra colnial e contra a ditadura, foi em 1972 muito importante, por mostrar que Marcelo Caetano e o regime fascista contava com a oposição de uma parte significativa dos crentes católicos. [Ver um relato dessa luta no blog "Não Apaguem a Memória"]
2007/03/21
De que se fala quando se fala em Salazar?
Agora que Salazar parece em vias de ganhar pela primeira vez uma "eleição", e logo contra o Afonso Henriques, convém lembrar como eram as votações quando ele era vivo.
No que diz respeito à aprovação da Constituição de 1933, foi simples. As abstenções contaram a favor. A maioria foi esmagadora. Os portugueses nem precisaram de sair de suas casas para exprimir a sua "vontade".
Nas eleições legislativas o método também era infalivel. Nas eleições de 1957, por exemplo, Lisboa, na véspera da eleição, os responsáveis pelas mesas eleitorais foram chamados ao Governo Civil onde receberam a indicação do resultado da votação do dia seguinte com uma margem de erro de 2 %. Assim, na freguesia de São João da Pedreira o resultado devia ser 56 ou 57 %.
No dia seguinte houve guarda republicanos que andaram pelas mesas de voto a levar pacotes de votos de "guardas que estavam de piquete", que foram metidos nas urnas pelos presidentes das mesas. Mas isto teve uma relativa pouca importância.
Perto do fim, depois de assegurada a ausência de testemunhas inconvenientes, os elementos das mesas multiplicaram o número total de eleitores por 0,57 e dividiram o resultado pelo número de páginas dos cadernos eleitorais. Tiveram, assim, o número de eleitores de cada página que "deviam votar".
Procederam, então, sem se preocupar em lançar votos nas urnas, à operação de "compor os cadernos eleitorais", descarregando conscenciosamente nos dois cadernos o conveniente número de eleitores que "tinham" votado. A operação foi acompanhada de comentários do tipo: " Este é comunista, mas desta vez vai votar no governo".
Depois, enviaram para o Governo Civil um documento a dizer: "Percentagem de eleitores: 57 %." Mas não se ficaram por aqui: abriram as urnas, contaram os votos, e enviaram para o Governo Civil um outro documento a dizer. " Percentagem real de eleitores, tantos por cento" .
No caso concreto de uma mesa, a percentagem real de eleitores, incluindo os votos dos "guardas de piquete" e 50 votos riscados foi de 28 %, mas os elementos da mesa enviaram um documento a dizer que a "percentagem real", era de 30 %. É provavel que, quando chegasse ao Salazar, esta percentagem já fosse um bocadito mais alta.
Fui testemunha parcial destes factos em 1957. Uma outra testemunha foi o escritor Luis Pacheco a quem envio, 50 anos depois, as minhas saudações e que devia ser agora ouvido. Como comentador da "eleição de Salazar" e porque pode confirmar factos importantes para esclarecer um país que, 30 anos depois do 25 de Abril, ainda está muito mal informado.
Que, ao falar nas eleições do "antigamente", ainda fala em chapeladas, como se a fraude "dos guardas que estavam de piquete" e de uns tantos legionários fosse a mais importante. Salazar era muito mais subtil. Quarenta anos depois de morto, ainda engana o país.
E não só. Quando em Novembro de 1957 cheguei a França vi que os jornais franceses analisavam a situação portuguesa a partir do resultado de 57% de votos obtidos pelo governo nas últimas eleições legislativas.
António Brotas
2007/03/19
Passar a Fronteira a Salto (1)
Eram duas horas da manhã e estava escuro como breu. As sombras movediças dos arbustos recortadas no horizonte pareciam pessoas ou animais a aproximarem-se e desconfortavam mais os dezanove anos da Ana do que os meus vinte e oito já tidos por bastante adultos.

Conhecia-a desde a manhã, num encontro no Porto, em que me foi recomendado tomar conta da camarada, como competia à minha idade de maior experiência.
Eu e dezenas de outros militantes ficámos a dever então a nossa liberdade a Rogério de Carvalho. Só alguns, talvez algumas centenas, entre dezenas de milhar de prisioneiros torturados pelas polícias políticas do salazarismo, em meio século, conseguiram vencer essa prova que era afinal a fonte, quase exclusiva, das informações que davam à PIDE a possibilidade de conhecer e prender os que lutavam.
A Ana também ia para a União Soviética mas não sabia ao certo o objectivo. Disseram-lhe que iria frequentar um curso do partido mas não sabia de que curso se tratava. Nem podíamos, sem infringir as regras conspirativas, discorrer sobre tal matéria. O segredo foi desvendado em Paris. Levávamos o mesmo destino. E a nós, em Moscovo, haveria de juntar-se a "Leonor" uns 15 dias mais tarde
O passador não era nosso conhecido. Em geral era alguém de confiança do partido, sem ser seu membro e que estava ali, na sua profissão, para ganhar o seu dinheiro. Fora-me apresentado pelo Manuel da Silva, na esquina duma rua do Porto para nos podermos identificar em Bragança, ao fim do dia, em frente da igreja matriz.
— Poucas conversas — era a recomendação que ele me dera e provavelmente ao passador também.
Este era um homem de meia idade, enxuto de carnes e aspecto indefinido. Meio rural meio citadino. Esgalgado. De fugir à polícia, observei para a Ana, devagarinho. Duas ou três frases, foi tudo quanto lhe ouvi durante os trajectos citadinos e a longa marcha pelos caminhos agrestes da serra. De tempos a tempos, na montanha, fazia altos, mais para nosso descanso que dele. O passador sentava-se ou esperava de pé, não ao nosso lado como seria urbano e natural mas um pouco afastado como era talvez adequado para evitar conversas que, mesmo involuntariamente, acabam muitas vezes por denunciar identidades.
Manuel da Silva era o verdadeiro nome do funcionário do partido que veio ao meu encontro no Porto. Não nos conhecíamos e o seu nome só o vim a conhecer na primeira sede do Comité Central, em 1974, na Avenida António de Serpa, em Lisboa.
Manuel da Silva tinha então 54 anos de idade e vivia na clandestinidade há vinte anos. Como a Revolução demorou ainda oito anos chegou à democracia com o recorde de vinte e oito anos consecutivos na clandestinidade sem ser preso.
Foi responsável por tipografias, a elaboração técnica e a distribuição da imprensa clandestina. Agora era responsável pelo aparelho de fronteira para as entradas e saídas clandestinas de funcionários do partido. Alto, magro, prático e afável no trato.

O Manuel da Silva levou-me para os arredores do Porto de táxi, depois fiz um percurso num outro automóvel, de algum camarada, onde entrei e segui de olhos fechados talvez uma meia hora ainda que me tenha parecido muito mais porque sem paisagem o tempo alonga-se, coisa de que Einstein não se apercebeu na sua teoria da relatividade em que discorreu sobre tempo e espaço.
O nosso trajecto continuou depois a pé numa zona de pinhal ao encontro de outro funcionário que nos ia albergar em sua casa, durante os dois dias.
Quando estávamos sós, o que afinal foi a menor parte do tempo, conversávamos sobre os amigos e velhos conhecidos, actualizávamos informações sobre as nossas vidas, o que se podia contar delas.
Estava com a companheira e um filho muito loiro que era a alegria da casa. Era o Eduardo mas não foi ali que soube o nome dele. Então, nem ele próprio podia saber como se chamava para que numa mudança de casa por razões conspirativas, tivesse também de, incompreensivelmente (para uma criança), de mudar de nome.
O caso da tia e da sobrinha
— Ai camarada tens uma voz mesmo igual à de uma pessoa minha conhecida. Mas também não me estou a lembrar de quem seja.
A Leonor reconheceu a tia imediatamente mas não se identificou sem saber se estaria proibida de o fazer tendo em conta as regras conspirativas da compartimentação. Ficou muito nervosa e sem ser capaz de recuperar rapidamente a serenidade. A tia, que não sabia que o era, julgava que o estado de incomodidade da sobrinha resultava, tendo em conta a sua aparente e real juventude, da pouca experiência da clandestinidade (ignorava que ela já levava quatro anos de vida clandestina). Então mimava-a e conversava com ela criando familiaridade.
— Que livro é este que andas a ler? — e folheou o livro da “Leonor”.
— Mas eu conheço esta letra! — disse num murmúrio ao observar uma folha de papel no meio do livro em que a “Leonor” fazia anotações, enquanto fazia um olhar de espanto para a “Leonor”.
Foi então aí que a sobrinha não resistiu mais à emoção.
— Mas então não vês que eu sou a tua sobrinha! — disse-lhe abraçando-a de lágrimas nos olhos.
As compartimentações e segredos na clandestinidade fraccionam as ligações e os conhecimentos. Alguns camaradas, nomeadamente do Secretariado do Comité Central, sabem que a Luzia, com os pseudónimos de Alda e de Filomena e aqui nesta casa com a falsa identificação de Maria Antónia Botelho é a companheira do Armando, de pseudónimo Mateus ou Castro ou Jerónimo e que dá pelo nome nesta instalação de Augusto dos Santos Botelho e que é tia da Maria Machado que usa o pseudónimo de Leonor. Mas no labirinto da clandestinidade o Manuel Rodrigues da Silva não sabe que a jovem funcionária que aí vem, da organização de Lisboa, é filha dum seu amigo que não vê há muitos anos e de cuja vida mais não soube. E menos sabia que ela era sobrinha da Luzia ou sequer que aquela companheira do Armando, que ele apenas conhece por Botelho e sabe ser nome falso, é cunhada do seu amigo Pulquério. Por isso de tanto se compartimentar e se esconder se podem pôr coisas a descoberto e apresentar a sobrinha à tia como se de duas desconhecidas se tratasse. E se não é o tom de voz que não engana, nem a letra que se reconhece, se não são as emoções que às vezes prevalecem, a tia não ficava a saber que tinha estado com a sobrinha. E a sobrinha tinha ficado o resto da vida arrependida de não ter tido aquela grande alegria de abraçar uma tia, que se encontra, na clandestinidade, por um acaso raro e incontrolado. Clandestinidade onde todos pertencem à mesma “família” mas... família mesmo é outra coisa.
Um ano depois casei com a Leonor e foi então que soube daquela proeza do acaso. E que a companheira do Armando na tal casa clandestina dos arredores do Porto era afinal tia dela.
Após dois dias em casa do Armando, falso Botelho, voltei ao Porto, guiado pelo Manuel da Silva, o mais clandestino dos clandestinos, onde me apresentou a Ana num encontro de rua e que agora estava ali comigo, entre penhascos, numa noite fria de verão.
Como era de regra não levávamos nada connosco para o caso de alguém nos ver na zona raiana não pensar em emigrantes a dar o salto.
- Ah, não levam bagagem, é gente por aí em passeio!
Levávamos roupa de verão, e o que nos salvou, ou salvou a Ana, como adiante se verá, foi

Aí por essas três, três e meia da manhã, fomos acordados pela aproximação dum fantasma. Assim surgiu a nossos olhos estremunhados, o operativo e saltitante senhor "Joaquim" que alargava o olhar, sem nos ver, enroscados, ali no escuro. Conduziu-nos a um automóvel preto e antigo que, silencioso, de nós se aproximara. Dissemos boa noite ao condutor depois de entrar, mas não tivemos resposta. Como era tudo tão
estranho também não levámos a mal. Calados lá fomos até um cruzamento térreo, umas dezenas de quilómetros mais acima, mais dentro da serra, mais longe de qualquer sítio, para meu espanto, pois esperava ir até uma vilória ou aldeia ou o que quer que fosse de mais urbano. Despejados ali nada dissemos ao sair. Éramos carga clandestina. O passador tartamudeou qualquer coisa para dentro do carro que, tal como nos surgiu, silenciosamente se esfumou à distância. No escuro tinha o perfil dos táxis lisboetas dos anos cinquenta, Austins ou Morris pretos e altos, que cruzavam Lisboa em correria desabalada, em tempos de trânsito desafogado, fintando peixeiras de canastra à cabeça e pregão sonoro. Não ultrapassariam os cinquenta quilómetros por hora mas isso para as velocidades da época impressionava mais que os cem de agora.
Recomeçámos a longa marcha. O descanso nocturno entorpeceu-me as pernas mas o passo lesto do nosso guia não nos dava oportunidade para molezas. Depois de muito andar extinguimos o trilho que vínhamos percorrendo. De estrada passámos a caminhos e de caminhos a carreiros e agora tínhamos pela frente um campo pedregoso que pouco tempo depois se transformou em denso matagal. Depois de muito contrariar esta ideia que me matutava na cabeça fui forçado a concluir que estávamos perdidos. O passador acendia uma lanterna eléctrica despudoradamente, em campo aberto, espalhando labaredas faiscantes pela serra fora, denunciando-nos, sem se prevenir dos guardas fronteiriços.
— Está feito com a Guarda Fiscal, para abrir desta maneira as goelas à pilha, exclamei para a Ana, sem que ele me pudesse ouvir. Não lhe disse nada, apesar de achar excessivo tanto à-vontade. Continha-me. Afinal sabia lá eu as regras da passagem de fronteira a salto! O nosso guia procurava atinar com os caminhos enquanto nós balançávamos por cima do carrascal sem chegar com os pés ao chão. As folhas rijas e espinhosas dos carrascos arranhavam fundo as pernas tenras da Ana e foi aí que as minhas calças de reserva, apesar de finas, lhe valeram.
Começava a preocupar-me com a situação e a embrenhar-me em maus pensamentos quando fomos assaltados, por uma matilha de cães enfurecidos. Tenho de confessar que apanhei um grande susto. Não por ser do estilo medricas que mal vê um humilde e proletário rafeiro o toma imediatamente por temível fera. Mas pelo inesperado, porque eram grandes, porque eram uns quatro ou cinco, porque não os via bem, porque ladravam enfurecidos.
— Quem vem lá! Quem vem lá! — levantaram-se vozes, à mistura com o ladrar dos cães.
Estávamos agora num terreno liso, debaixo de grandes árvores que me pareciam castanheiros. Os homens estavam no chão enrolados em mantas a dormir e estava claro que se tratava de camponeses que dormiam ali para prosseguir os trabalhos do campo, manhã cedo.
— Chit! Chit! Aqui! Aqui! — respondeu aos cães o senhor Joaquim, ao mesmo tempo que batia com a mão na perna.
— É gente de paz, não há novidade, não há novidade — sossegou assim, os do chão, com voz firme de quem já está habituado a estes percalços, o nosso experiente companheiro.
Os camponeses calaram os cães e nós mal refeitos do susto lá seguimos na peugada do nosso perdido passador.
— Ai coitadinha, tão nova

O que não diria ela se soubesse mesmo ao que íamos! A mim não ligou. Nem eu nem a Ana nos deixámos impressionar. A nossa vida era outra e bem boa. Éramos revolucionários! Cidadãos do Mundo Novo, da Sociedade do Futuro, construtores privilegiados do sistema socialista que haveria de substituir o capitalismo opressor e libertar a humanidade. Tínhamos a honra e privilégio de ser comunistas. O passador não nos ouviu. Nem nós abrimos a boca, mas se tivesse ouvido os nossos corações teria pensado que éramos muito novos e sabíamos pouco da vida. Muito novos! Tudo é relativo. Com a minha idade, 25 séculos antes, já Alexandre da Macedónia tinha conquistado um império do tamanho do mundo.
— Pronto — disse ele — a estação é lá ao fim. Um gesto vago apontava à esquerda e tanto podia ser já ali ao virar da esquina ou uns quilómetros adiante naquela direcção. Lá teria feito a sua ideia a nosso respeito e terá concluído, que não éramos nenhuns meninos de coro nem criancinhas para nos dar a papa na boca. Agora que nos desenrascássemos. Levantou a mão a meia altura. Avancei um passo para a apertar, mas não, não era isso, era um adeus lacónico, pois virou-se logo e lá foi, passada rápida, até à primeira viela em que deixou o nosso caminho.
2007/03/18
Coruche e Couço
Acto de "boas vindas" no anfiteatro da CM de Coruche vendo-se na mesa a antropóloga Paula Godinho com o seu livro Memórias da Resistência Rural no Sul - Couço 1958-1962 (Celta Editora Oeiras 2001), Maria Barroso, o presidente da CM de Coruche, Dionísio Mendes e Ana Gaspar.
2007/02/19
Portugal de há 50 anos (1)
2006/12/20
2006/12/07
Tribunal Plenário da Má Boa Hora
"Em nome das vítimas dos Tribunais Plenários, dos mortos e dos vivos, saúdo os juízes do Tribunal da Boa Hora que quiseram activar a memória dos tempos sombrios. As vítimas que represento foram neste local gravemente ofendidas na sua dignidade e no seu próprio corpo. Avivar, hoje e aqui, a memória constitui, pois, um acto necessário e exemplar de cidadania.
Os presos políticos, mulheres e homens, que durante dezenas de anos pisaram a barra deste tribunal, não eram gente vencida. Tinham experimentado os perigos da luta contra a ditadura e o rigor da vida clandestina. Tinham suportado a prisão, os espancamentos, a tortura da estátua, os meses de isolamento nos buracos do Aljube ou em Caxias. Muitas vezes chegavam aqui ainda com as marcas da tortura.
Esta sala, que foi do Tribunal Plenário, era previamente ocupada por agentes da polícia. Um deles escrevia o relatório pormenorizado da audiência e não se coibia de comentar a actuação dos próprios juízes. Mas a polícia não podia impedir a presença de assistentes incómodos. Desde logo, a dos advogados que gratuitamente e com elevado risco assumiam a defesa dos réus. Depois, a das testemunhas que louvavam a conduta ética dos acusados e por vezes defendiam a justeza das ideias que eles professavam. Algumas testemunhas saíam directamente da sala de audiências para o calabouço. E havia ainda os olhos e os ouvidos dos que conseguiam vencer a barreira.
Os “julgamentos” começavam com a entrada do Promotor e dos Juízes do Tribunal Plenário. Entravam sem venda nos olhos e sem balança. Sabiam ao que vinham: julgar mulheres e homens cujos processos tinham sido instruídos, não por juízes, mas por agentes e inspectores da polícia política. E de que crimes eram essas mulheres e homens acusados? Do crime de exprimirem por palavras e escritos o seu pensamento; do crime de exercerem a liberdade de reunião e de associação.
Os Tribunais Plenários integravam-se no sistema de terror, legitimando-o.
No decorrer da audiência os acusados acusavam. A televisão não estava lá para abrir uma janela para o mundo; a imprensa silenciava; o país seguia cabisbaixo. Mas as vozes daqueles que aqui se ergueram acusando ecoaram fundo no coração de muitos portugueses. Não vou referir nomes. Alguns têm o seu lugar na nossa história. Hoje lembro somente aqueles que acusaram e de que ninguém fala. Por vezes agredidos e empurrados para o calabouço.
Estas paredes assistiram a muita agonia, a opressão, a desprendimento total das coisas terrenas, a gestos comoventes de sacrifício e dedicação aos outros. Mulheres e homens que nada tinham senão os corpos e a mente indicavam com o seu sacrifício que há momentos em que é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa.
Vinham de todas as camadas sociais mas predominavam os camponeses, os operários, os intelectuais e os jovens. Recordo-os a todos como pessoas nas suas diferenças sociais e políticas e queria com estas palavras erguer um longo mural que chamasse, um a um, todos os nomes.
Eles assumiam, letrados ou não, a dignidade antiga e quase sagrada de Sócrates perante os quinhentos juízes do tribunal de Atenas.
No final do espectáculo, o Tribunal Plenário condenava as vítimas a anos e anos de prisão, a que acrescentava as medidas de segurança de seis meses a três anos, renováveis tantas vezes quantas a polícia política decidisse com a dócil assinatura dos servidores do Plenário.
Renovo a saudação a todos quantos participaram nesta breve memória dos tempos sombrios. Mas as últimas palavras reservo-as para a primeira noite dos condenados depois da leitura da sentença: embrulhados nas mantas imundas, cortados da vida, sem outro futuro à vista que não o do cárcere e o da “fé”.
2006/12/06
Juizes da democracia branqueam juizes dos Tribunais Plenários
O último julgamento do tribunal plenário
"Tendo a Direcção-Geral de Segurança comunicado telefonicamente a impossibilidade de assegurar a condução dos réus a este tribunal, devido ao Movimento das Forças Armadas, adio "sine-die" o julgamento. "
In: DN de 25 de Abril de 1999, artigo de António Valdemar Bem informados do 25 de Abril... pela PIDE
Os Tribunais Plenários.

Gravura de Dias Coelho, assassinado por uma brigada da PIDE, numa rua de Lisboa, em 19 de Dezembro de 1961 [por gentileza da Fundação Mário Soares].
A sentença vinha já inscrita na acusação instruída pela própria polícia política. Ela investigava, procedia à detenção, interrogava sem limite nem peias, instruía o processo e determinava a pena a aplicar, que os juízes (?) do tribunal plenário aplicavam com obediência canina – incluindo as “medidas preventivas”, que determinavam a prorrogação automática da pena, de seis em seis meses, se a PIDE o achasse conveniente para “a segurança do Estado”.
No próximo dia 6 de Dezembro, pelas 17h30, na 6ª Vara Criminal do Tribunal da Boa-Hora, lugar de opróbrio para justiça portuguesa, pois aí funcionaram os famigerados tribunais plenários, vai ser descerrada uma lápide chamando à atenção do visitante para que ali, durante o regime ditatorial do Estado Novo, a dignidade dos homens e mulheres livres foi ultrajada por vis juízes e desprezíveis torcionários.
O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! considera um dever de memória a divulgação deste acto, por isso convida-vos a estar presentes na cerimónia de descerramento da lápide e a dar a divulgação que julgamos que este acto merece. Junto enviámos o programa da sessão que decorrerá a 6 de Dezembro próximo. "
2006/11/29
Almeida Santos: "Quase Memórias"
(Excertos, 2.° volume, pp. 66-70)
In Público 2006-11-28
Na véspera da partida da delegação portuguesa que ia iniciar em Dar-es-Salam as negociações com uma representação da Frelimo [ 15 de Agosto de 1975] recebeu-se em Lisboa a notícia, de fonte militar, de que uma companhia das Forças Armadas portuguesas havia sido “emboscada e aprisionada” por forças da Frelimo, em Omar, no Norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia.
Justamente indignado o Presidente Spínola exigiu que antes de dar inicio às negociações e como condição desse início a delegação da Frelimo apresentasse desculpas à delegação portuguesa, por essa traiçoeira atitude das suas forças.
Assim fizemos. Mas com surpresa nossa, Samora Machel começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar:
– Emboscada de Omar?! Uma companhia aprisionada?!...
Por fim fez-se luz no seu espírito:
— O quê? Aquela “entrega” dos vossos soldados?
E voltando-se para um qualquer assessor da sua delegação:
— Traz a cassete...
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida, e ouvi-la ficou a constituir uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.
O que nós ouvimos foi o registo sonoro de uma “entrega”, não apenas voluntária, mas insistentemente solicitada
-Vocês quem são?
(Veio a identificação.)
- E querem entregar-se porquê?
— Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!
Não garanto a exactidão das palavras — cito de memória — mas asseguro o sentido delas.
Seguiram-se os abraços, o “pega lá a minha arma, meu irmão”, etc., etc. É claro que não havia lugar a exigência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo.
Mal chegados; a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.
— Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete...
— Uma cassete?!
— É verdade! Uma cassete!
Logo se pediu um leitor de cassetes. Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás do seu inseparável monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? Se aquilo era para ele o que era para mim, inveterado paisano, o que não seria para o lendário cabo-de-guerra?... (...)
2006/11/25
O que foi o 25 de Novembro de 1975?
Nela procuro apresentar o confronto militar do 25 de Novembro como o culminar de um processo político e militar caracterizado pela sucessão de lances e respostas político-militares até um momento de máxima tensão e rotura. E não, portanto, um momento em que após maior ou menor preparação, os contendores em presença desencadeiam um golpe militar.
Do Público de 21 de Novembro de 2000:
Raimundo Narciso: "... A minha leitura desses acontecimentos é que a ordem aos pára-quedistas para a ocupação das bases parte da esquerda militar e tem o aval do PCP. Mas o que se esquece é o contexto, o que se estava a passar no próprio regimento de pára-quedistas, e seus antecedentes. O 25 de Novembro é só o culminar de uma situação, uma parada um pouco mais alta que o PCP e esquerda militar não conseguiram sustentar e que foi o momento em que as forças opostas, com um plano de operações prepardo acharam que podiam responder com uma acção vitoriosa. Há uma sucessão de ofensivas e contra-ofensivas, desde Maio, da esquerda revolucionária e das forças que se lhe opõem.
Público: - Pode explicar melhor?
RN - A 19 de Maio, o PS abandona o Governo, a 8 de Julho há uma resposta da esquerda: sai o Documento-Guia Aliança Povo-MFA - que é uma proposta de estrutura de organização política que os adversários apelidavam, de um novo corporativismo.
- A 10 de Julho, há a tomada do jornal "República" (acção de influência da UDP) e como resposta a esta efervescência revolucionária, no mesmo dia, a saída definitiva do PS do Governo.
- No dia 19 a manifestação do PS na Alameda e o pedido para que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves se demita. A 8 de Agosto, a esquerda militar e o PCP conseguem impor o V Governo Provisório.
- Há logo uma resposta: vocês tomaram conta do Governo mas vamos esvaziá-lo de poder. A cúpula do MFA, onde o PCP tinha poder, é reduzida ao chamado directório, onde Costa Gomes, Otelo e Vasco Gonçalves não se entendem e a operação salda-se numa derrota da esquerda.
Público.- Pelo meio aparece a FUR...
RN.- A esquerda em desespero pela perda de influência de massas, já com os ataques às sedes do PCP, perda de influência militar e sem possibilidade de aliança com o PS, cria a FUR [efémera e tácita aliança entre o PCP e forças "esquerdistas"], uma coisa inédita. Carlos Brito (membro do Comité Central e Comissão Política do PCP) e eu (membro do Comité Central do PCP) passámos uma noite inteira a negociar com a esquerda revolucionária [no Centro de Sociologia Militar com a iniciativa e a presença de militares do MFA mais radical] num ambiente verdadeiramente surrealista. Nesta altura, foram criados no Porto os SUV por militantes do PCP e outros partidos de esquerda, que apareceram como resposta ao saneamento pela hierarquia tradicional, recentemente reposta pela substituição do brigadeiro Corvacho pelo brigadeiro Pires Veloso, dos membros das Assembleias de Dinamização de Unidade. Foi uma explosão, fez-se uma enorme manifestação de civis e soldados no Porto, outra em Coimbra e duas em Lisboa, algo que o PCP considerou que não era de condenar, mas de apoiar. A situação era, na realidade, já de desespero mas a comissão política do PCP avaliou em comunicado, erradamente, que se tratava de um novo fluxo revolucionário. A seguir, em Setembro, há outra resposta que é a assembleia do MFA em Tancos, e em resultado a esquerda militar foi saneada [dos órgãos político-militares e de comandos militares]. Vem o VI Governo provisório. Depois surge o AMI, grupo de intervenção militar influenciado pela direita, e há uma resposta da esquerda, a Rádio Renascença, reocupada por forças da esquerda radical. A 7 de Novembro, os oficiais pára-quedistas vão às instalações da Rádio Renascença e fazem explodir o emissor. Segue-se, a 8, a resposta dos sargentos e soldados pára-quedistas, que recusam a presença na unidade de Tancos do chefe do Estado-Maior da Força Aérea [Morais da Silva] e tomam conta da unidade. No dia seguinte, há a grande manifestação do Terreiro do Paço afecta às forças que se opõem ao processo revolucionário...
P. - Estava-se à espera de um pretexto, de uma casca de banana?
R. - Todos os dias havia cascas de banana. A 10 de Novembro, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea decide retirar os oficiais de Tancos [200?] e isso cria uma situação de sublevação em toda a unidade onde ficam 5 oficiais, os sargentos e as praças com um comando paralelo. A 12, há a manifestação e o cerco da Constituinte. Não quer dizer que as coisas estivessem programadas nos estados-maiores de um e outro campo em confronto. Havia os planos estratégicos: recuperar poder e avançar a revolução e, do outro lado, suster o processo revolucionário, institucionalizar a democracia representativa ou, para as forças de extrema-direita, aniquilar o PCP e instalar um poder musculado. Mas o dia a dia obrigava os estados-maiores políticos e militares a gerir o processo "desorganizado" por mil e uma força civil ou militar, política ou social que marcava o compasso da revolução. No dia 19, o chefe do Estado-Maior da Força Aérea ordena a dissolução da unidade, e dá ordem aos sargentos e oficiais milicianos e do quadro permanente desta unidade da Força-Aéwrea para regressarem às suas unidades de origem no Exército. mas eles não abandonam o quartel que passa funcionar em auto-gestão. No dia 20, o Governo auto-suspende-se.
P.- O golpe podia ter ocorrido aí?
R.- A situação podia ter-se precipitado aí, podia ser essa a casca de banana, mas ainda não estavam maduras as condições. Em 21 de Novembro, há um juramento de bandeira revolucionário no Ralis [Regimento de Artilharia de Lisboa]. E a 23, há a luta pela conquista do batalhão de pára-quedistas que regressa de Angola. São militares que não viveram a revolução e desconhecem a "guerra" em que os para-quedistas, em Portugal, estão metidos. O bote da polícia marítima que faz o primeiro contacto com o navio que foi decidido não atracar ao cais leva um agente, um civil, do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea com uma mensagem para entregar ao comandante da unidade o ten-coronel Almendra, a preveni-lo de que a unidade não vai para o quartel de Tancos e para não deixar entrar no navio os sargentos que iam no bote, agentes dos para-quedistas sublevados de Tancos que pretendiam ganhar a tropa para o seu lado. Depois, nesse mesmo dia, há um comício de apoio ao VI Governo em Lisboa. No dia 25, a tropa pára-quedista está em polvorosa, foi-lhe cortada a água, a luz e a alimentação, acreditando em boatos de que agora é que os "contra-revolucionários" vão dar o golpe.
Nessa noite, há um arremedo de estado-maior da esquerda militar, ainda pouco consolidado, no SDCI, que tem ramificações insuficientes no Copcon e está em contacto com os pára-quedistas. Corre o boato que a Força Aérea ia bombardear. Portanto isto é um pretexto melhor ou pior para os "páras" saírem. É uma medida excessiva, porque não corresponde a uma real força, nem do PCP, nem da esquerda militar que não tem comandantes, nem dispositivo suficiente. Sair com um aparato destes pode ser tomado como um acto de guerra. A direita estava preparada e viram que havia condições para dar a resposta. A seu lado têm a legitimidade institucional, têm o apoio do Presidente da República, o que foi decisivo. Do outro lado o que há? Há o desaparecimento do Copcon... "