2014/04/12

ARA - O Corte das telecomunicações

 
Marcelo Caetano tinha finalmente conseguido uma importante vitória a NATO que se distanciava (na aparência, é claro) do regime fascista aceitou realizar a reunião ministerial em Lisboa. Estávamos em 3 de Junho de 1971.
 
A ARA achou oportuno participar nos festejos. Para mais com tantas dezenas de jornalistas estrangeiros vindos a Lisboa.
 
O plano era cortar todas as telecomunicações, deixar os jornalistas e agências de comunicação sem poder comunicar com o mundo. O êxito foi total. O país ficou isolado. O centro das notícias foi, não a "tão importante" reunião ministerial da NATO, mas o caos comunicacional e a existência de uma “oposição armada”, no caso a ARA.  
 A alma do "negócio" foi o Jaime Serra, no Comando Central da ARA e o seu irmão Alberto Serra, técnico na Central de Correios e Telecomunicações, na Praça D. Luís, em Lisboa, ali junto ao Mercado da Ribeira e que deu a informação preciosa: indicou o ponto por onde todas as comunicações passavam.
 
Lembrei-me de vos falar desta  “ação” da ARA não por causa do mais importante, o grande impacte comunicacional e político que ela teve, mas por causa de um ou dois episódios picarescos de que vos darei conta a seguir.
 
O António Pedro Ferreira transportou-me até ao local. Estacionou fora das vistas do Carlos Coutinho e do António João Eusébio a quem fui entregar umas vestes de empregados dos correios, uma pequena cancela em madeira para colocar no passeio  junto  da boca de acesso à câmara subterrânea onde dormiam os cabos das telecomunicações internacionais e afinal  também as nacionais, situada por baixo do passeio da rua que circunda o edifício dos CTT. Queríamos dar ao nosso “trabalho” um aspeto interno, de trabalho dos Correios. Entreguei-lhes também, já se vê, a carga explosiva com um sistema de retardamento, um relógio de pulso adaptado à boa causa que ali nos levava.  Eles dirigiram-se para a tampa de ferro no passeio, já vestidinhos, dispuseram a cancela para que nenhum tresnoitado transeunte se precipitasse naquela goela de comunicações. Eu e o Alberto Serra ficámos por perto para o que desse e viesse, à distância que nos pareceu regulamentar de uns 40 metros, com ar de que não nos conhecíamos, nem nós nem aqueles.

 
A argola da tampa de ferro, ferrugenta, teimava em não se levantar o Carlos puxava-a  com a ponta do bico de um forte gancho de ferro que o Jaime Serra me arranjara e a argola, contumaz, não tugia nem mugia. O Carlos considerou que para grandes males grandes remédios, equilibrou o forte gancho e usou-o como alavanca com uma resoluta pezada . O forte gancho  era, afinal, de ferro forjado e… partiu-se. Drama. Ação falhada por uma insignificância. Desespero. Avanço então para eles para os amaldiçoar? Não. Num estado pouco menos que apocalíptico explicam-me o que estava à vista, o gancho partiu-se! Partiu-se!! Respondi-lhes com ar calmo, como se tivesse previsto tudo em bola de cristal. Não há problema, vou buscar outro.  Olharam-me com um ar rancoroso, como quem olha para alguém que está a gozar com a desgraça.  Dêem uma voltinha por aí e reencontramo-nos dentro de meia hora. Corri ao Pedro Ferreira ao virar da esquina, fora de olhares e fui à arrecadação da Rua Maria Pia, a Alcântara, onde tinha um segundo gancho.
 
Parece mentira? Pois parece. Quando o Jaime Serra me entregou dois ganchos em vez de um eu observei: para quê dois? Dois é melhor que um. Nunca se sabe. Respondeu-me. Poderia ter deitado fora um mas não me parecia bem e guardei os dois. O que se partiu e o gancho salvador.
O João Eusébio tentou a sorte dele e sem ajuda de calcanhar de bota lá conseguiu levantar a argola e depois a tampa de ferro. Dispôs a cancela e o Coutinho enfiou-se chão dentro. Enquanto amarrava àqueles internacionais cabos de telecomunicações o trotil amigo, para nosso desespero aproxima-se deles, badalando chaves, a despropósito, um guarda noturno. Mau (porra! ou coisa mais apropriada, foi o que, baixinho disse para comigo) Avancei uns passos para o caso de ter de ajudar à festa. Mas o guarda noturno aproximou-se disse boa noite, companheiro de trabalhadores fora de horas como ele, espreitou para dentro maquinalmente, badalou o molho de chaves e lá foi à sua vida, de guarda noturno. Respirámos fundo.

E no fim, reposta no seu sítio a pesada tampa de ferro, reencontrámo-nos do outro lado do mercado, não demos efusivos e espalhafatosos abraços, apenas um fraternal, cúmplice e vitorioso aperto de mãos. Para não chamar a atenção de ninguém. Nem mesmo das atentas, gigantes e perplexas árvores do Jardim, olhando os homens cá em baixo, rentes ao chão, há um milhões de anos a deambular pelo inóspito planeta e ainda tão longe da perfeição.

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