Anabela Mota Ribeiro (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia) apresentam hoje na revista do Público uma excelente entrevista a Conceição Matos e Domingos Abrantes. Bastaria colocar aqui o link porque a entrevista está online mas como ao fim de certo tempo os conteudos são removidos, guardo aqui alguns trechos dela.
Mas vale a pena ler toda a entrevista apesar de grande. Por muitas razões e uma delas é porque eles são políticos. E nós precisamos de ter presente que nem todos os políticos pertencem à espécie que nos governa, gente amoral, inimiga do seu povo, carreistas sem escrúpulos e sem caráter. Não todos, é claro, mas a maioria é do reino da abjeção.
Não falemos mais de tal "espécie" para não contaminar o assunto que hoje me traz aqui, um exemplo de vida, de outras vidas, um outro mundo.
Eis alguns extratos:
Casaram em 1969. Mas antes
disso tiveram uma vida. E depois de 74 tiveram outra. E antes dessas tiveram vidas
paupérrimas, onde crescia a revolta e, estranhamente, havia espaço para a
felicidade. Conceição Matos e Domingos Abrantes usam nomes ternos para chamar o
outro. Nomes que surpreenderiam quem os conheceu, de aço, na luta antifascista.
….
Quando diz que se
ligaram, quer dizer que começaram a viver juntos?
DOMINGOS — Sim, tornámo-nos
marido e mulher. Não no papel, mas pronto. Instalámo-nos provisoriamente numa
casa de camaradas legais. Depois alugámos casa na Amora, na Costa da Caparica e
no Montijo.
Ligaram-se depois da
sua fuga de Caxias no carro blindado de Salazar que tinha sido oferecido por
Hitler (1961). Falaremos da fuga mais tarde. Quando é que casam?
CONCEIÇÃO — Casámos em
Peniche, em 1969.
DOMINGOS — No tempo do fascismo, como legalmente não éramos casados, ela não me
podia visitar. Estivemos quase cinco anos sem visitas.
Tinham
alguma maneira de comunicar?
DOMINGOS — Naturalmente
cifrada.
CONCEIÇÃO — Uma vez, eu estava presa em Caxias, ele em Peniche. O Domingos
tinha escrito estas palavras: “Na minha frente, tenho a fotografia dela. A vida
a seu lado era mais bela e mais fácil. Quero-lhe muito, muito, muito.
Transmite-lhe beijos e a gratidão do meu amor profundo.” Não falava em nomes,
nem meu, nem dele. Só por isto, não me deram a carta. No entanto, sabiam
perfeitamente que éramos marido e mulher.
…
Como é que
se está quase cinco anos sem ver a outra pessoa, sem um contacto directo (a
vossa comunicação resumia-se a cartas enviesadas), e se consegue manter um
contacto com a cabeça do outro, o coração do outro, o mundo do outro?
DOMINGOS — Conhecemo-nos
numa determinada circunstância, sabíamos os riscos que corríamos, estávamos
preparados. A ligação afectiva ou existe ou não existe. A nossa era forte.
Como é que pensava
nele (o Domingos preso, a Conceição cá fora)? A segunda prisão do Domingos é de
65 a 73.
CONCEIÇÃO — Estava sempre a
pensar nele. Sabia que não o podia ver, mas ia todas as semanas a Peniche.
Tentar. Estava com as outras famílias. Angariava coisas para os presos,
assinaturas para protestar no Ministério da Justiça.
Fazer
isso era uma maneira de estar ligada a ele.
CONCEIÇÃO — A ele e à luta
e às outras pessoas. Tínhamos de ver qual era o piso que tinha mais
dificuldades, mandar coisas para o pavilhão que tivesse mais faltas. Todas as
semanas ia com a minha madrinha ao supermercado. Ela vivia bem e perguntava-me
de que é que precisavam. Queijo, isto e aquilo. Muitas vezes, coisas que eram
para o Domingos não chegavam ao Domingos.
...
Era um tempo de
mortalidade infantil muito alta. Os seus irmãos morreram crianças?
CONCEIÇÃO
— A minha mãe teve 16 filhos. Eu conheci sete, contando comigo. Sobreviveram
cinco. Morreram de doenças e necessidades. Mais tarde fiquei tuberculosa.
Estive internada no sanatório, três meses. Tinha 18 anos. Consequência da vida
difícil que estava para trás. Outra coisa que não disse: era um meio em que
porta sim, porta sim, havia gente do partido. Não era preciso dizer Partido
Comunista. Era aquele.
DOMINGOS — A vida nos bairros operários era terrível. Leite?, já era adulto
quando bebi leite pela primeira vez.
Com que é que
sonhavam quando eram crianças?
DOMINGOS — Isto hoje será
difícil de entender, mas considero que tive uma infância feliz.
CONCEIÇÃO — Eu também.
DOMINGOS — Os meus pais eram pessoas paupérrimas, mas eram capazes de fazer
todos os sacrifícios para dar pequeninas coisas aos filhos. A minha mãe era uma
mulher de tipo prático. O meu pai era mais racional, com moral elevada. No
Natal púnhamos os sapatinhos na chaminé.
CONCEIÇÃO — Nunca pus.
DOMINGOS — Um Natal, o meu pai disse: “Não ponhas o sapato que não vai aparecer
nada.” Não acreditei. No dia seguinte, não estava lá nada. Porque é que digo,
então, que foi uma infância feliz? Os pais saíam para as fábricas e os miúdos
viviam em bandos. Jogávamos à bola, íamos para a praia (as docas). O dia
inteiro entregues a nós próprios. Um grande espírito de solidariedade. Uma
marca destes bairros: a solidariedade entre vizinhos.
…
O que era o seu
pequeno-almoço quando era criança?
DOMINGOS — Um café de
chicória com pão. Manteiga, não me lembro de ter comido.
CONCEIÇÃO — Em minha casa, café de cafeteira. Ficava a borra no fundo. A minha
mãe já tinha alguma idade e nós dizíamos: “Ah, mãezinha, passámos tanta fome.”
E ela: “Filhos, não digam isso. Nunca vos deixei passar fome. Encheram sempre a
barriguinha de sopa.” Não era a sopa que hoje comemos..., grossa, com feijão.
Era um caldo com meia dúzia de hortaliças.
DOMINGOS — Uma vez o meu pai foi despedido. Sensação terrível. É como desabar
um prédio. Posso imaginar, hoje, a situação de muita gente. Eu, felizmente,
nunca passei por isso, mas havia miúdos do meu bairro que iam à Sopa do
Sidónio.
….
Sabemos que não
quebraram na cadeia, não falaram. Pergunto-me sempre onde é que estas pessoas
se fizeram tão resistentes, tão valentes.
CONCEIÇÃO — Não sabia que
era valente. Vou contar-lhe uma história. Tinha uma amiga no Barreiro que era
muito combativa. Um ídolo. Íamos juntas para as manifestações, ela sempre na
primeira linha. Entretanto, soube que tinha sido presa e que tinha falado. “Se
ela falou, que é que vai ser de mim?” Comecei a ter tantas dúvidas... Sou
presa, 1965. A PIDE arromba a porta com pé de cabra, entra, pistolas apontadas
ao meu peito. “Mãos ao ar!” Eu tive a certeza (não podia ter a certeza..., mas
tinha a certeza) de que não ia falar. Uma coisa em mim...
Era a zanga, a fúria
contra os pides? O que é que crescia em si e a fazia pensar que não falaria?
CONCEIÇÃO — Não podia trair
o partido. Não podia falar de outras pessoas que, além do mais, também iam ser
torturadas.
Como é que o
Domingos sabia que era valente?
DOMINGOS — O termo
“valente” não sei se é adequado.
Não? Não se trata de
valentia?
DOMINGOS — Já perguntaram à
Conceição se se considerava uma heroína. É uma questão de dever. Uma pessoa que
é presa tem um dever. Assumiu um compromisso para com os seus camaradas, os
seus ideais, tem o dever de os defender.
…
Na sua primeira prisão, em 1965,
foi alvo de uma violência e uma tortura humilhantes. Foi interrogada na António
Maria Cardoso, esteve em Caxias e depois foi novamente interrogada na sede da
PIDE. Como é que era vista dentro da cadeia pelas outras camaradas?
CONCEIÇÃO — Com um certo respeito. Estive muito tempo isolada. Fiquei 17
dias numa cela, sem nada.
Como sabe que foram 17 dias?
CONCEIÇÃO — Com a unha, riscava os dias num armário. Estava todos os dias a
pensar: “Quando é que me vêm buscar?” Vi passar uma carrinha e pareceu-me ver o
Domingos.
DOMINGOS — Ela não sabia que eu estava preso.
CONCEIÇÃO — Parecia a cara dele, mas estava careca.
DOMINGOS — Tinham-me rapado o cabelo.
CONCEIÇÃO — Depois da tortura do sono, espancamento, de me obrigarem a fazer as
necessidades no chão, de serem limpas com a própria roupa... Iam despindo a
minha roupa, peça a peça. Queriam obrigar-me a levar a roupa suja para a casa
de banho, mas não levei.
Obrigaram-na a urinar e defecar na sala de
interrogatório. Quanto tempo durou esse interrogatório?
CONCEIÇÃO — Três dias e três noites. Uma dizia: “Tenho vergonha de ser
mulher. Não vai à casa de banho porque não quer. Fale e pode ir.” Logo, eu é
que era culpada de não ir à casa de banho. Voltei para Caxias. Ouço na cela a
bater na parede. Sabia que se comunicava assim. Nas pancadas perguntaram: “Tens
um selo que vendas a um camarada nosso?” O que perguntavam logo: quem és tu?,
onde foste presa? Disseram-me que no Montijo tinha sido preso um camarada muito
responsável. Comecei outra vez a abanar... Se calhar o Domingos estava mesmo
preso. Mas não tinha certezas nenhumas. “Foste torturada?” Contei. E
espalharam.
Incomodou-a que se soubesse?
CONCEIÇÃO — Não, não incomodou. Até foi bom. A minha família não sabia de
mim. Perguntaram: “Falaste?”, “Não”, “Coragem hoje, abraços amanhã.”
DOMINGOS — Há agora uma peça de teatro com este título.
Essa frase era só uma saudação ou também funcionava
como senha?
CONCEIÇÃO — Era só uma saudação. (Sabes como é que tive a certeza de que
estavas preso? Pela Sofia Ferreira [dirigente do partido], que passou por mim
no corredor e me disse.)
A PIDE sabia que era comum, com a tensão emocional,
que aparecesse a menstruação. No documentário de Susana Sousa Dias, 48, várias
mulheres falam nisso. Era uma humilhação de género.
CONCEIÇÃO — Eu tive a menstruação. E não tinha com que me limpar. O Tinoco
dizia: “Ele está muito preocupado que lhe venha a menstruação e não tenha
pensos higiénicos.” Ele — o Domingos. Os espancamentos (e tive muitos), a gente
aguenta. Os pontapés, os murros, o flash nos olhos. Agora, aquelas torturas
morais... a mim doeram-me muito mais. Doeu-me terem-me despido à frente
daquelas pessoas. Entraram todos, dez. Tentei esconder-me atrás de uma mesa,
mas a pide Madalena empurrou-me para o meio da sala. Isto depois de me
espancar: ‘Fala, sua puta. Não te rias’ Chora, tens de chorar’.” Queria
obrigar-me a chorar!
E nunca fraquejou. Pensou em quê? Apoiou-se em quê?
CONCEIÇÃO — Lembrei-me de um livro que tinha lido há pouco, Arco-Íris, da
Wanda Wasilewska. Era um livro sobre uma moça na estepe, grávida, a baioneta
atrás. Comecei aos gritos: “Um, dois, três, quatro, dez. Dez monstros, dez
canalhas, bandidos. Mas o povo há-de vingar-se.”
Foi diferente na segunda vez em que foi interrogada?
CONCEIÇÃO — Dessa vez, despiram-me completamente. Na primeira vez, tinha
ficado em combinação. Passados uns dias mandaram-me a roupa suja num papel
pardo. Tive de a lavar no lavatório. Não tinha mais nada para vestir.
…
DOMINGOS — Aquilo é passado.
Interviemos numa revolução, vimos o resultado de uma luta. A realização de um
sonho ajudou a superar o que correu mal. O 25 de Abril restituiu-nos a vida.
Passámos a ser um casal normal. Vamos ao cinema, aos comícios, temos convivências,
vemos a família. Um revolucionário, a sua alegria é o empenhamento. Fomos
felizes, à nossa maneira, nesta batalha.