O Campo de Concentração
do Tarrafal ganhou no imaginário dos que em Portugal lutavam contra o regime
fascista um lugar à parte como símbolo da pior repressão da ditadura que
dominou o nosso país durante meio século.
Em Portugal tínhamos o forte de Peniche, o forte de Caxias, o Aljube, e
sobretudo a sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso em Lisboa como locais da
repressão e da tortura a que dificilmente escapavam os que em Portugal mais se
destacavam na luta por uma vida melhor, pela liberdade e pela democracia.
Mas a todos esses locais se sobrepunha, na imaginação dos antifascistas,
como centro do horror, o campo de concentração do Tarrafal. E esse lugar
longínquo agigantava-se pela distância, que adensa o desconhecido, pelas
notícias da exposição à insalubridade, à doença, à humilhação, ao sadismo de
quem controlava a vida e a morte dos presos políticos.
Hoje estou aqui, onde se situava essa prisão, num simpósio internacional
com o alto patrocínio do Senhor Presidente da República da República de Cabo
Verde, num território que conquistou a independência com a luta do seu povo
apesar deste e de outros Tarrafais. Estou aqui pela primeira vez, a conhecer a
bela ilha de Santiago, a observar a acolhedora vila do Tarrafal a refazer as
ideias feitas sobre esta parte de África, terra no meio de tanto mar, a
comprovar que todas as terras, são boas ou más conforme o uso que delas os
homens fazem.
2- Os Primeiros testemunhos
Conheci o Tarrafal,
pelas imagens que dele me deram, dois antigos prisioneiros para mim muito
especiais. O primeiro testemunho foi-me dado por Francisco Miguel.Encontrava-me
em 1968 a viver na clandestinidade, como quadro do PCP, escondido no anonimato
da grande cidade de Lisboa, quando recebi na casa clandestina que alugara,
Francisco Miguel membro do Comité Central do PCP, que aos 60 não se resignou a
viver na emigração e insistiu em regressar clandestinamente a Portugal para
lutar contra a ditadura fascista, e em lutar na organização que estávamos a
criar para a realização de acções armadas e que veio a ser a Acção
revolucionária Armada – ARA (1) . Francisco Miguel
já tinha passado mais de 21 anos preso, nove dos quais no Tarrafal. De Junho de
1940 a Janeiro de 1946 e de Janeiro de 1951 a Janeiro de 1954.
Enquanto não alugou uma
casa apropriada para viver com identidade falsa viveu comigo e a minha mulher
cerca de um mês, esta foi a oportunidade para me falar da sua vida de luta, das
suas quatro fugas da prisão em Portugal a última das quais no célebre automóvel
blindado de Salazar, oferecido pela Alemanha nazi, e que passara a fazer parte
dos veículos da prisão do Forte de Caxias, para me falar dos seu martírio no
campo de concentração do Tarrafal, da tortura que era a “frigideira” e de tudo
o que hoje é bem conhecido e tornava a vida neste campo uma morte
em vida. Era um homem de rara coragem e espartano na sua vida pessoal. Teve a
singularidade de ser o último preso político português a deixar o Tarrafal. Por
aqui viveu ainda seis meses sozinho no limitado território do campo até à sua
partida para Lisboa. Foi a minha primeira informação dada por quem viveu o
Tarrafal por dentro e que está ilustrada nos seus dois livros de memórias (2).
Outra fonte indirecta do
meu conhecimento da vida no campo do Tarrafal foi Edmundo Pedro aqui presente a
participar neste simpósio já com a bonita idade de 90 anos e que foi um dos
estreantes do Campo, em 29 de Setembro de 1936. De entre tantos jovens aqui
sacrificados ele era o mais jovem deles, com 17 anos, e com a singularidade de
aqui estar preso com o seu pai, Gabriel Pedro, também ele homem de indómita
coragem. Dos seus relatos e da leitura empolgante do seu livro “Memórias. Um
combate pela Liberdade”(3) fica-se com um retrato vivo do que
foi a vida, o sofrimento, a coragem, a tenacidade na luta pelas grandes causas
da esmagadora maioria dos presos que souberam resistir com dignidade exemplar
às mais brutais tentativas morais e físicas para os vergarem aos ditames do
fascismo.
Ele falará aqui bem
melhor que eu dessa experiência de luta e do heroísmo dos que aqui souberam
resistir, por isso apenas evocarei a memória do seu pai Gabriel Pedro outro dos
estreantes deste campo prisão. Gabriel Pedro é outro exemplo de inaudita
coragem, e determinação na luta contra o regime do “Estado Novo”. Participou
com o filho e outros prisioneiros numa tentativa de fuga do campo que, como as
outras, não teve sucesso. Conheci-o em 1970 num encontro clandestino numa noite
de Outubro de 1970 junto ao Porto de Lisboa para um reconhecimento que nos
permitisse executar daí a dias com outros companheiros, a primeira acção armada
da ARA, a sabotagem do navio Cunene o mais moderno da frota mercante portuguesa
de então, dedicado à logística das guerras coloniais. Gabriel Pedro estava
então a viver com a mulher e a filha em Paris, depois de uma vida de luta e
prisões, toda ela um calvário de sofrimentos. Mas a sua determinação em
combater o inimigo de sempre levou-o a pedir para participar na primeira acção
armada da ARA, em que teve, aliás, uma participação decisiva, tanto mais de
admirar porquanto se tratava de um homem que já tinha 70 anos de idade.
3- O contexto Histórico
da Abertura do Campo de Concentração do Tarrafal
A criação do campo de concentração do Tarrafal surge num contexto histórico
de Portugal que remonta a 1926, ao golpe militar de 28 de Maio, que pôs fim à
1ª República portuguesa, iniciada em 1910 e que impôs uma ditadura que viria a
dominar Portugal durante quase meio século. O ditador Salazar era um admirador
do fascismo de Mussolini e apoiante de Hitler. Era no entanto um fascista
sui-generis. Ex-seminarista muito ligado à Igreja era um académico rural, de
mentalidade retrógrada, mais dado à violência mortificante sim mas dissimulada,
até porque noutro contexto, do que aos brutais morticínios de Hitler ou às
atléticas demonstrações de terror do Duce italiano. A onda
fascista na Europa deu asas ao regime de Salazar e em 1936 o golpe militar de
Franco que a breve trecho, com o apoio de Mussolini e Hitler venceu e pôs fim à
República em Espanha, deu novo alento e arrogância ao fascismo de sacristia de
Salazar que colaborou activamente nas chacinas dos franquistas espanhóis não
apenas durante a guerra civil mas depois na perseguição e entrega a Franco de
espanhóis que tinham procurado refugio em Portugal.
O regime saído do golpe
militar de 28 de Maio de 1926 não se consolidou pacificamente e sofreu
sucessivos sobressaltos o maior dos quais terá sido o protagonizado pelo
General Sousa Dias (4). Ele é o chefe da revolta de 3 de
Fevereiro de 1927 no Porto e volta a ser o chefe da revolta da Ilha da Madeira
em 1931, com os seus prolongamentos nos Açores e na Guiné.
À fase das revoltas
republicanas e militares – o reviralho - seguem-se ainda ameaças vindas dos
sectores operários anarco-sindicalistas e comunistas como é o caso da tentativa
de greve geral e levantamento armado de 18 de Janeiro de 1934 com particular
incidência entre os operários vidreiros da Marinha Grande. Depois é a vez de
grandes movimentações e greves operárias nos anos 40 dirigidas pelo PCP.
Preocupado com a
resistência interna ao auto denominado Estado Novo e sentindo as costas quentes
com o fascismo em maré alta na Europa a ditadura portuguesa engrossa a
repressão e decide-se pela criação do campo de concentração na Achada Grande do
Tarrafal. Não foi único, outros campos prisionais foram criados em Angola e
Moçambique. Aliás a prática do desterro para as colónias não era nova. Aqui
mesmo em Cabo Verde morrera desterrado o já referido General Sousa Dias, em
1932 em S. Vicente (4). O Campo do Tarrafal vinha na linha dos campos de
concentração hitlerianos ainda que, é claro, não se possam estabelecer
comparações do Tarrafal com os campos de extermínio nazis.
4 - O Campo de
Concentração do Tarrafal de 1936 a 1954
O Presídio de Chão Bom do Tarrafal foi inaugurado em 29 de Outubro de 1936
com a chegada de 152 presos políticos. As suas profissões e origem social, dão
uma importante indicação das camadas da população que mais enfrentam o regime e
concitam a sua sanha persecutória.
A maioria dos presos
políticos que inauguram o presídio são muito jovens e entre eles estão 51
marinheiros da revolta de 8 de Setembro de 1936 dos navios Dão, Afonso
de Albuquerque e Bartolomeu Dias, e 57 operários da tentativa de greve
geral de 18 de Janeiro de 1934 contra a legislação de controlo dos sindicatos
que o chamado “Estado Novo” então publicara (5). Predominam os
operários, estão dirigentes políticos comunistas, anarquistas, quadros
revolucionários do movimento sindical. Entre eles estão alguns dos principais
ou futuros dirigentes políticos da esquerda revolucionária. Bento Gonçalves
secretário-geral do PCP, Mário Castelhano dirigente anarco-sindicalista, Júlio
Fogaça, Pedro Soares quadros comunistas, Edmundo Pedro e Sérgio Vilarigues,
quadros da juventude comunista.
Um conjunto de
documentos do dossiê da PIDE que consultei no arquivo nacional da Torre do
Tombo (6) oferece-nos um retrato eloquente a vários títulos dos presos
políticos existentes neste campo no ano de 1939 e que anexarei a esta intervenção.
Faculta a identidade de todos os presos, profissões, idades, indicação dos que
morreram nesse ano, situação jurídico/prisional, revela-nos o movimento
impressionante dos presos doentes, dos dias de castigo infringidos a cada um na
tristemente célebre “frigideira”. Num desses documentos de arquivo, um
relatório da sub-delegação da PIDE de Cabo Verde para a delegação de Angola e a
sede em Lisboa fica-se a saber que no início de 1939 existiam no Campo 187
presos, que a eles juntaram-se durante esse ano mais 27, um saiu e outro
faleceu, Fernando Alcobia. No fim de 1939 existiam no campo 212
presos. Eu acrescentaria 212 vivos e 11
mortos, tantos eram os que aqui faleceram desde a abertura do campo
2 anos antes. De facto no campo do Tarrafal o 1º ano de vida foi o maior ano de
morte. Em 1937 morreram, melhor seria dizer, foram mortos, com violência física
e psicológica e falta de assistência médica sete presos do total de 32 que
viriam a morrer neste campo, os dois últimos dos quais em 1948.
Da totalidade dos presos
existentes em 1939, 53% são proletários, 23 % são trabalhadores dos serviços,
20% são marinheiros, 3% são estudantes 1 é oficial das forças armadas e 1 é
advogado.
Não podemos extrapolar
estas percentagens para a totalidade dos presos políticos nas prisões
portuguesas no fim dos anos 30 nem esta amostragem pode retratar com fidelidade
o envolvimento de outras camadas da população na resistência ao regime, mas em
todo o caso estes números são eloquentes sobre quem se abatia a pior repressão
e sobre quem naturalmente mais lutava contra o poder em Portugal. Se 212 eram
os presos em 1939 a totalidade dos portugueses que passaram pelo campo do
Tarrafal chegou aos 340.
Para o fim do regime a
composição social das camadas em luta contra ele altera-se bastante. Nos anos
60 e até 1974 apesar de a participação peso e determinação de luta do
proletariado industrial e agrícola ser incontornável aumenta muito o peso dos
estudantes, de intelectuais, de camadas média da população. Um factor novo e
decisivo para a queda mais rápida do regime é a guerra colonial. Se a luta dos
portugueses e entre eles uma parte dos militares contra as guerras coloniais
ajuda os movimentos de libertação das colónias a acelerar a sua vitória a luta
dos povos de Cabo Verde e Guiné Bissau, de Angola e Moçambique, pela sua
independência teve a maior importância para acelerar a queda do regime
português.
Este campo de Chão Bom
no Tarrafal, ao irmanar na repressão portugueses e africanos das ex-colónias
portuguesas foi aliás o exemplo paradigmático de que a luta de uns era também a
luta dos outros.
O exame à situação
jurídico-criminal dos presos do Tarrafal no ano de 1939 é também reveladora de
como o Estado Novo não se poupava a fazer leis que dessem uma imagem de
legalidade à ditadura. Vejamos o que se passava com a situação dos presos em
1939 através de um relatório do arquivo da PIDE na Torre do Tombo.
Dos 212 presos do
presídio do Tarrafal 124 encontravam-se em cumprimento de pena mas 34 já a
tinham cumprido. Entre eles estão já conhecidos ou futuros dirigentes
comunistas como Alberto Araújo, Júlio Fogaça, Militão Ribeiro, Sérgio
Vilarigues, Américo de Sousa. 29 presos não tinham sido julgados como era o
caso de Edmundo Pedro inscrito neste rol, e 20 estavam presos sem julgamento
nem processo. Havia ainda 3 presos com processo no Tribunal Militar Especial e
2 com processo pendente.
Neste inventário geral
de 1939 ficamos ainda a saber que para dirigir e guardar o Campo e os presos
Lisboa colocara aqui um director o capitão João da Silva, o terceiro director
desde o início do campo, e que para aqui bem executar as ordens de Salazar
tinha feito um estágio na Alemanha nazi. O director tinha um adjunto, também
capitão e a seguir na hierarquia surgia um médico o célebre Esmeraldo Prata que
os presos consideravam mais assassino que médico.
Na estrutura seguia-se o
chefe dos guardas Henrique Sá Seichas e 17 guardas. O restante pessoal era
constituído por um enfermeiro, um motorista, um lampianista, uma profissão que
a electricidade fez desaparecer e um servente.
Além desta estrutura
interna de 25 elementos havia ainda nas proximidades da colónia penal o quartel
da 1º companhia indígena de Infantaria Expedicionária de Angola sob o comando
do capitão Numa Pompílio Correia com funções de guarda e vigilância dos presos.
Presos sem julgamento,
sem processo, ou com a pena cumprida são bem o exemplo de como as leis apesar
de feitas à medida da conveniência dos próceres do Estado Novo eram normas que
o Governo e a PIDE cumpriam ou não cumpriam conforme as conveniências.
5 - O Campo de
Concentração de 1961 a 1974
No já referido arquivo da PIDE e também no de Oliveira Salazar estão
abertos ao público muitas centenas de documentos sobre o Tarrafal quer
relativos ao primeiro quer ao segundo período da sua existência. A reabertura
do campo é feita pela portaria nº 18.539, assinada pelo ministro do Ultramar,
Adriano Moreira e publicada no Diário do Governo com a data de 17 de Junho de
1961 cujo primeiro ponto diz:
“É instituído em Chão
Bom um campo de trabalho”.
Nela se refere que “o pessoal necessário ao funcionamento do campo deverá
ser recrutado em regime de comissão entre os servidores da província de Angola
que suportará todos os encargos.”
Como curiosidade
registe-se que o Ministro que metia num campo de concentração os seus
adversários políticos pôde usufruir no regime democrático português da
oportunidade de ter uma carreira política e chegar a ser deputado.A guarda aos
presos nesta segunda vida do Campo do Chão Bom ficará a cargo de um pelotão de
infantaria do comando de um tenente, com 3 sargentos e 26 praças
aquartelado no Tarrafal. Não menos interessante é o ofício do Director da PIDE
da “província” de Angola ao Inspector da PIDE em Cabo Verde um mês depois. Nele
se recomenda que “de futuro o presídio que foi criado no Tarrafal, deve ser sempre
designado pelo seu nome oficial que conforme a portaria nº 18.539 de 17 de
Junho findo [ 1961, portanto] é “Campo de Trabalho de Chão Bom”.
Mas a máquina
burocrática padece de algumas desafinações. O Governador Geral de Angola,
General Deslandes, com os carimbos de confidencial e urgente interpela o
Ministro do Ultramar Adriano Moreira. Refere que 50 cidadãos (brancos e
mestiços) detidos à ordem da PIDE em Luanda vão ser “removidos” para Chão Bom
em Cabo Verde - sem prévio julgamento ou simples formação de culpa – e faz o
reparo de que “são actos que salvo melhor opinião, não têm apoio
legal.”
Receia o Governador de
Angola, no mesmo ofício, que o julgamento necessário para respeitar a lei
deveria ser em Lisboa pois receia as consequências do julgamento em Luanda e
tendo em conta a situação económica e social de alguns teme ainda que a
“removê-los” para Chão Bom em situação ilegal eles possam recorrer ao habeas
corpus.
Três anos depois um
ofício da delegação da Pide de Angola, de 22 de Abril de 1964, para o director
em Lisboa tratando da inconveniência da transferência de presos da Guiné para
Chão Bom em Cabo Verde dá colateralmente a informação de que no campo de
prisioneiros do Cubango em Angola se encontram 874 presos. Número
impressionante e revelador das centenas e milhares de presos espalhados por
diferentes campos e por todas as colónias portuguesas para reprimir os
movimentos de libertação das colónias.
Grande parte desta
correspondência entre delegações da PIDE e entre a PIDE e o director do Campo
de Chão Bom ocupa-se da censura à correspondência entre os presos e suas
famílias, ao desvio dessa imprensa, a tentativas para impedirem visitas de
família a presos que não dão sinais de arrependimento e consideram
“completamente irrecuperáveis”, do desvio de livros e até de dinheiro enviado
aos presos.
Em 3 de Dezembro de 1968
o director da prisão de Chão Bom, Eduardo Vieira Fontes, comunica ao chefe da
subdelegação da PIDE de Cabo Verde que lhe vai “remeter os livros e discos que
vieram endereçados ao recluso José Vieira Mateus da Graça, (o escritor Luandino
Vieira) e foram interceptados devido ao seu conteúdo de carácter
político-subversivo.”
E que livros e discos
eram esses que poderiam atentar contra o novo rumo que a PIDE queria impor ao
espírito de Luandino Vieira? Era a Praça da Canção de Manuel Alegre, “ O
sentido e a forma da Poesia Neo-realista” de Eduardo Lourenço e o disco de
Adriano Correia de Oliveira “Trova do vento que passa”. (7)
Luandino Vieira, aliás,
ocupa longamente a atenção do director do campo e da PIDE que sonega e espia a
sua correspondência nomeadamente com o seu advogado em Lisboa, Joaquim Pires de
Lima.
Os anos 70 ocupam
importante parte deste lote de documentos do arquivo da PIDE. Assim
a 14 de Maio de 1970 um relatório do director da prisão do Tarrafal informa que
por despacho do ministro do Ultramar foram para aqui enviados mais 14 angolanos
com penas de 6 a 10 anos. Entre eles estão Aldemiro da Conceição, Alcino de
Carvalho Borges, Alberto Correia Neto, Justino Pinto de Andrade, Vicente Pinto
de Andrade, Eduardo Santana Valentim, Gilberto Saraiva de Carvalho, Jaime
Gaspar Cohen.
Muita desta documentação
revela a permanente pressão psicológica sobre os presos, os constantes
arbítrios e prepotências a que são submetidos.
Em Agosto de 1970 o
director da prisão de Chão Bom e a PIDE procuram a melhor maneira, sem dar
muito nas vistas para o exterior, de impedir que a mãe de Eduardo Santana
Valentim visitasse o filho aqui condenado a 10 anos de prisão apesar de a
senhora já estar em Cabo Verde depois de uma longa viagem de Luanda para Lisboa
e de Lisboa para aqui. E porque querem recusar a visita? Porque, e passo a
citar:
“o preso tem espírito
orgulhoso e irreverente sobre o qual se terá de exercer a nossa acção de
esclarecimento” e “o isolamento da família e o exercício de uma apertada
censura em que se inclui a interdição de noticiário e leitura de temas
políticos, subversivos e sociais - reivindicativos têm sido óptimos meios de
recuperação social dos internados.”
Dizer isto aqui, hoje, é
absolutamente risível mas há 39 anos estas mesquinhas e odiosas considerações
eram verdadeiras sentenças sobre a vida dos presos que aqui estavam por lutarem
pela liberdade dos seus países.
6 – O dever de
preservação da Memória
A consciência da
necessidade de preservação da Memória das lutas travadas
contra o fascismo e contra o colonialismo é um tema actual em Portugal mas
também na Europa e, como este simpósio bem comprova, na República de Cabo
Verde. Importa sublinhar que aqui a tomada de consciência dessa importância
leva ao empenhamento das autoridades, do próprio Presidente da República e do
Governo o que não é frequente suceder noutros países.
Em Portugal, como
noutras latitudes, a defesa da preservação da Memória com os objectivos que
aqui nos reúnem, confronta outras correntes de opinião. Umas não negam essa
importância mas não a valorizam suficientemente. Outras correntes de opinião,
estão contra a defesa desse património histórico e cívico. Tais correntes já se
vê, têm como principais defensores, ou quem tenha cadastro neste tipo de
crimes, ou sectores que se identificam no fundo com as ideologias que
conduziram a tais tragédias e que em nova oportunidade estariam prontas para
soluções da mesma natureza como aliás se viu recentemente na Guerra do Iraque,
nas práticas de Guantânamo ou Abhu Graib para citar só os locais mais
conhecidos.
O Movimento Não Apaguem
Memória sustenta ter grande importância cívica e política a defesa desta
memória que no caso Português passa pela preservação de locais tão emblemáticos
como por exemplo o da Sede da PIDE/DGS em Lisboa, a antiga cadeia do Aljube, os
fortes-prisão de Peniche e Caxias, com soluções adequadas e naturalmente
diferentes.
Que valores estão em
causa afinal neste debate que atravessa Portugal, a Europa e a América Latina e
também certamente Cabo Verde. Pois o da defesa da Liberdade, dos direitos
humanos, da justiça, da solidariedade. Em Portugal os que defendem a preservação
da memória, e não apenas em palavras mas em actos, querem fortalecer a
consciência dos portugueses com as lições do passado para que não possa
regressar, ainda que sob novas formas e disfarces, o triunfo das ideias que
almejam, à custa da liberdade e da dignidade humana, uma repartição da riqueza
que dê a poucos uma vida de escandalosa opulência e à esmagadora maioria a
pobreza, a insegurança e o desespero.
7 – O Movimento Não Apaguem a Memória
O Movimento Não Apaguem a Memória surgiu há 4 anos em protesto contra a
transformação da sede da PIDE em Lisboa num condomínio privado de luxo sem que
o Estado português tivesse tido a preocupação de intervir no sentido da
preservação da memória do local.
A nossa associação tem como razão de ser a preservação da memória
da luta da resistência à ditadura fascista, e o colonialismo e pela liberdade e
procura cooperar com quem tenha os mesmos objectivos. Pretendemos
que os principais símbolos da opressão e da luta contra ela sejam condigna e
adequadamente preservados. Procuramos, de acordo com as nossas possibilidades,
exercer o magistério da influência junto do Governo, das autarquias, das
instituições do Estado português para que adoptem uma política de preservação
da memória que honre o país e a democracia e que seja uma componente da
preservação da nossa identidade.
Vimos, aliás, consagrado tal desiderato numa Resolução Parlamentar (nº
24/2008 de 16 de Junho) de nossa iniciativa, sob a forma de recomendação da
Assembleia da República ao Governo para que exerça o dever de Memória e que
teve o apoio, raro, de todos os grupos parlamentares.
Temos tido insucessos e êxitos. Entre estes merece especial relevo a
assinatura no passado dia 25 de Abril de um protocolo com a Câmara Municipal de
Lisboa, na presença do seu presidente, do ministro da Justiça, ele próprio um
antigo preso político, e do ministro das Finanças que tem por objectivo o apoio
- à
criação de um museu da resistência e da liberdade na antiga e simbólica
cadeia de presos políticos do Aljube, em Lisboa;
- à
realização de um memorial às vítimas da PIDE junto do local onde se
encontrava a sua sede em Lisboa;
- à
criação de um roteiro cultural na cidade de Lisboa dos locais mais
simbólicos da repressão da ditadura e das lutas mais importantes contra
ela;
- à
realização de uma exposição, durante um ano, denominada “A voz das
vítimas” no edifício da antiga cadeia do Aljube, no âmbito das
Comemorações Nacionais do Centenário da República em parceria com a
Fundação Mário Soares e o Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa.
O Campo de Concentração do Tarrafal também mereceu do Movimento Não Apaguem
a Memória especial atenção. Realizámos um colóquio internacional para assinalar
o aniversário da abertura do Campo de Chão Bom, em 29 de Outubro de 2008, com o
apoio do presidente da Assembleia da República, do Ministro da Justiça, do
ministro da Cultura e da Fundação Mário Soares. Apraz-nos sublinhar a presença
que muito nos honrou de antigos presos do Tarrafal, como o diplomata Luís
Fonseca e Maria da Luz Boal de Cabo Verde, o embaixador da Guiné Bissau em
Lisboa, Constantino Lopes da Costa, o embaixador de Angola em Roma, Manuel
Pedro Pacavira o Professor Universitário Justino Pinto de Andrade, de Angola
além dos ex-tarrafalistas portugueses Edmundo Pedro, aqui presente e Joaquim de
Sousa Teixeira, falecido entretanto.
7) A Importância do Simpósio Internacional sobre o Tarrafal
Os projectos que as autoridades da República de Cabo Verde planeiam para o
antigo Campo de Concentração do Tarrafal onde europeus e africanos tanto
sofreram têm uma grande importância para Cabo Verde mas também para Portugal,
Angola e Guiné onde cidadãos e até alguns actuais dirigentes do Estado estivem
presos. O Campo do Tarrafal evoca momentos importantes da história comum a
estes países. Por isso achamos que comum deve ser também o esforço e o empenho
para levar avante neste importante projecto e em particular por parte de
Portugal, que como membro da União Europeia tem a obrigação de procurar
envolver também a Europa nesta evocação histórica comum aos dois
continentes.
Por fim queria agradecer à Fundação Amílcar Cabral e à Presidência da
República de Cabo Verde que lhe deu o seu alto patrocínio a distinção que para
nós representa o convite feito ao Movimento Não Apaguem a Memória para
participarmos neste importante simpósio internacional.
Esta iniciativa revela como a Fundação Amílcar Cabral, a Presidência e o
Governo da Cabo Verde têm a viva percepção da importância da preservação da
memória deste local de sofrimento e luta de portugueses e cidadãos de Angola,
Guiné e Cabo Verde irmanados no combate ao fascismo e ao colonialismo e pela
independência dos seus países.
Este simpósio com o patrocínio das autoridades de Cabo Verde no presente, assim
como a luta comum no passado, de homens e mulheres do país colonizador e de
homens e mulheres dos países então colonizados são o exemplo impressivo de que
o que une ou separa os Homens não são as fronteiras dos Estados ou da cor da
pele, não são as fronteiras da raça ou da cultura. O que separa ou une os
Homens é a sua atitude perante o outro, perante o seu semelhante, é o seu
posicionamento perante a solidariedade, a justiça social, a dignidade humana, a
liberdade.
Notas
(1) Acção Revolucionária Armada- ARA – Raimundo Narciso, Editorial D.
Quixote 1970 .
(1) As explosões que abalaram o fascismo Jaime Serra Edições Avante – 1969
(2)– Francisco Miguel “Uma vida na Revolução” A Opinião Fev 1977 e Das
Prisões à Liberdade Edições Avante 1986.
(3)– Memórias Um Combate pela Liberdade 1º Volume Edmundo Pedro. Editora
Âncora Jan 2007