2009/05/09

No Tarrafal Simpósio com tarrafalistas de Portugal, Cabo Verde, Angola e Guiné Bissau

Nota: A seguir às imagens,  está a intervenção neste simpósio de Raimundo Narciso, em representação do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória - NAM onde se encontra informação, obtida nomeadamente no arquivo nacional da Torre do Tombo, sobre os dois Tarrafais: o 1º como campo de concentração de presos políticos portugueses, de 1936 a 1954 e o 2º dos presos políticos dos movimentos de libertação de Angola, Guiné e Cabo Verde, de 1961 a 1974)

Imagens do antigo campo de concentração do Tarrafal (CCT), criado pelo regime fascista-colonialista de Salazar, na Ilha de Santiago em Cabo Verde, obtidas durante o Simpósio Internacional sobre o CC T (28 de Abril a 1 de Maio de 2009). Na origem deste simpósio está o Movimento Não Apaguem a Memória através dos denodados esforços de um dos seus  mais jovens "activistas" (então com 91 anos) o "tarrafalista" Edmundo Pedro, que passou 9 anos ali preso. Entre os prisioneiro estava também ali o seu pai, Gabriel Pedro, outro indómito lutador antifascista. 
O Simpósio foi promovido pela Fundação Amílcar Cabral com o patrocínio do Presidente da República de Cabo Verde, Comandante Pedro Pires, e a colaboração do NAM, da Fundação Mário Soares e outras fundações e associações de Angola e Guiné.








Estiveram presentes no simpósio várias dezenas de ex-presos políticos de Cabo Verde, da Guiné e de Angola (presos na "2ª vida" do CC T, de 1961 a 1974, só para presos políticos das ex-colónias portuguesas) e um de Portugal, Edmundo Pedro, um dos dois sobreviventes da "1ª vida" do Campo de Concentração do Tarrafal, só para presos políticos portugueses de 1936 a 1954.






Participaram o ministro da Cultura e o da Educação de Cabo Verde, a ministra da Cultura de Angola, o ministro da Cultura da Guiné. O Simpósio foi aberto com uma intervenção do 1ºM de CV e encerrado com um discurso de Pedro Pires, Presidente da República de CV. Esteve presente também a embaixadora de Portugal em Cabo Verde.
Notada a ausência de qualquer ministro português. Já em Portugal procurei saber porquê. O Governo não recebeu nenhum convite. O convite foi feito pelo PR de Cabo Verde ao PR Português .

O Governo português tinha participado, aliás, no financiamento da recuperação do campo do Tarrafal através da Secretaria de Estado da Cooperação. Houve falha de comunicação ou a falta de percepção de que PR e Governo português sendo órgãos distintos e de famílias políticas distintas podem ter dificuldades de comunicação...
 


O Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires.

Participaram no Simpósio ex-presos políticos tarrafalistas que vieram a exercer ou exercem altas funções no Estado ou são representantes da intelectualidade (Poetas, escritores, professores universitários) de Cabo Verde, Guiné Bissau ou Angola.


O Poeta Mário Fonseca (Cabo Verde), o Embaixador Manuel Pacavira (Angola), jovem do protocolo do Simpósio.


Luandino Vieira, à direita


De frente Álvaro Dantas Tavares representante da Presidência da República de CV na organização do Simpósio. De Costas Alfredo Caldeira da Fundação Mário Soares.




Domingos Abrantes, (PCP) Aurélio Santos (PCP), Irene Pimentel historiadora, Raimundo Narciso presid Direção do Movimento Cívico "Não Apaguem a Memória"- NAM e Raquel Bagulho





     Irene Pimentel historiadora e Fernanda Paraíso arquitecta activistas do NAM

     Raimundo Narciso


Por Portugal participaram, Mário Soares, em representação da sua Fundação que foi, aliás, responsável pela exposição do Simpósio organizada por Alfredo Caldeira, Edmundo Pedro, 9 anos preso no Tarrafal, o historiador e deputado Fernando Rosas, a historiadora Irene Pimentel, a jornalista (e membro da direcção do NAM) Diana Andringa,  Raimundo Narciso, do Movimentpo Não Apaguem a Memória!-NAM (que laboriosamente e com muitas lacunas vai colocando a notícia neste blog ), o presidente da URAP Aurélio Santos, o representante do PCP, Domingos Abrantes, e outros colaboradores da FMS e do NAM.



O ex-presidente da República de Portugal Dr. Mário Soares


Raimundo Narciso em representação do NAM, vendo-se na mesa a Ministra da Cultura de Angola.



O historiador Fernando Rosas.

No fim do Simpósio foi organizada uma visita ao cemitério, em homenagem aos ex-terrafalistas mortos no CCT. Raimundo Narciso e Aurélio Santos representaram Portugal colocando uma coroa de flores e pronunciando uma breve alocoção.


O Governo de Cabo Verde vai consagrar o CCT património Nacional de Cabo Verde mas pretende que seja também reconhecido como Património da Humanidade.
Do documento de conclusões do Simpósio (encontra-se na íntegra assim como algumas intervenções no Simpósio no post acima sob a forma de livro) transcrevo as seguintes recomendações:
·
Destapar e colocar em espaço de memória os outros “Tarrafais” espalhados pelo mundo, e em particular nos países integrantes da CPLP, tais como Ilha das Galinhas, na Guiné-Bissau, Campos de S. Nicolau, Missonbo e Colónia Penal do Bié, em Angola, Machava, em Moçambique, Vikeke e Ataúro, em Timor-Leste, e Tarrafal de S. Nicolau, em Cabo Verde;
· Manifestar o seu repúdio pela crescente utilização de campos de concentração e de tortura em conflitos recentes;
· Legislação apropriada e multinacional (Portugal, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau) para garantir o carácter perene da importância do Campo de Concentração do Tarrafal, para que o seu destino não dependa das vicissitudes e vontades circunstanciais dos respectivos governos;
· Assegurar a integridade das instalações de Campo, tal como se encontravam no momento da sua libertação;

. Que o Campo se torne um espaço de memória de todos aqueles que aqui sofreram, fazendo dele um espaço memorial da conquista da Liberdade;

· Que seja criado, dentro do Campo de Concentração do Tarrafal, um Museu da Resistência e da Liberdade;
· Que se crie dentro do Campo um Centro Internacional de pesquisa da Luta pelas Independências;
· Criar no espaço envolvente do Campo, áreas dedicadas às Crianças e à Juventude para que elas possam apreender melhor a História;
· Criar nos terrenos adjacentes ao Campo valências capazes de assegurar a sustentabilidade do Campo;
· Inserir nos compêndios escolares mais matérias sobre a História e as Lutas de Libertação Nacional dos nossos países;
· O Simpósio apela aos governos de Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e Portugal para que assegurem os encargos de edificação e manutenção do Campo de Concentração do Tarrafal como Memorial da Luta comum dos nossos povos.
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Abaixo mais fotografias do CCT preparado para o Simpósio. Ter em conta que o actual CCT é o de 1961-1974, que fez adaptações ao que vigorou até 1954. Assim por exemplo a célebre câmara de tortura "frigideira" desapareceu. As suas funções passaram a ser executadas noutra construção a que os africanos chamaram "Holandinha". Porquê tal nome? Porque havia muitos emigrantes na Holanda e a ida para o cela do castigo, uma "emigração" para o sofrimento.


 .


                                                                             Celas


 

 






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SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DO TARRAFAL
28 de Abril a 1 de Maio de 2009
Tarrafal - Cabo Verde
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Intervenção de Raimundo Narciso presidente da direcção do Movimento Não Apaguem a Memória (Portugal)

1 – O Campo de Concentração do Tarrafal no imaginário
      dos antifascistas portugueses.

O Campo de Concentração do Tarrafal ganhou no imaginário dos que em Portugal lutavam contra o regime fascista um lugar à parte como símbolo da pior repressão da ditadura que dominou o nosso país durante meio século.
Em Portugal tínhamos o forte de Peniche, o forte de Caxias, o Aljube, e sobretudo a sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso em Lisboa como locais da repressão e da tortura a que dificilmente escapavam os que em Portugal mais se destacavam na luta por uma vida melhor, pela liberdade e pela democracia.
Mas a todos esses locais se sobrepunha, na imaginação dos antifascistas, como centro do horror, o campo de concentração do Tarrafal. E esse lugar longínquo agigantava-se pela distância, que adensa o desconhecido, pelas notícias da exposição à insalubridade, à doença, à humilhação, ao sadismo de quem controlava a vida e a morte dos presos políticos.
Hoje estou aqui, onde se situava essa prisão, num simpósio internacional com o alto patrocínio do Senhor Presidente da República da República de Cabo Verde, num território que conquistou a independência com a luta do seu povo apesar deste e de outros Tarrafais. Estou aqui pela primeira vez, a conhecer a bela ilha de Santiago, a observar a acolhedora vila do Tarrafal a refazer as ideias feitas sobre esta parte de África, terra no meio de tanto mar, a comprovar que todas as terras, são boas ou más conforme o uso que delas os homens fazem. 
2- Os Primeiros testemunhos
Conheci o Tarrafal, pelas imagens que dele me deram, dois antigos prisioneiros para mim muito especiais. O primeiro testemunho foi-me dado por Francisco Miguel.Encontrava-me em 1968 a viver na clandestinidade, como quadro do PCP, escondido no anonimato da grande cidade de Lisboa, quando recebi na casa clandestina que alugara, Francisco Miguel membro do Comité Central do PCP, que aos 60 não se resignou a viver na emigração e insistiu em regressar clandestinamente a Portugal para lutar contra a ditadura fascista, e em lutar na organização que estávamos a criar para a realização de acções armadas e que veio a ser a Acção revolucionária Armada – ARA (1) . Francisco Miguel já tinha passado mais de 21 anos preso, nove dos quais no Tarrafal. De Junho de 1940 a Janeiro de 1946 e de Janeiro de 1951 a Janeiro de 1954.
Enquanto não alugou uma casa apropriada para viver com identidade falsa viveu comigo e a minha mulher cerca de um mês, esta foi a oportunidade para me falar da sua vida de luta, das suas quatro fugas da prisão em Portugal a última das quais no célebre automóvel blindado de Salazar, oferecido pela Alemanha nazi, e que passara a fazer parte dos veículos da prisão do Forte de Caxias, para me falar dos seu martírio no campo de concentração do Tarrafal, da tortura que era a “frigideira” e de tudo o que hoje é bem conhecido e tornava a vida neste campo uma morte em vida. Era um homem de rara coragem e espartano na sua vida pessoal. Teve a singularidade de ser o último preso político português a deixar o Tarrafal. Por aqui viveu ainda seis meses sozinho no limitado território do campo até à sua partida para Lisboa. Foi a minha primeira informação dada por quem viveu o Tarrafal por dentro e que está ilustrada nos seus dois livros de memórias (2).
Outra fonte indirecta do meu conhecimento da vida no campo do Tarrafal foi Edmundo Pedro aqui presente a participar neste simpósio já com a bonita idade de 90 anos e que foi um dos estreantes do Campo, em 29 de Setembro de 1936. De entre tantos jovens aqui sacrificados ele era o mais jovem deles, com 17 anos, e com a singularidade de aqui estar preso com o seu pai, Gabriel Pedro, também ele homem de indómita coragem. Dos seus relatos e da leitura empolgante do seu livro “Memórias. Um combate pela Liberdade”(3) fica-se com um retrato vivo do que foi a vida, o sofrimento, a coragem, a tenacidade na luta pelas grandes causas da esmagadora maioria dos presos que souberam resistir com dignidade exemplar às mais brutais tentativas morais e físicas para os vergarem aos ditames do fascismo.
Ele falará aqui bem melhor que eu dessa experiência de luta e do heroísmo dos que aqui souberam resistir, por isso apenas evocarei a memória do seu pai Gabriel Pedro outro dos estreantes deste campo prisão. Gabriel Pedro é outro exemplo de inaudita coragem, e determinação na luta contra o regime do “Estado Novo”. Participou com o filho e outros prisioneiros numa tentativa de fuga do campo que, como as outras, não teve sucesso. Conheci-o em 1970 num encontro clandestino numa noite de Outubro de 1970 junto ao Porto de Lisboa para um reconhecimento que nos permitisse executar daí a dias com outros companheiros, a primeira acção armada da ARA, a sabotagem do navio Cunene o mais moderno da frota mercante portuguesa de então, dedicado à logística das guerras coloniais. Gabriel Pedro estava então a viver com a mulher e a filha em Paris, depois de uma vida de luta e prisões, toda ela um calvário de sofrimentos. Mas a sua determinação em combater o inimigo de sempre levou-o a pedir para participar na primeira acção armada da ARA, em que teve, aliás, uma participação decisiva, tanto mais de admirar porquanto se tratava de um homem que já tinha 70 anos de idade.
3- O contexto Histórico da Abertura do Campo de Concentração do Tarrafal
A criação do campo de concentração do Tarrafal surge num contexto histórico de Portugal que remonta a 1926, ao golpe militar de 28 de Maio, que pôs fim à 1ª República portuguesa, iniciada em 1910 e que impôs uma ditadura que viria a dominar Portugal durante quase meio século. O ditador Salazar era um admirador do fascismo de Mussolini e apoiante de Hitler. Era no entanto um fascista sui-generis. Ex-seminarista muito ligado à Igreja era um académico rural, de mentalidade retrógrada, mais dado à violência mortificante sim mas dissimulada, até porque noutro contexto, do que aos brutais morticínios de Hitler ou às atléticas demonstrações de terror do Duce italiano. A onda fascista na Europa deu asas ao regime de Salazar e em 1936 o golpe militar de Franco que a breve trecho, com o apoio de Mussolini e Hitler venceu e pôs fim à República em Espanha, deu novo alento e arrogância ao fascismo de sacristia de Salazar que colaborou activamente nas chacinas dos franquistas espanhóis não apenas durante a guerra civil mas depois na perseguição e entrega a Franco de espanhóis que tinham procurado refugio em Portugal.

O regime saído do golpe militar de 28 de Maio de 1926 não se consolidou pacificamente e sofreu sucessivos sobressaltos o maior dos quais terá sido o protagonizado pelo General Sousa Dias (4). Ele é o chefe da revolta de 3 de Fevereiro de 1927 no Porto e volta a ser o chefe da revolta da Ilha da Madeira em 1931, com os seus prolongamentos nos Açores e na Guiné.
À fase das revoltas republicanas e militares – o reviralho - seguem-se ainda ameaças vindas dos sectores operários anarco-sindicalistas e comunistas como é o caso da tentativa de greve geral e levantamento armado de 18 de Janeiro de 1934 com particular incidência entre os operários vidreiros da Marinha Grande. Depois é a vez de grandes movimentações e greves operárias nos anos 40 dirigidas pelo PCP.
Preocupado com a resistência interna ao auto denominado Estado Novo e sentindo as costas quentes com o fascismo em maré alta na Europa a ditadura portuguesa engrossa a repressão e decide-se pela criação do campo de concentração na Achada Grande do Tarrafal. Não foi único, outros campos prisionais foram criados em Angola e Moçambique. Aliás a prática do desterro para as colónias não era nova. Aqui mesmo em Cabo Verde morrera desterrado o já referido General Sousa Dias, em 1932 em S. Vicente (4). O Campo do Tarrafal vinha na linha dos campos de concentração hitlerianos ainda que, é claro, não se possam estabelecer comparações do Tarrafal com os campos de extermínio nazis.
4 - O Campo de Concentração do Tarrafal de 1936 a 1954
O Presídio de Chão Bom do Tarrafal foi inaugurado em 29 de Outubro de 1936 com a chegada de 152 presos políticos. As suas profissões e origem social, dão uma importante indicação das camadas da população que mais enfrentam o regime e concitam a sua sanha persecutória.

A maioria dos presos políticos que inauguram o presídio são muito jovens e entre eles estão 51 marinheiros da revolta de 8 de Setembro de 1936 dos navios Dão, Afonso de Albuquerque e Bartolomeu Dias, e 57 operários da tentativa de greve geral de 18 de Janeiro de 1934 contra a legislação de controlo dos sindicatos que o chamado “Estado Novo” então publicara (5). Predominam os operários, estão dirigentes políticos comunistas, anarquistas, quadros revolucionários do movimento sindical. Entre eles estão alguns dos principais ou futuros dirigentes políticos da esquerda revolucionária. Bento Gonçalves secretário-geral do PCP, Mário Castelhano dirigente anarco-sindicalista, Júlio Fogaça, Pedro Soares quadros comunistas, Edmundo Pedro e Sérgio Vilarigues, quadros da juventude comunista.
Um conjunto de documentos do dossiê da PIDE que consultei no arquivo nacional da Torre do Tombo (6) oferece-nos um retrato eloquente a vários títulos dos presos políticos existentes neste campo no ano de 1939 e que anexarei a esta intervenção. Faculta a identidade de todos os presos, profissões, idades, indicação dos que morreram nesse ano, situação jurídico/prisional, revela-nos o movimento impressionante dos presos doentes, dos dias de castigo infringidos a cada um na tristemente célebre “frigideira”. Num desses documentos de arquivo, um relatório da sub-delegação da PIDE de Cabo Verde para a delegação de Angola e a sede em Lisboa fica-se a saber que no início de 1939 existiam no Campo 187 presos, que a eles juntaram-se durante esse ano mais 27, um saiu e outro faleceu, Fernando Alcobia.  No fim de 1939 existiam no campo 212 presos. Eu acrescentaria 212 vivos e 11 mortos, tantos eram os que aqui faleceram desde a abertura  do campo 2 anos antes. De facto no campo do Tarrafal o 1º ano de vida foi o maior ano de morte. Em 1937 morreram, melhor seria dizer, foram mortos, com violência física e psicológica e falta de assistência médica sete presos do total de 32 que viriam a morrer neste campo, os dois últimos dos quais em 1948.
Da totalidade dos presos existentes em 1939, 53% são proletários, 23 % são trabalhadores dos serviços, 20% são marinheiros, 3% são estudantes 1 é oficial das forças armadas e 1 é advogado.
Não podemos extrapolar estas percentagens para a totalidade dos presos políticos nas prisões portuguesas no fim dos anos 30 nem esta amostragem pode retratar com fidelidade o envolvimento de outras camadas da população na resistência ao regime, mas em todo o caso estes números são eloquentes sobre quem se abatia a pior repressão e sobre quem naturalmente mais lutava contra o poder em Portugal. Se 212 eram os presos em 1939 a totalidade dos portugueses que passaram pelo campo do Tarrafal chegou aos 340.
Para o fim do regime a composição social das camadas em luta contra ele altera-se bastante. Nos anos 60 e até 1974 apesar de a participação peso e determinação de luta do proletariado industrial e agrícola ser incontornável aumenta muito o peso dos estudantes, de intelectuais, de camadas média da população. Um factor novo e decisivo para a queda mais rápida do regime é a guerra colonial. Se a luta dos portugueses e entre eles uma parte dos militares contra as guerras coloniais ajuda os movimentos de libertação das colónias a acelerar a sua vitória a luta dos povos de Cabo Verde e Guiné Bissau, de Angola e Moçambique, pela sua independência teve a maior importância para acelerar a queda do regime português.
Este campo de Chão Bom no Tarrafal, ao irmanar na repressão portugueses e africanos das ex-colónias portuguesas foi aliás o exemplo paradigmático de que a luta de uns era também a luta dos outros.
O exame à situação jurídico-criminal dos presos do Tarrafal no ano de 1939 é também reveladora de como o Estado Novo não se poupava a fazer leis que dessem uma imagem de legalidade à ditadura. Vejamos o que se passava com a situação dos presos em 1939 através de um relatório do arquivo da PIDE na Torre do Tombo.
Dos 212 presos do presídio do Tarrafal 124 encontravam-se em cumprimento de pena mas 34 já a tinham cumprido. Entre eles estão já conhecidos ou futuros dirigentes comunistas como Alberto Araújo, Júlio Fogaça, Militão Ribeiro, Sérgio Vilarigues, Américo de Sousa. 29 presos não tinham sido julgados como era o caso de Edmundo Pedro inscrito neste rol, e 20 estavam presos sem julgamento nem processo. Havia ainda 3 presos com processo no Tribunal Militar Especial e 2 com processo pendente.
Neste inventário geral de 1939 ficamos ainda a saber que para dirigir e guardar o Campo e os presos Lisboa colocara aqui um director o capitão João da Silva, o terceiro director desde o início do campo, e que para aqui bem executar as ordens de Salazar tinha feito um estágio na Alemanha nazi. O director tinha um adjunto, também capitão e a seguir na hierarquia surgia um médico o célebre Esmeraldo Prata que os presos consideravam mais assassino que médico.
Na estrutura seguia-se o chefe dos guardas Henrique Sá Seichas e 17 guardas. O restante pessoal era constituído por um enfermeiro, um motorista, um lampianista, uma profissão que a electricidade fez desaparecer e um servente.
Além desta estrutura interna de 25 elementos havia ainda nas proximidades da colónia penal o quartel da 1º companhia indígena de Infantaria Expedicionária de Angola sob o comando do capitão Numa Pompílio Correia com funções de guarda e vigilância dos presos.
Presos sem julgamento, sem processo, ou com a pena cumprida são bem o exemplo de como as leis apesar de feitas à medida da conveniência dos próceres do Estado Novo eram normas que o Governo e a PIDE cumpriam ou não cumpriam conforme as conveniências. 

5 - O Campo de Concentração de 1961 a 1974
No já referido arquivo da PIDE e também no de Oliveira Salazar estão abertos ao público muitas centenas de documentos sobre o Tarrafal quer relativos ao primeiro quer ao segundo período da sua existência. A reabertura do campo é feita pela portaria nº 18.539, assinada pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira e publicada no Diário do Governo com a data de 17 de Junho de 1961 cujo primeiro ponto diz:

“É instituído em Chão Bom um campo de trabalho”. 
Nela se refere que “o pessoal necessário ao funcionamento do campo deverá ser recrutado em regime de comissão entre os servidores da província de Angola que suportará todos os encargos.”

Como curiosidade registe-se que o Ministro que metia num campo de concentração os seus adversários políticos pôde usufruir no regime democrático português da oportunidade de ter uma carreira política e chegar a ser deputado.A guarda aos presos nesta segunda vida do Campo do Chão Bom ficará a cargo de um pelotão de infantaria do comando de um tenente, com 3 sargentos e 26 praças aquartelado no Tarrafal. Não menos interessante é o ofício do Director da PIDE da “província” de Angola ao Inspector da PIDE em Cabo Verde um mês depois. Nele se recomenda que “de futuro o presídio que foi criado no Tarrafal, deve ser sempre designado pelo seu nome oficial que conforme a portaria nº 18.539 de 17 de Junho findo [ 1961, portanto] é “Campo de Trabalho de Chão Bom”.
Mas a máquina burocrática padece de algumas desafinações. O Governador Geral de Angola, General Deslandes, com os carimbos de confidencial e urgente interpela o Ministro do Ultramar Adriano Moreira. Refere que 50 cidadãos (brancos e mestiços) detidos à ordem da PIDE em Luanda vão ser “removidos” para Chão Bom em Cabo Verde - sem prévio julgamento ou simples formação de culpa – e faz o reparo de que “são actos que  salvo melhor opinião, não têm apoio legal.”
Receia o Governador de Angola, no mesmo ofício, que o julgamento necessário para respeitar a lei deveria ser em Lisboa pois receia as consequências do julgamento em Luanda e tendo em conta a situação económica e social de alguns teme ainda que a “removê-los” para Chão Bom em situação ilegal eles possam recorrer ao habeas corpus.
Três anos depois um ofício da delegação da Pide de Angola, de 22 de Abril de 1964, para o director em Lisboa tratando da inconveniência da transferência de presos da Guiné para Chão Bom em Cabo Verde dá colateralmente a informação de que no campo de prisioneiros do Cubango em Angola se encontram 874 presos. Número impressionante e revelador das centenas e milhares de presos espalhados por diferentes campos e por todas as colónias portuguesas para reprimir os movimentos de libertação das colónias.
Grande parte desta correspondência entre delegações da PIDE e entre a PIDE e o director do Campo de Chão Bom ocupa-se da censura à correspondência entre os presos e suas famílias, ao desvio dessa imprensa, a tentativas para impedirem visitas de família a presos que não dão sinais de arrependimento e consideram “completamente irrecuperáveis”, do desvio de livros e até de dinheiro enviado aos presos.
Em 3 de Dezembro de 1968 o director da prisão de Chão Bom, Eduardo Vieira Fontes, comunica ao chefe da subdelegação da PIDE de Cabo Verde que lhe vai “remeter os livros e discos que vieram endereçados ao recluso José Vieira Mateus da Graça, (o escritor Luandino Vieira) e foram interceptados devido ao seu conteúdo de carácter político-subversivo.”
E que livros e discos eram esses que poderiam atentar contra o novo rumo que a PIDE queria impor ao espírito de Luandino Vieira? Era a Praça da Canção de Manuel Alegre, “ O sentido e a forma da Poesia Neo-realista” de Eduardo Lourenço e o disco de Adriano Correia de Oliveira “Trova do vento que passa”. (7)
Luandino Vieira, aliás, ocupa longamente a atenção do director do campo e da PIDE que sonega e espia a sua correspondência nomeadamente com o seu advogado em Lisboa, Joaquim Pires de Lima.
Os anos 70 ocupam importante parte deste lote de documentos do arquivo da PIDE.  Assim a 14 de Maio de 1970 um relatório do director da prisão do Tarrafal informa que por despacho do ministro do Ultramar foram para aqui enviados mais 14 angolanos com penas de 6 a 10 anos. Entre eles estão Aldemiro da Conceição, Alcino de Carvalho Borges, Alberto Correia Neto, Justino Pinto de Andrade, Vicente Pinto de Andrade, Eduardo Santana Valentim, Gilberto Saraiva de Carvalho, Jaime Gaspar Cohen.
Muita desta documentação revela a permanente pressão psicológica sobre os presos, os constantes arbítrios e prepotências a que são submetidos. 
Em Agosto de 1970 o director da prisão de Chão Bom e a PIDE procuram a melhor maneira, sem dar muito nas vistas para o exterior, de impedir que a mãe de Eduardo Santana Valentim visitasse o filho aqui condenado a 10 anos de prisão apesar de a senhora já estar em Cabo Verde depois de uma longa viagem de Luanda para Lisboa e de Lisboa para aqui. E porque querem recusar a visita? Porque, e passo a citar:
“o preso tem espírito orgulhoso e irreverente sobre o qual se terá de exercer a nossa acção de esclarecimento” e “o isolamento da família e o exercício de uma apertada censura em que se inclui a interdição de noticiário e leitura de temas políticos, subversivos e sociais - reivindicativos têm sido óptimos meios de recuperação social dos internados.”
Dizer isto aqui, hoje, é absolutamente risível mas há 39 anos estas mesquinhas e odiosas considerações eram verdadeiras sentenças sobre a vida dos presos que aqui estavam por lutarem pela liberdade dos seus países. 
6 – O dever de preservação da Memória
A consciência da necessidade de preservação da Memória das lutas travadas contra o fascismo e contra o colonialismo é um tema actual em Portugal mas também na Europa e, como este simpósio bem comprova, na República de Cabo Verde. Importa sublinhar que aqui a tomada de consciência dessa importância leva ao empenhamento das autoridades, do próprio Presidente da República e do Governo o que não é frequente suceder noutros países.
Em Portugal, como noutras latitudes, a defesa da preservação da Memória com os objectivos que aqui nos reúnem, confronta outras correntes de opinião. Umas não negam essa importância mas não a valorizam suficientemente. Outras correntes de opinião, estão contra a defesa desse património histórico e cívico. Tais correntes já se vê, têm como principais defensores, ou quem tenha cadastro neste tipo de crimes, ou sectores que se identificam no fundo com as ideologias que conduziram a tais tragédias e que em nova oportunidade estariam prontas para soluções da mesma natureza como aliás se viu recentemente na Guerra do Iraque, nas práticas de Guantânamo ou Abhu Graib para citar só os locais mais conhecidos.
O Movimento Não Apaguem Memória sustenta ter grande importância cívica e política a defesa desta memória que no caso Português passa pela preservação de locais tão emblemáticos como por exemplo o da Sede da PIDE/DGS em Lisboa, a antiga cadeia do Aljube, os fortes-prisão de Peniche e Caxias, com soluções adequadas e naturalmente diferentes.
Que valores estão em causa afinal neste debate que atravessa Portugal, a Europa e a América Latina e também certamente Cabo Verde. Pois o da defesa da Liberdade, dos direitos humanos, da justiça, da solidariedade. Em Portugal os que defendem a preservação da memória, e não apenas em palavras mas em actos, querem fortalecer a consciência dos portugueses com as lições do passado para que não possa regressar, ainda que sob novas formas e disfarces, o triunfo das ideias que almejam, à custa da liberdade e da dignidade humana, uma repartição da riqueza que dê a poucos uma vida de escandalosa opulência e à esmagadora maioria a pobreza, a insegurança e o desespero. 
7 – O Movimento Não Apaguem a Memória

O Movimento Não Apaguem a Memória surgiu há 4 anos em protesto contra a transformação da sede da PIDE em Lisboa num condomínio privado de luxo sem que o Estado português tivesse tido a preocupação de intervir no sentido da preservação da memória do local.
A nossa associação tem como razão de ser a preservação da memória da luta da resistência à ditadura fascista, e o colonialismo e pela liberdade e procura cooperar  com quem tenha os mesmos objectivosPretendemos que os principais símbolos da opressão e da luta contra ela sejam condigna e adequadamente preservados. Procuramos, de acordo com as nossas possibilidades, exercer o magistério da influência junto do Governo, das autarquias, das instituições do Estado português para que adoptem uma política de preservação da memória que honre o país e a democracia e que seja uma componente da preservação da nossa identidade. 
Vimos, aliás, consagrado tal desiderato numa Resolução Parlamentar (nº 24/2008 de 16 de Junho) de nossa iniciativa, sob a forma de recomendação da Assembleia da República ao Governo para que exerça o dever de Memória e que teve o apoio, raro, de todos os grupos parlamentares.

Temos tido insucessos e êxitos. Entre estes merece especial relevo a assinatura no passado dia 25 de Abril de um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa, na presença do seu presidente, do ministro da Justiça, ele próprio um antigo preso político, e do ministro das Finanças que tem por objectivo o apoio
  • à criação de um museu da resistência e da liberdade na antiga e simbólica cadeia de presos políticos do Aljube, em Lisboa;
  • à realização de um memorial às vítimas da PIDE junto do local onde se encontrava a sua sede em Lisboa;
  • à criação de um roteiro cultural na cidade de Lisboa dos locais mais simbólicos da repressão da ditadura e das lutas mais importantes contra ela;
  • à realização de uma exposição, durante um ano, denominada “A voz das vítimas” no edifício da antiga cadeia do Aljube, no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República em parceria com a Fundação Mário Soares e o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
O Campo de Concentração do Tarrafal também mereceu do Movimento Não Apaguem a Memória especial atenção. Realizámos um colóquio internacional para assinalar o aniversário da abertura do Campo de Chão Bom, em 29 de Outubro de 2008, com o apoio do presidente da Assembleia da República, do Ministro da Justiça, do ministro da Cultura e da Fundação Mário Soares. Apraz-nos sublinhar a presença que muito nos honrou de antigos presos do Tarrafal, como o diplomata Luís Fonseca e Maria da Luz Boal de Cabo Verde, o embaixador da Guiné Bissau em Lisboa, Constantino Lopes da Costa, o embaixador de Angola em Roma, Manuel Pedro Pacavira o Professor Universitário Justino Pinto de Andrade, de Angola além dos ex-tarrafalistas portugueses Edmundo Pedro, aqui presente e Joaquim de Sousa Teixeira, falecido entretanto. 

7) A Importância do Simpósio Internacional sobre o Tarrafal 

Os projectos que as autoridades da República de Cabo Verde planeiam para o antigo Campo de Concentração do Tarrafal onde europeus e africanos tanto sofreram têm uma grande importância para Cabo Verde mas também para Portugal, Angola e Guiné onde cidadãos e até alguns actuais dirigentes do Estado estivem presos. O Campo do Tarrafal evoca momentos importantes da história comum a estes países. Por isso achamos que comum deve ser também o esforço e o empenho para levar avante neste importante projecto e em particular por parte de Portugal, que como membro da União Europeia tem a obrigação de procurar envolver também a Europa nesta evocação histórica comum aos dois continentes. 
Por fim queria agradecer à Fundação Amílcar Cabral e à Presidência da República de Cabo Verde que lhe deu o seu alto patrocínio a distinção que para nós representa o convite feito ao Movimento Não Apaguem a Memória para participarmos neste importante simpósio internacional.
Esta iniciativa revela como a Fundação Amílcar Cabral, a Presidência e o Governo da Cabo Verde têm a viva percepção da importância da preservação da memória deste local de sofrimento e luta de portugueses e cidadãos de Angola, Guiné e Cabo Verde irmanados no combate ao fascismo e ao colonialismo e pela independência dos seus países.

Este simpósio com o patrocínio das autoridades de Cabo Verde no presente, assim como a luta comum no passado, de homens e mulheres do país colonizador e de homens e mulheres dos países então colonizados são o exemplo impressivo de que o que une ou separa os Homens não são as fronteiras dos Estados ou da cor da pele, não são as fronteiras da raça ou da cultura. O que separa ou une os Homens é a sua atitude perante o outro, perante o seu semelhante, é o seu posicionamento perante a solidariedade, a justiça social, a dignidade humana, a liberdade.

Notas
(1) Acção Revolucionária Armada- ARA – Raimundo Narciso, Editorial D. Quixote 1970 .
(1) As explosões que abalaram o fascismo Jaime Serra Edições Avante – 1969
(2)– Francisco Miguel “Uma vida na Revolução” A Opinião Fev 1977 e  Das Prisões à Liberdade Edições Avante 1986.
(3)– Memórias Um Combate pela Liberdade 1º Volume Edmundo Pedro. Editora Âncora Jan 2007
(4)-  Em Memória do General Adalberto Gastão de Sousa Dias revista militar Dez 2005 http://www.revistamilitar.pt/modules/articles/article.php?id=3


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