2013/02/05

Homenagens é o que mais há

Já foi há uns anos, em 1999 que, para minha surpresa, fui contactado para estar presente numa homenagem que a Câmara Municipal do Cadaval pretendia me fazer no dia 25 de Abril. Cadaval é o município a que pertence a aldeia do Vilar, minha terra natal, onde passei a infância e parte da juventude, com os meus pais e a minha irmã Helena e que, salvo um intervalo por razões que a seguir explico, visito regularmente até hoje.
As razões da minha ausência de dez anos, os anos em que vivi na clandestinidade para lutar contra a ditadura fascista, foram conhecidas na minha terra após a revolução de 25 de Abril de 1974, mas por várias indicações algumas pessoas já sabiam ou desconfiavam por onde andaria.
Se o Cadaval ficasse no Alentejo a surpresa pela homenagem não seria nenhuma mas o Vilar e o Cadaval - lembram-se do assalto à sede do PCP do Cadaval em 1975, no verão quente, a seguir à de Rio Maior? - ficam numa região onde a influência salazarista e da Igreja (a do cardeal Cerejeira) predominavam e após 1974 as eleições eram ganhas quase sempre pelo PSD, partido a que se acolheram os caciques do Estado Novo, remoçaram o seu "look" e se tornaram  democratas da noite para o dia.
Desta vez a Câmara fora ganha pelo PS mas homenagens destas não eram, ali, propriamente atos eleitoralistas. É certo que entre conterrâneos de terras pequenas em que todos se conhecem os antagonismos partidários baixam armas perante as amizades ou comum respeito. Bem me recordo que no auge da crispação política do verão quente de 1975, num fim de semana que repetia mensalmente, alguns vizinhos e amigos mesmo os mais sintonizados com a educação recebida assente nos valores de Deus, Pátria e Família me diziam: ora se os comunistas fossem todos como tu! Fórmula bem conhecida para mostrar que entre vizinhos devem prevalecer as antigas boas relações.
Felizmente o relacionamento com os meus conterrâneos nunca sofreu com as minhas opções políticas. Nem enquanto fui militante comunista nem após o meu afastamento do PCP a partir de 1987.
Pude mesmo, em 1974, realizar na aldeia, de forma civilizada, uma sessão de esclarecimento do PCP, algo que ainda parecia surreal ou mesmo do domínio do escândalo. Para mais no salão paroquial. Talvez mais pelo insólito a enchente era previsível. A sessão decorreu com perfeito civismo. Lembro-me em especial como um vizinho e amigo, já falecido, sem partido e sem experiência politica mas com muita intuição e conhecimento das almas presentes me socorreu numa resposta em que eu teria sido  "politicamente muito mais correto" mas muito menos convincente.
Perguntaram-me da assistência:
- Então oh Raimundo o que é que me dizes ao milhão de contos que a Intersindical recebeu de Moscovo?
Só o apocalipse da palavra Moscovo dizia tudo sobre o Reino do Mal. Eu aprontava-me para negar tudo e denunciar com indignação a calúnia invocando razões e argumentos muito eficazes na sede do PC mas de total ineficácia ali. Da assistência o meu amigo Bino insistia e perante a minha pouca vontade em entregar a um neófito resposta de tanta responsabilidade ele insistia com veemência para que o deixasse responder. Contrariado dei-lhe a palavra. Bendita decisão.
- O Carlos, então Moscovo mandou um milhão de contos! É dinheiro, hein! Vê tu, um milhão. É dinheiro! Dinheiro que entra. Vê lá se a América faz o mesmo! Bom era que nos enviasse também um milhão de contos. Dinheiro que entra e tu estás contra!
O Carlos ficou sem resposta, a assistência que estava com o Carlos ficou sem argumentos e eu aprendi com o Bino, com a sabedoria local.

4 comentários:

Pedro Baptista disse...

inda por cima a escrever cada vez melhor, um abraço...

Lena disse...

Um texto delicioso!!
A argumentação não poderia estar mais na ordem do dia.

Pelayo disse...

Continuo a gostar de ler estas memorias de um Amigo que tanto admiro, na sua luta , sacrificio juntamente com a sua familia, para que hoje possamos ,por enquanto manifestar o nosso protesto.

Recordo com saudade a forma como nos conhecemos, e aprendi muito ...
Ate o Pelayo era teu amigo......

Um abraço

Mize

Raimundo Narciso disse...

Obrigado aos comentadores pela simpatia. Ao Pedro que é ele sim um escritor; ao desconhecido e ao Pelayo. Esse gato era um amor e a dona ainda mais :))