Passo por ali todos os dias. Excepto quando vou pela Praça da Figueira e apanho a outra entrada do Metropolitano. Passo por ali todos os dias mas nem sempre lá está. Ou nem sempre reparo.
Entre o que acabo de fazer, dois quarteirões atrás, no escritório sempre igual e o que planeio para as horas que me restam, quando chegar a casa, avanço contra o mar de gente que se atropela e, pensamento errando por largo, não vejo caras e não vejo corações. Por isso talvez ela lá esteja mais vezes. Talvez lá esteja todos os dias. Entre as montras faiscantes da Camisaria Moderna e os apelos da última moda exibidos pela Primaz, ela está, encostada ao umbral, em cantaria, do número 113, da Praça de D. Pedro IV. O Rossio.
Não sei o que se passou mas hoje dei por mim parado, a olhar, quase inconveniente, empurrado pela onda humana que desliza alheia, insensível, fugindo cansada para casa.
Parei. Voltei atrás. Fingi observar as camisas, os pulóveres, da Primaz. E olhava aquela mulher.
Era uma mulher. Seria uma mulher? Pensamentos desordenados, sentimentos opostos, piedade, revolta... olhava a mulher disfarçadamente e olhei à volta, também.
A mulher, a velhinha, era cega, como se via pela bengala meio caída que só os cegos usam. Tinha pendurada ao pescoço uma tabuleta. Andei para trás e para a frente, "a ver as montras", até conseguir ler as letras encarnadas em fundo branco de madeira: ajudem-me sou ceguinha e sofro do coração. Estava sentada, caída, num tripé de lona velha, corcovada, quase um novelo, tombada sobre a direita, rente ao chão. Não se via. Ninguém a via. Por isso tocava uma campainha. Tocava com mão pouco segura, aos soluços, desesperadamente, uma sineta que atraía ( não atraía...) as atenções.
Agora me lembro melhor... aquele som..., aquele som agreste da campainha! agora me lembro que a "via" mais vezes. Olhei à volta. Reconfortei-me. Parado, como eu, com o espanto no olhar e um estertor na alma, estava ali, também, especado, um homem. Olhei de novo a velha que não parava de badalar sem resultado visível a estridente sineta. Virei-me então para o homem, cúmplice, para lhe dizer com um olhar, vejam isto! ao que pode chegar um ser humano! porque era disso que se tratava. Um ser humano! E naquela torrente de homens e mulheres que apressada, a um metro, corria, ninguém parava, ninguém se indignava, ninguém congeminava em revolta, deitar governos a baixo, esventrar a ordem social que permite isto, despejar o mundo em toalha limpa e, peça sobre peça, encaixar tudo de novo, sem exploração do homem pelo... sem afinal...
Virei-me para o homem. Mais alto do que eu. Vestia com gosto. Calças de flanela bege a condizerem com uma camisola de malha castanha e um agradável lenço de seda ao pescoço. O homem - não acreditei - passado aquele momento de incredulidade inicial e percebendo melhor o exótico, mesmo o ridículo, da mulher da campainha, quando a esposa, ou namorada a sair da casa de modas já a ele se chegava, riu-se, riu-se, riu-se francamente, com gosto. E olhava-me para que risse. Talvez da boa ideia da sineta. Talvez da coleira com a tabuleta de pau. Talvez porque a velha estava tão inclinada para o chão que parecia cair. Ou porque tocava irregular mas desesperadamente a campainha e nem uma única pessoa deitava uma moeda no mealheiro a tiracolo levantado desajeitadamente com a outra mão cega.
Meti-me então rapidamente na multidão. E foi provavelmente o homem, aquele homem, estrangeiro, talvez sem culpa, mas desapiedado ou inconsciente que me obrigou a registar, ainda que só mentalmente, enquanto vinha, sardinha em lata e absorto, no Metro, isto que agora aqui vos conto.
25 de Outubro de 1991.
O título é o de uma peça da autoria de La Féria levada à cena no Teatro D. Maria II, em Lisboa (estreia em 16 de Maio de 1991). Foi um
espectáculo de retumbante sucesso a que uma certa Lisboa acorria entusiasmada, trepidante e frívola, a divertir-se. Foi por isso e pelo contraste, que escolhi o título da peça para título deste conto. Relato exacto de algo que presenciei ali, entre a Camisaria Moderna e a Primaz, encostada ao umbral em cantaria do número 113, da Praça do Rossio.
Trabalhava então num escritório na Baixa e o Rossio atravessava-se no meu caminho, diariamente, entre a estação do Metro e a Rua dos Fanqueiros. E aquela mulher ali. Sem incomodar ninguém sem que ninguém se incomodasse.