2007/12/22

Prémio Pessoa 2007


O Pémio Pessoa foi este ano atribuído a Irene Flunser Pimentel, historiadora que recentemente publicou um estudo sobre a polícia política PIDE.
"Irene Pimentel é, de acordo com o comunicado do júri, "uma das figuras mais notáveis da actual historiografia portuguesa". Com recentes trabalhos publicados em 2007 sobre a história da PIDE, a Mocidade Portuguesa Feminina, os judeus em Portugal e a história das organizações femininas do Estado Novo, Irene Pimentel estuda "temas difíceis e polémicos".
Os seus livros, afirma o júri, "nunca negam adesão à causa das liberdades e dos direitos humanos, num esforço de rigor intelectual e objectividade académica".
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Irene Flunser Pimentel: 57 anos, licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1984. Concluiu o mestrado em História Contemporânea (variante Século XX) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com a tese Contributos para a História das Mulheres no Estado Novo. É investigadora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa...
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É autora dos seguintes livros: História das Organizações Femininas do Estado Novo, "Textos relativos a Portugal" in Contai aos Vossos Filhos. Um Livro sobre o Holocausto na Europa, 1933-1945, de Stéphane Bruchfeld e Paul A. Levine, Fotobiografia de Manuel Gonçalves Cerejeira, Fotobiografia de José Afonso e "A PIDE/DGS, 1945-1974".

O Prémio Pessoa é um dos importantes galardões do país, atribuído anualmente a uma figura de nacionalidade portuguesa com "intervenção relevante na vida científica, artística ou literária". [link]

2007/10/07

Não Apaguem a Memória


O Movimento não Apaguem a Memória (NAM) assinalou a passagem do 2º aniversário da sua criação, que teve lugar no dia 5 de Outubro, com um novo impulso às principais iniciativas em curso. Para isso pediu audiências às entidades com elas relacionadas, o Presidente da Assembleia da República, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e o Ministro da Justiça.

A primeira ocorreu no dia 4 de Outubro tendo o dr. Jaime Gama recebido uma delegação do NAM da qual fizeram parte, a dr.ª Maria Barroso, o arquitecto Nuno Teutónio Pereira, a socióloga Lúcia Ezaguy Simões e eu próprio. No encontro participou também o pesidente da 1ª Comissão Parlamentar - Direitos, Liberdades e Garantias - deputado Osvaldo de Castro.

Esta audiência destinava-se a conhecer o ponto da situação relativa à Resolução parlamentar que vincule o Estado português ao “Dever de Memória” e a pedir a urgência possível na sua aprovação.

Ao Presidente da Assembleia da República foi entregue o seguinte memorando das diligências do NAM agora promovidas:

O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! nasceu de uma acção de protesto realizada no dia 5 de Outubro de 2005 por um grupo de cidadãos indignados com a demolição do antigo edifício-sede da polícia política portuguesa, a PIDE, e sua substituição por um condomínio fechado, sem que nele figurasse uma menção à memória do sofrimento causado pelo regime ditatorial, que vigorou durante quase 50 anos, aos portugueses que lutaram pela liberdade e ali foram submetidos a interrogatórios, vexames e tortura.

Desta iniciativa cívica resultou um vasto movimento de cidadãos, democrático, plural e aberto, motivado pela exigência da salvaguarda, investigação e divulgação da memória da resistência antifascista. Este Movimento considera ser responsabilidade do Estado a preservação condigna desta memória para o que lhe incumbe tomar iniciativas e apoiar outras que lhe sejam propostas e considere adequadas.

Pese embora a intensa mobilização cidadã, as diversas audiências havidas com representantes de todos os grupos parlamentares, com membros do Governo e com vereadores da Câmara Municipal de Lisboa, é forçoso admitir que o Movimento está longe de ter alcançado os resultados possíveis dois anos após a sua criação, nomeadamente nos casos que a seguir se mencionam.

Assembleia da República:O conjunto de acções levadas a cabo pelo Movimento culminou com a entrega, na Assembleia da República, de uma petição nacional que reuniu 6.007 subscritores – entre eles os antigos Presidentes da República, Jorge Sampaio e Mário Soares – e que foi objecto de debate parlamentar no passado dia 30 de Março.A petição deu origem a dois projectos de Resolução parlamentar e espera-se a aprovação de uma resolução que recomende um conjunto de medidas, de ordem política e jurídica, passíveis de criar condições para a concretização da memória da resistência à ditadura e da liberdade conquistada em Abril de 74.

Câmara Municipal de Lisboa:As negociações com vista à constituição de um espaço museológico no edifício ex-Sede da PIDE/DGS, em Lisboa, apesar do promotor imobiliário ter disponibilizado um espaço no futuro condomínio da Rua António Maria Cardoso e das diversas reuniões havidas do Movimento com a anterior vereação do Urbanismo e da Cultura da Câmara Municipal, não lograram qualquer resultado.A expectativa do Movimento é de que a nova Presidência da CML retome, o mais breve possível, este processo negocial, de forma a estabelecer bases sólidas para a elaboração do projecto arquitectónico e museológico já em discussão. Este projecto conta com a colaboração de um grupo técnico de arquitectos, designers e historiadores que apoiam esta iniciativa e do qual fazem parte, entre outros, o designer Henrique Cayatte e os arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Raul Hestnes Ferreira.

Ministério da Justiça:A promessa do Ministro da Justiça, em audiência havida com o Movimento, de ceder as instalações da antiga cadeia do Aljube criou a expectativa da criação do Museu da Resistência e da Liberdade que venha a constituir-se como importante centro dinamizador, em articulação com universidades e outras instituições e organizações que desenvolvem relevante actividade neste domínio. No entanto não foram ainda tomadas medidas no sentido da concretização desta expectativa.É nossa expectativa de que, a curto prazo, tendo em conta a audiência para o efeito já acordada, o Senhor Ministro da Justiça dê início a este processo.

No momento em que comemora dois anos de existência, o Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! Apela aos poderes públicos para que seja dado andamento a estas iniciativas e se mantenha aberto ao diálogo relativamente a outras iniciativas que lhe sejam colocadas.Passadas mais de três décadas após o derrube da Ditadura e a instauração da Democracia, urge adoptar medidas que tornem efectiva a preservação da memória da resistência e da liberdade conquistada pelo povo português em Abril de 74.

Lisboa, 5 de Outubro de 2007

2007/08/30

Histórias do Sol nascente



Uma leitora do Puxa Palavra enviou-nos esta fotografia com o título O acordar do estádio e explica que este é o estádio do Odivelas e aquele um Sol que terá pernoitado pelo Parque das Nações e se levanta por detrás da Alta de Lisboa.

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Aproveito a fotografia e a mensagem, acrescento-lhe mais alguma coisa e fica feito o post para o Memórias.

Entre o estádio e o Sol, num baixio invisível na fotografia, corre a Ribeira de Odivelas que em 1967, num outro 25 de Novembro, saltou as margens, avalanche de água e lodo, derrubou e matou. os Bombeiros Voluntários de Odivelas recolheram 64 cadáveres de habitantes ribeirinhos. Gente de poucos haveres, a dormir em casebres, meios escondidos em terras de ninguém, apanhados pela torrente e a escuridão da noite. Salazar tomou medidas drásticas à altura da tragédia deu ordens severas à censura para, nas notícias, não deixar passar nem mortos nem feridos. A ordem (fascista) foi mantida.

Mas a ribeira em si não é má e no seu quotidiano serviu dedicadamente com seu fio de água, desde a fundação, em 1295, o mosteiro de S. Dinis, casa das freiras bernardas, da Ordem de Cister. "As residentes eram filhas da nobreza, que não casavam por não disporem de bens, quando a família não lhes atribuía um dote. Não estando prometidas em casamento a algum nobre, as raparigas recolhiam à sombra protectora dos mosteiros, enriquecidos com as doações dos reis e dos nobres, para aí levarem uma vida segura, em termos económicos."

O tempo foi dando as suas voltas ao mosteiro, distante de Lisboa bem uma hora a cavalo e no reinado de D. João V o Magnânimo, um rei tão piedoso quão concupiscente e desprezível, a vida tinha outra animação dada pelas sortidas noturnas de fidalgos em visita a noviças e freiras mais maduras. O exemplo vinha de cima pois a Madre Paula era nem mais nem menos que a célebre amante do rei, de quem chegou a ter um filho para logo ser desprezada. A missa era ouvida pelo rei e por esta duvidosa "rainha" de uma câmara que se abriu para a frente para o púlpito da igreja, para a hóstia e o cálice e para trás, para o lupanar. Costumes da época. Nada de dramático afinal.

"Em 1834 extinguiram-se as ordens religiosas, durante a Monarquia Constitucional, e em 1902 o convento foi entregue ao infante D. Afonso que nele promoveu a instalação do actual Instituto de Ensino." Colégio interno para filhas de militares.

À tarde, 1971, com sol, o jardim do mosteiro era muito aprazível, pelo silêncio bucólico, pela restrita frequência de dois ou três idosos, um cão e dois gatos das casinhas de rés-do-chão circundantes. Os plátanos de braços retorcidos e torturados por podas a preceito, o coreto, o fio de água a fingir de cascata e na outra ponta do largo um cafézinho minúsculo, sem frequência certa nem suficiente. E nós. Eu a Maria e a Leonor com 2 anos. Era a nossa praia, o nosso cinema, o nosso centro comercial. E mesmo assim só a certas horas e de longe em longe. Mas só até 1972 porque a PIDE/DGS interessada, vá-se lá saber porquê, na minha presença não achou nada de mais interessante que colocar a minha fotografia nos jornais e na televisão e pedir que, por desconhecer a minha morada, alguém lhe desse qualquer pista para poder chegar à conversa comigo. A fotografia era antiga, os leitores de jornais e espectadores de televisão, estavam lá agora dispostos a fazer o trabalho da PIDE, nós lemos as notícias e vimos as imagens. Apenas deixámos de ir ao jardim. E preferir a noite ao dia para saídas de casa.

Nada de dramático afinal. Eram os costumes da época. Que acabariam em 1974.

2007/05/26

2007/05/15

Núcleo museológico do "Posto de Comando do 25 de Abril

No passado Sábado, pelas 10 horas um grupo de 30 "defensores da memória" visitou o núcleo museológico do "posto de comando do 25 de Abril" no quartel da Pontinha, Regimento de Engenharia nº.1, em 1974. Foi uma iniciativa do grupo de trabalho Roteiros da Memória, do movimento Não Apaguem a Memória, em que participo, dinamizado entre outros por Jorge Martins, licenciado em História e principal obreiro da iniciativa e deste núcleo museológico.
Sobre a visita escreveu o jornalista José Teles, membro do movimento e aqui apresento alguns extractos do seu relato (integral aqui) que inclui a saborosíssima conversa telefónica entre os ministros da Defesa e do Exército da ditadura.

Diz José Teles da visita e do "posto de comando":
“Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas… – uma memória discreta, como deve ser. Mas insuficiente.
Estivemos lá. Lá onde o 25 de Abril se coordenou e decidiu. Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, ao tempo uma discreta arrecadação militar pouco utilizada no meio do aquartelamento, hoje pouco mais do que isso, como vamos contar. Mas foi a “sala de operações” do movimento que derrubou a Ditadura, já lá vão 33 anos. Um local para lembrar o sucesso da Revolução dos Cravos. Para gozo e fruição do Povo como nós.
[relatos do levantamento militar]



25ABR74, das 03H05 às 04H20: temos a RTP connosco, o Mónaco caiu. México conquistado sem incidentes – é o Rádio Clube ocupado, já temos emissor. É nosso o Canadá – o Quartel-General passa para os revoltosos. Nova Iorque nas mãos do Povo – é o Aeroporto da Portela sob controlo.
...
RE 1, 25ABR74, 03H15: Palavra de honra? Isso é porreiro, pá! Exultante pela facilidade da ocupação da Emissora Nacional, o capitão Frederico Morais, do CTSC, liga para o PC: – Daqui Maior de Lima 18. Informo ocupámos Tóquio sem qualquer incidente. – OK. Parabéns e um abraço. Do outro lado, o cap Morais não pousa o telefone, hesita e insiste: – Alô, Óscar. Peço informe se estamos sós ou se já houve outras ocupações. – Afirmativo quanto à segunda parte da pergunta. Não estão isolados: Mónaco e México já caíram nas nossas mãos. A “seca linguagem das transmissões militares” cede perante a boa notícia: – Eh pá! Palavra de honra? Isso é porreiro, pá! – Ok, aguentem firme. Está tudo a correr bem.
...

E sobretudo como este? Ouçam bem (ah se houvesse gravação, uma reconstituição, o texto deste diálogo, nas paredes nuas do auditório, por exemplo!):



RE 1, 25ABR74, 03H16: Está tudo sossegado, senhor ministro… Os homens do MFA na EPTm interceptam e transmitem para o posto de comando esta conversa entre Silva e Cunha, ministro da Defesa, e o general Andrade e Silva, do Exército, o celebrado vencedor do golpe das Caldas um mês antes.



– Está, senhor general? Daqui ministro da Defesa.
– Como está, senhor ministro?
– Então ainda a trabalhar a uma hora destas?
– É verdade. É que tenho de me deslocar ao Alentejo e não estarei cá todo o dia, pelo que estou aqui a arrumar os papéis.
– Alguma coisa no Alentejo?
– Não, nada de importante. Mas interessa-me sobretudo ir até Beja, onde vou assistir a uma transmissão de comando e inspeccionar a Companhia de Ordem Pública. O comandante que lá está é muito amigo do homem do monóculo, a quem telefona muitas vezes. Por isso mandei mobilizá-lo para o Ultramar e coloquei lá outro de confiança, que hoje toma posse.
– Óptimo. E como é que está a situação? Corre tudo bem?
– A situação está sem alteração e perfeitamente sob controlo. Peço-lhe que não se preocupe, pois está tudo sossegado e não há qualquer problema em qualquer ponto do País. Se houvesse alguma coisa, era evidente que eu não ia hoje ao Alentejo, não acha?
– Claro, claro, só perguntei para ir para casa dormir descansado. Então não o maço mais. Boa viagem pelo Alentejo.
Comentário de Otelo:



“ Eram três horas e dezasseis minutos. Tínhamos na mão três objectivos fundamentais para a informação pública e o QG/RMP, raras eram as unidades do Exército que em todo o território não rolavam na estrada ou estavam prestes a fazê-lo, havia vários quartéis onde os comandantes se encontravam detidos ou tinham a sua acção neutralizada, e… os mais altos responsáveis militares do velho regime preparavam-se para dormir, tranquilos, as horas a que se sentiam com direito!”

Ainda assim o que está [no núcleo museológico] vale uma visita – palavra de repórter! A sala de operações tem em tamanho natural as estátuas dos “sete magníficos”, em cera e em acrílico, nos locais que ocuparam naquela noite:
· Otelo Saraiva de Carvalho, major de artilharia, no seu blusão de cabedal, de pé, junto ao mapa de 1973 do Automóvel Clube de Portugal

– “especial para sócios” – onde ia colocando as bandeirinhas assinalando os avanços de cada coluna militar pelas estradas do País.
· Amadeu Garcia dos Santos, tenente-coronel de transmissões, sozinho numa mesa, às voltas com os seus rádios, antenas e telefones.
· Fisher Lopes Pires, tenente-coronel de engenharia, com um telefone de discar, como eram todos naquele tempo, sempre com o cachimbo na boca, dizem os cronistas.
· Sanches Osório, major de engenharia, enviado por Vítor Alves como representante do Estado-Maior naquele grupo de comando, à esquerda de Lopes Pires, tomando notas.
· Luís Macedo, capitão de engenharia, responsável pela segurança do edifício, que protegeu com um perfeito “black-out”, com cobertores nas janelas, e organizara rondas permanentes no exterior: de pé, na única estátua de cera.
· Hugo dos Santos, major de transmissões, sozinho, ao lado, numa pequena mesa, com vários rádios.
· Vítor Crespo, capitão de fragata, de pé junto à porta do fundo, em uniforme de gala, azul-escuro, com botões dourados e o boné branco dos dias de festa Junto às paredes, armários, tão austeros como as mesas, com brochuras e encadernações, de ordens de serviço do quartel e outros documentos.
...
Resta referir que, no final da visita, Raimundo Narciso fez uma interessante exposição sobre a vida na clandestinidade que viveu durante muitos anos, onde se encontrava no dia 25 de Abril, precisamente no que é hoje o Concelho de Odivelas, e Jorge Martins, em nome do Movimento, referiu os objectivos inerentes ao espaço visitado: Preservar a Memória do local em que na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 foram dadas as directivas para que a Revolução fosse um êxito.

José Teles
(Imagens obtidas aqui e aqui )

2007/04/04

Capela do Rato - 1972

A luta de um grupo de católicos, de que os presentes na fotografia faziam parte, assumindo-se nessa condição, contra a guerra colnial e contra a ditadura, foi em 1972 muito importante, por mostrar que Marcelo Caetano e o regime fascista contava com a oposição de uma parte significativa dos crentes católicos. [Ver um relato dessa luta no blog "Não Apaguem a Memória"]

2007/03/21

De que se fala quando se fala em Salazar?

Agora, quando a propósito do concurso da RTP, tantos querem branquear o regime fascista (mesmo que atípico) de Salazar (vide o Diário de Notícias de hoje) é muito oportuna esta interessantíssima memória do salazarismo do engenheiro e professor catedrático (jubilado) do IST, António Brotas. Dedico-a em especial aos jovens que, mesmo que bem intensionados, falam de Salazar sem saberem bem do que falam.



SALAZAR E AS ELEIÇÕES


Agora que Salazar parece em vias de ganhar pela primeira vez uma "eleição", e logo contra o Afonso Henriques, convém lembrar como eram as votações quando ele era vivo.
No que diz respeito à aprovação da Constituição de 1933, foi simples. As abstenções contaram a favor. A maioria foi esmagadora. Os portugueses nem precisaram de sair de suas casas para exprimir a sua "vontade".
Nas eleições legislativas o método também era infalivel. Nas eleições de 1957, por exemplo, Lisboa, na véspera da eleição, os responsáveis pelas mesas eleitorais foram chamados ao Governo Civil onde receberam a indicação do resultado da votação do dia seguinte com uma margem de erro de 2 %. Assim, na freguesia de São João da Pedreira o resultado devia ser 56 ou 57 %.
No dia seguinte houve guarda republicanos que andaram pelas mesas de voto a levar pacotes de votos de "guardas que estavam de piquete", que foram metidos nas urnas pelos presidentes das mesas. Mas isto teve uma relativa pouca importância.
Perto do fim, depois de assegurada a ausência de testemunhas inconvenientes, os elementos das mesas multiplicaram o número total de eleitores por 0,57 e dividiram o resultado pelo número de páginas dos cadernos eleitorais. Tiveram, assim, o número de eleitores de cada página que "deviam votar".
Procederam, então, sem se preocupar em lançar votos nas urnas, à operação de "compor os cadernos eleitorais", descarregando conscenciosamente nos dois cadernos o conveniente número de eleitores que "tinham" votado. A operação foi acompanhada de comentários do tipo: " Este é comunista, mas desta vez vai votar no governo".
Depois, enviaram para o Governo Civil um documento a dizer: "Percentagem de eleitores: 57 %." Mas não se ficaram por aqui: abriram as urnas, contaram os votos, e enviaram para o Governo Civil um outro documento a dizer. " Percentagem real de eleitores, tantos por cento" .
No caso concreto de uma mesa, a percentagem real de eleitores, incluindo os votos dos "guardas de piquete" e 50 votos riscados foi de 28 %, mas os elementos da mesa enviaram um documento a dizer que a "percentagem real", era de 30 %. É provavel que, quando chegasse ao Salazar, esta percentagem já fosse um bocadito mais alta.
Fui testemunha parcial destes factos em 1957. Uma outra testemunha foi o escritor Luis Pacheco a quem envio, 50 anos depois, as minhas saudações e que devia ser agora ouvido. Como comentador da "eleição de Salazar" e porque pode confirmar factos importantes para esclarecer um país que, 30 anos depois do 25 de Abril, ainda está muito mal informado.
Que, ao falar nas eleições do "antigamente", ainda fala em chapeladas, como se a fraude "dos guardas que estavam de piquete" e de uns tantos legionários fosse a mais importante. Salazar era muito mais subtil. Quarenta anos depois de morto, ainda engana o país.
E não só. Quando em Novembro de 1957 cheguei a França vi que os jornais franceses analisavam a situação portuguesa a partir do resultado de 57% de votos obtidos pelo governo nas últimas eleições legislativas.
António Brotas

2007/03/19

Passar a Fronteira a Salto (1)

Vou deixar-vos aqui, em episódios, um relato na primeira pessoa, de "Carlos" que me autorizou a sua publicação. No fim da leitura se concluírem que este Carlos sou eu numa anterior encarnação não levo a mal. 
 
Na serra de Montezinho

Eram duas horas da manhã e estava escuro como breu. As sombras movediças dos arbustos recortadas no horizonte pareciam pessoas ou animais a aproximarem-se e desconfortavam mais os dezanove anos da Ana do que os meus vinte e oito já tidos por bastante adultos.


Estávamos no meio de uma serrania inóspita, entre Bragança e a raia de Espanha, sentados no chão e encostados a um cômoro de terra e urzes. Recostámo-nos para descansar pois o passador disse-nos que ia demorar. Fora buscar um carro para nos aproximar da fronteira que, apesar da marcha forçada de mais de três horas, ainda estava longe. O frio, apesar de estarmos no verão, fazia má companhia. Por isso, sem cerimónias, abraçámo-nos, aconchegámo-nos e enfrentámos mais seguros e quentes a incerteza da noite que tínhamos pela frente.
Conhecia-a desde a manhã, num encontro no Porto, em que me foi recomendado tomar conta da camarada, como competia à minha idade de maior experiência.
 
Estávamos em Agosto de 1966, um mês depois do meu encontro com Ângelo Veloso que restabeleceu a minha ligação à direcção do PCP, depois dos nove meses de clandestinidade em autogestão a que me vi obrigado na sequência da prisão de Rogério de Carvalho, meu “controleiro”.
Cabe dizer, num parêntesis, que Rogério de Carvalho apesar das torturas a que foi submetido pela PIDE não entregou nenhum segredo nem nenhum militante à polícia. Desde início decidiu que “não falava” com a PIDE. Uma atitude simples. Mas que só alguns conseguiram manter. Era-se levado até à beira da morte e só renunciando à vida era possível não ceder.
Eu e dezenas de outros militantes ficámos a dever então a nossa liberdade a Rogério de Carvalho. Só alguns, talvez algumas centenas, entre dezenas de milhar de prisioneiros torturados pelas polícias políticas do salazarismo, em meio século, conseguiram vencer essa prova que era afinal a fonte, quase exclusiva, das informações que davam à PIDE a possibilidade de conhecer e prender os que lutavam.
Íamos passar a fronteira a salto a caminho da União Soviética e
se esta era a minha segunda ida clandestina a Moscovo era, no entanto, a minha primeira saída do país sem passar pelo posto fronteiriço. Ia frequentar um curso político. Aprofundar os conhecimentos teóricos do comunismo, conhecer o socialismo real e esperar que a organização do PCP em Lisboa recuperasse da vaga de prisões e ficasse a saber quem estava ou não estava “tocado” pela PIDE..
A Ana também ia para a União Soviética mas não sabia ao certo o objectivo. Disseram-lhe que iria frequentar um curso do partido mas não sabia de que curso se tratava. Nem podíamos, sem infringir as regras conspirativas, discorrer sobre tal matéria. O segredo foi desvendado em Paris. Levávamos o mesmo destino. E a nós, em Moscovo, haveria de juntar-se a "Leonor" uns 15 dias mais tarde

O passador não era nosso conhecido. Em geral era alguém de confiança do partido, sem ser seu membro e que estava ali, na sua profissão, para ganhar o seu dinheiro. Fora-me apresentado pelo  Manuel da Silva, na esquina duma rua do Porto para nos podermos identificar em Bragança, ao fim do dia, em frente da igreja matriz.
— Poucas conversas — era a recomendação que ele me dera e provavelmente ao passador também.
Este era um homem de meia idade, enxuto de carnes e aspecto indefinido. Meio rural meio citadino. Esgalgado. De fugir à polícia, observei para a Ana, devagarinho. Duas ou três frases, foi tudo quanto lhe ouvi durante os trajectos citadinos e a longa marcha pelos caminhos agrestes da serra. De tempos a tempos, na montanha, fazia altos, mais para nosso descanso que dele. O passador sentava-se ou esperava de pé, não ao nosso lado como seria urbano e natural mas um pouco afastado como era talvez adequado para evitar conversas que, mesmo involuntariamente, acabam muitas vezes por denunciar identidades.
Manuel da Silva era o verdadeiro nome do funcionário do partido que veio ao meu encontro no Porto. Não nos conhecíamos e o seu nome só o vim a conhecer na primeira sede do Comité Central, em 1974, na Avenida António de Serpa, em Lisboa.
Manuel da Silva tinha então 54 anos de idade e vivia na clandestinidade há vinte anos. Como a Revolução demorou ainda oito anos chegou à democracia com o recorde de vinte e oito anos consecutivos na clandestinidade sem ser preso.
Foi responsável por tipografias, a elaboração técnica e a distribuição da imprensa clandestina. Agora era responsável pelo aparelho de fronteira para as entradas e saídas clandestinas de funcionários do partido. Alto, magro, prático e afável no trato.
Por qualquer razão que não cheguei a conhecer a minha saída do país sofreu uma paragem nos arredores do Porto. Só parti a caminho da fronteira dois dias depois e nesses dias fiquei numa casa clandestina que tinha exactamente a serventia de "hotel" para quem ia para o estrangeiro "a salto" e não tinha as ligações montadas para seguir de imediato para a raia de Espanha. Questões de coordenação.
O Manuel da Silva levou-me para os arredores do Porto de táxi, depois fiz um percurso num outro automóvel, de algum camarada, onde entrei e segui de olhos fechados talvez uma meia hora ainda que me tenha parecido muito mais porque sem paisagem o tempo alonga-se, coisa de que Einstein não se apercebeu na sua teoria da relatividade em que discorreu sobre tempo e espaço.
O nosso trajecto continuou depois a pé numa zona de pinhal ao encontro de outro funcionário que nos ia albergar em sua casa, durante os dois dias.
O funcionário em questão era afinal meu conhecido. Era nem mais nem menos o meu ex-colega e amigo do Instituto Superior Técnico que sete anos antes recolhera a minha assinatura para o abaixo-assinado que exigia a demissão de Salazar. Era o Armando Myre Dores que também interrompera o curso de engenharia para passar à clandestinidade, dois anos antes de mim. Foi uma surpresa agradável encontrar naquele difícil combate contra a ditadura alguém que nos permitia fazer a ponte da nossa vida actual para a vida normal que antes tínhamos.
Quando estávamos sós, o que afinal foi a menor parte do tempo, conversávamos sobre os amigos e velhos conhecidos, actualizávamos informações sobre as nossas vidas, o que se podia contar delas.
Estava com a companheira e um filho muito loiro que era a alegria da casa. Era o Eduardo mas não foi ali que soube o nome dele. Então, nem ele próprio podia saber como se chamava para que numa mudança de casa por razões conspirativas, tivesse também de, incompreensivelmente (para uma criança), de mudar de nome.


O caso da tia e da sobrinha
Uns quinze dias depois, outra clandestina, a “Leonor”, então com dezassete anos, haveria de fazer o mesmo percurso. Para ela também havia uma surpresa. Não encontrou um ex-colega da universidade, foi encontrar, sem que ninguém o suspeitasse, uma tia. A mulher do Armando era irmã da sua mãe. A Luzia não reconheceu a sobrinha que vira pela última vez sete anos atrás quando ela tinha apenas dez anos.
— Ai camarada tens uma voz mesmo igual à de uma pessoa minha conhecida. Mas também não me estou a lembrar de quem seja.
A Leonor reconheceu a tia imediatamente mas não se identificou sem saber se estaria proibida de o fazer tendo em conta as regras conspirativas da compartimentação. Ficou muito nervosa e sem ser capaz de recuperar rapidamente a serenidade. A tia, que não sabia que o era, julgava que o estado de incomodidade da sobrinha resultava, tendo em conta a sua aparente e real juventude, da pouca experiência da clandestinidade (ignorava que ela já levava quatro anos de vida clandestina). Então mimava-a e conversava com ela criando familiaridade.
— Que livro é este que andas a ler? — e folheou o livro da “Leonor”.
— Mas eu conheço esta letra! — disse num murmúrio ao observar uma folha de papel no meio do livro em que a “Leonor” fazia anotações, enquanto fazia um olhar de espanto para a “Leonor”.
Foi então aí que a sobrinha não resistiu mais à emoção.
— Mas então não vês que eu sou a tua sobrinha! — disse-lhe abraçando-a de lágrimas nos olhos.
As compartimentações e segredos na clandestinidade fraccionam as ligações e os conhecimentos. Alguns camaradas, nomeadamente do Secretariado do Comité Central, sabem que a Luzia, com os pseudónimos de Alda e de Filomena e aqui nesta casa com a falsa identificação de Maria Antónia Botelho é a companheira do Armando, de pseudónimo Mateus ou Castro ou Jerónimo e que dá pelo nome nesta instalação de Augusto dos Santos Botelho e que é tia da Maria Machado que usa o pseudónimo de Leonor. Mas no labirinto da clandestinidade o Manuel Rodrigues da Silva não sabe que a jovem funcionária que aí vem, da organização de Lisboa, é filha dum seu amigo que não vê há muitos anos e de cuja vida mais não soube. E menos sabia que ela era sobrinha da Luzia ou sequer que aquela companheira do Armando, que ele apenas conhece por Botelho e sabe ser nome falso, é cunhada do seu amigo Pulquério. Por isso de tanto se compartimentar e se esconder se podem pôr coisas a descoberto e apresentar a sobrinha à tia como se de duas desconhecidas se tratasse. E se não é o tom de voz que não engana, nem a letra que se reconhece, se não são as emoções que às vezes prevalecem, a tia não ficava a saber que tinha estado com a sobrinha. E a sobrinha tinha ficado o resto da vida arrependida de não ter tido aquela grande alegria de abraçar uma tia, que se encontra, na clandestinidade, por um acaso raro e incontrolado. Clandestinidade onde todos pertencem à mesma “família” mas... família mesmo é outra coisa.
Um ano depois casei com a Leonor e foi então que soube daquela proeza do acaso. E que a companheira do Armando na tal casa clandestina dos arredores do Porto era afinal tia dela.
Após dois dias em casa do Armando, falso Botelho, voltei ao Porto, guiado pelo Manuel da Silva, o mais clandestino dos clandestinos, onde me apresentou a Ana num encontro de rua e que agora estava ali comigo, entre penhascos, numa noite fria de verão.
Perdidos na Serra
 
Estávamos no meio duma daquelas serras cujo nome recitava na instrução primária, a Serra de Montezinho, entregues ao senhor Joaquim, nome que eu e a Ana lhe pusemos, baixinho, à distância de dez passos, com que sempre se nos adiantava. Não tínhamos bússola nem coordenadas que nos norteassem. Valia-nos naquelas primícias do nosso comunismo a absoluta e cândida confiança em tudo o que tivesse a mão do partido. Portanto ali estávamos sem réstia de insegurança, cabeceando, a tentar dormir um pouco, sem o agasalho sequer dum casaco, para em Espanha, daí a umas horas, não apresentarmos um aspecto demasiado tresnoitado e clandestino.
Como era de regra não levávamos nada connosco para o caso de alguém nos ver na zona raiana não pensar em emigrantes a dar o salto.
- Ah, não levam bagagem, é gente por aí em passeio!
Levávamos roupa de verão, e o que nos salvou, ou salvou a Ana, como adiante se verá, foi
eu levar num pequeno embrulho, umas calças sobresselentes, por sinal bem finas, para ter melhor aspecto em Espanha.
Aí por essas três, três e meia da manhã, fomos acordados pela aproximação dum fantasma. Assim surgiu a nossos olhos estremunhados, o operativo e saltitante senhor "Joaquim" que alargava o olhar, sem nos ver, enroscados, ali no escuro. Conduziu-nos a um automóvel preto e antigo que, silencioso, de nós se aproximara. Dissemos boa noite ao condutor depois de entrar, mas não tivemos resposta. Como era tudo tão
estranho também não levámos a mal. Calados lá fomos até um cruzamento térreo, umas dezenas de quilómetros mais acima, mais dentro da serra, mais longe de qualquer sítio, para meu espanto, pois esperava ir até uma vilória ou aldeia ou o que quer que fosse de mais urbano. Despejados ali nada dissemos ao sair. Éramos carga clandestina. O passador tartamudeou qualquer coisa para dentro do carro que, tal como nos surgiu, silenciosamente se esfumou à distância. No escuro tinha o perfil dos táxis lisboetas dos anos cinquenta, Austins ou Morris pretos e altos, que cruzavam Lisboa em correria desabalada, em tempos de trânsito desafogado, fintando peixeiras de canastra à cabeça e pregão sonoro. Não ultrapassariam os cinquenta quilómetros por hora mas isso para as velocidades da época impressionava mais que os cem de agora.
Recomeçámos a longa marcha. O descanso nocturno entorpeceu-me as pernas mas o passo lesto do nosso guia não nos dava oportunidade para molezas. Depois de muito andar extinguimos o trilho que vínhamos percorrendo. De estrada passámos a caminhos e de caminhos a carreiros e agora tínhamos pela frente um campo pedregoso que pouco tempo depois se transformou em denso matagal. Depois de muito contrariar esta ideia que me matutava na cabeça fui forçado a concluir que estávamos perdidos. O passador acendia uma lanterna eléctrica despudoradamente, em campo aberto, espalhando labaredas faiscantes pela serra fora, denunciando-nos, sem se prevenir dos guardas fronteiriços.
— Está feito com a Guarda Fiscal, para abrir desta maneira as goelas à pilha, exclamei para a Ana, sem que ele me pudesse ouvir. Não lhe disse nada, apesar de achar excessivo tanto à-vontade. Continha-me. Afinal sabia lá eu as regras da passagem de fronteira a salto! O nosso guia procurava atinar com os caminhos enquanto nós balançávamos por cima do carrascal sem chegar com os pés ao chão. As folhas rijas e espinhosas dos carrascos arranhavam fundo as pernas tenras da Ana e foi aí que as minhas calças de reserva, apesar de finas, lhe valeram.
Começava a preocupar-me com a situação e a embrenhar-me em maus pensamentos quando fomos assaltados, por uma matilha de cães enfurecidos. Tenho de confessar que apanhei um grande susto. Não por ser do estilo medricas que mal vê um humilde e proletário rafeiro o toma imediatamente por temível fera. Mas pelo inesperado, porque eram grandes, porque eram uns quatro ou cinco, porque não os via bem, porque ladravam enfurecidos.
— Quem vem lá! Quem vem lá! — levantaram-se vozes, à mistura com o ladrar dos cães.
Estávamos agora num terreno liso, debaixo de grandes árvores que me pareciam castanheiros. Os homens estavam no chão enrolados em mantas a dormir e estava claro que se tratava de camponeses que dormiam ali para prosseguir os trabalhos do campo, manhã cedo.
— Chit! Chit! Aqui! Aqui! — respondeu aos cães o senhor Joaquim, ao mesmo tempo que batia com a mão na perna.
— É gente de paz, não há novidade, não há novidade — sossegou assim, os do chão, com voz firme de quem já está habituado a estes percalços, o nosso experiente companheiro.
Os camponeses calaram os cães e nós mal refeitos do susto lá seguimos na peugada do nosso perdido passador.
Em Puebla de Sanabria, do lado de lá
 
Ao clarear do dia atravessámos a rua de uma pequenina aldeia. Nunca cheguei a perceber se era portuguesa ou espanhola. As casas feitas de pedra sobre pedra, à vista, eram as de Trás-os-Montes, mas do outro lado da raia, em terras de Astúrias, também eram assim. Uma velhota que nos surpreendeu àquela hora matutina desabafou, meio português, meio galego, meio castelhano, mais para ela que para nós, com certeza habituada à passagem por ali dos emigrantes, a caminho das Franças, das Suíças e dos Luxemburgos.
— Ai coitadinha, tão nova
e já nesta vida.
O que não diria ela se soubesse mesmo ao que íamos! A mim não ligou. Nem eu nem a Ana nos deixámos impressionar. A nossa vida era outra e bem boa. Éramos revolucionários! Cidadãos do Mundo Novo, da Sociedade do Futuro, construtores privilegiados do sistema socialista que haveria de substituir o capitalismo opressor e libertar a humanidade. Tínhamos a honra e privilégio de ser comunistas. O passador não nos ouviu. Nem nós abrimos a boca, mas se tivesse ouvido os nossos corações teria pensado que éramos muito novos e sabíamos pouco da vida. Muito novos! Tudo é relativo. Com a minha idade, 25 séculos antes, já Alexandre da Macedónia tinha conquistado um império do tamanho do mundo.
 
Eram quase oito horas, o nosso guia parou, dez metros à nossa frente, no meio duma comprida rua, praticamente deserta, duma povoação espanhola e virou-se para nós. Percebi que chegara ao fim a sua tarefa e estávamos perto de Puebla de Sanabria, a 40 quilómetros de Bragança, onde poderíamos apanhar o comboio que nos levaria para lá dos Pirinéus e das ditaduras ibéricas.
— Pronto — disse ele — a estação é lá ao fim. Um gesto vago apontava à esquerda e tanto podia ser já ali ao virar da esquina ou uns quilómetros adiante naquela direcção. Lá teria feito a sua ideia a nosso respeito e terá concluído, que não éramos nenhuns meninos de coro nem criancinhas para nos dar a papa na boca. Agora que nos desenrascássemos. Levantou a mão a meia altura. Avancei um passo para a apertar, mas não, não era isso, era um adeus lacónico, pois virou-se logo e lá foi, passada rápida, até à primeira viela em que deixou o nosso caminho.

2007/03/18

Coruche e Couço

Fotografias da visita a Coruche e ao Couço em 10 de Março de 2007, no âmbito da comemoração do Dia da Mulher promovida pelo movimento Não Apaguem a Memória.



Acto de "boas vindas" no anfiteatro da CM de Coruche vendo-se na mesa a antropóloga Paula Godinho com o seu livro Memórias da Resistência Rural no Sul - Couço 1958-1962 (Celta Editora Oeiras 2001), Maria Barroso, o presidente da CM de Coruche, Dionísio Mendes e Ana Gaspar.







No Couço junto ao monumento evocativo das lutas dos trabalhadores agrícolas contra a exploração e o fascismo.


2007/02/19

Portugal de há 50 anos (1)

Em 1960, Torres Novas tinha um quartel ocupado pelo Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2 que toda a gente conhecia por GACA 2.
E que era o GACA 2? Uns 500 homens, mais de metade deles envolvidos na instrução - uns 250 jovens, na maioria de origem rural, e uns 40 sargentos e oficiais quase todos milicianos, a ensiná-los. Um avantajado número de militares ocupado com os serviços e uma parte pequena verdadeiramente operacional e capaz de manejar as vetustas peças de artilharia pesada, prontas a fazer atravessar os céus e remotamente algum avião inimigo que se pusesse a jeito, com projécteis de 9 cm de diâmetro ou pronta a usar as peças anti-aéreas mais pequenas de 4 cm.
Capitão Virtuoso ao centro e os seus oficiais milicianos. à sua esq Raimundo Narciso e Ernâni Pinto Basto
O quartel com toda esta gente a comer, a beber, a fumar, a ir ao cinema, aos restaurantes, aos tascos, às tabernas e, com gana, à casa das putas, valia para a economia da vila tanto ou mais que toda a pequena indústria da região. Gastava-se o dinheiro do Zé sem que produzisse nada de verdadeiramente útil. O inimigo, o comunismo soviético, não passava cartão a Salazar e se mandasse aviões tinham que vir baixinho e muito devagar para, já não digo lhes acertarmos mas ao menos os assustar.
Depois de ter aprendido a defender a pátria em Vendas Novas, no ano anterior, na Escola Prática de Artilharia (EPA), onde tive de me apresentar interrompendo o curso em Lisboa; depois de ter aperfeiçoado a "arte da guerra" em Cascais, no Centro de Instrução de Artilharia Anti-Aérea e Costa, fui colocado naquela bonita vilória do alto Ribatejo, que então ainda não se sentia diminuida por não ostentar o título de cidade, para transmitir os meus nóveis conhecimentos ao povo empurrado para as fileiras.

Oficiais milicianos em 1960. Da esq. p. a dir, em 2º lugar o autor do post, a seguir Ernâni Pinto Basto, 
e só a ver-se a cabeça, José Bernardino. Com um joelho em terra José de Almada Negreiros (filho).

Às 8 horas em ponto os trinta recrutas vindos de todos o nosso Portugal, mas mais de Trás-os-Montes e Beira Alta - em três filas bem alinhadas eram apresentadas ao oficial miliciano pelo cabo miliciano que previamente ordenara "firme" e "sentido" em tom marcial: "fiiirme", "seeeeennnn-tap". O Aspirante a Oficial Miliciano (o primeiro grau da classe de oficiais) fazia a continência e mandava descansar com a ordem de "à vontade". Os "recrutas" ainda mal aprumados e pouco hirtos pela curta experiência castrense abriam as pernas, punham as mãos atrás das costas e ali ficavam a ouvir o futrica feito oficial a dar-lhes as primeiras explicações sobre as artes militares que ali se resumiam, nos primeiros tempos a bem marchar na parada e a ganhar reflexos de obediência instantânea às ordens que lhes dessem.

O 33, de nome Paulo e um excelente rapaz de uma terrinha de Trás-os-Montes a que se tinha acesso não por uma destas modernas auto-estradas em que Cavaco e Guterres gastaram o dinheiro com que deveriam, segundo as melhores opiniões, ter instruído o povo, mas por umas veredas só transitáveis de burro, muar ou a pé posto.
O Paulo ficou sob a minha directa protecção porque a sua excessiva falta de jeito para a "ordem unida" era motivo de troça da rapaziada que não respeitava atavismos, costumes ou atrasos regionais.
O 33 não conseguia marchar. Fazia-lhe confusão aquilo de os braços balançarem ao ritmo das pernas e tendia a atirar com os dois braços para a frente ou para trás ao mesmo tempo o que dava um ar desengonçado ao andar e pictoresco às nossas aulas. Também não conseguia saltar a pés juntos por cima de um muro com 50 cm de altura. E trazia uns grossos volumes a empanturrarem-lhe os bolsos das calças o que tudo junto tornava o nosso esforçado Paulo objecto de risota dos colegas fora das horas de instrução e dos olhares dos superiores. Isto de "superiores" era assim que se dizia. Agora lá se eram ou não resta averiguar.
Quando fazíamos os intervalos regulamentares de 10 minutos após os 50 de instrução o nosso 33 tirava dos bolsos um temível canivete e uma grossa bucha de pão caseiro que trouxera da terra com presunto e ali, sem mais cerimónias, compensava a magreza do rancho.
No final da recruta o 33 estava em forma. Não digo com a destreza e elegância de gazela mas marchava como os outros, saltava o muro e vencera o pavor que o cegava de ter de saltar para o galho, prova que desfeiteava muito peralvilho da cidade.

Recrutas do meu pelotão de instrução. O dono do blog, comandante desta tropa é o 4º da esq. Paulo à direita, em pé.

No fim de semana a Bateria (força de 120 homens de artilharia) oferecia 1 bilhete de cinema por pelotão (cerca de 30 recrutas ou praças) para o melhor recruta. Nem sempre me era fácil avaliar com rigor a quem dar o prémio. Mas o nosso Paulo ainda não estava no "pelotão da frente". Por isso, certa vez, atendendo aos seus notáveis progressos ofereci-lhe, pago por mim, um bilhete para o cinema.
Foi quase uma aventura para o nosso esforçado trasmontano. Assenta-te!! Gritavam os colegas ou outros torrienses das filas de trás. E ele nada, dois palmos de cabeça acima dos outros. Senta-te, insistiam já ameaçadores. Mas já estou sentado!... Oh camelo! roda o assento para baixo.
No intervalo da fita o 33 foi às casas de banho. O aparato era antigo. Ou moderno para a altura e ao lado dos urinois tinham colocado uns bidés que ali ficavam mais ou menos excedentários.
O Paulo viu os locais próprios para "verter águas" ocupados e não considerando os bidés menos próprios usou, sem a mais longínqua malícia, um destes para se aliviar. O drama é que teve o azar de na casa de banho ter entrado nada menos que o comandante, um ten-coronel, muito cumpridor, muito zeloso, e competente pelo menos na administração do quartel mas quanto a linguagem... o máximo de polimento que lhe emprestava era com máximas quarteleiras do género: "quando o general visita a unidade e passa revista o que é preciso é estar lavado por baixo" que era uma forma de dizer que queria casernas limpas, sem lixo nem pó debaixo dos beliches e tarimbas dos soldados, cozinha impecável e tudo no seu lugar.
Na segunda-feira o capitão Virtuoso, comandante da 3ª bateria de instrução a que eu pertencia, chamou-me ao seu gabinete. "Dá licença meu capitão". Era eu, aprumado, em continência, depois de um forte bater de tacões à porta do gabinete. "Entre nosso aspirante. Sabe! Você tem lá um recruta, tenho aqui o número... é o 33, que vai ter de levar uma valente porrada. É uma ordem do nosso comandante. Apanhou-o na casa de banho do cinema, ontem, a mijar no bidé. Tem de levar uma porrada exemplar que não queremos aqui na terra má imagem do quartel."
Bom... se me dá licença eu vou falar com o nosso comandante. Já me contaram o que se passou. O 33 nunca viu um cinema e não faz ideia do que seja ou para que serve um bidé. Se me autorizar eu falo com o nosso comandante.
Livrei o Paulo de mais este apuro.
No fim da recruta recusei um presunto que me trouxe. Um presunto enorme e delicioso como depois comprovei. Ficou muito ofendido e disse-me que não podia aceitar a minha recusa. Seria uma ofensa não só para ele mas para os pais que tinham muita consideração por mim. Suponho que inventava. Os pais não tinham a mais ligeira ideia de quem era. Chegámos a um acordo. Eu ficava com uma parte e ele organizava com o resto uma festa com os colegas do pelotão a que eu assistiria.