Anos 50, Vilar do Cadaval. Da aldeia víamos ao longe imponente, distante e nítida levantar-se a serra de Montejunto. No cimo só pedras e carrasco. Na encosta, a preencher os baixios, árvores frondosas e antigas. Quem visitava a serra sabia que eram carvalhos, castanheiros e pinheiros mansos. Mais abaixo, uma linha de cerros arredondados, com os moinhos de vento a quebrarem a linha do horizonte, escondiam o Avenal, o Pereiro e a Tojeira. Depois já bem próximo, à distância de uma mão estendida, a capelinha que depois deu lugar à igreja nova feita nos anos cinquenta com a cotização dos paroquianos. O meu pai também participou no grande movimento da freguesia e contribuiu mas só para o relógio - dizia - porque todos sabiam que era ateu. Relógio grande que ainda hoje dá as horas e as vemos quando olhamos lá bem para o alto.
A toda a volta os vinhedos. As vinhas
subiam pelas encostas, ocupavam as várzeas e entravam pela charneca a dentro, a
expulsar, lá para trás, para o lado do Outeiro da Cabeça, os pinhais que
outrora abrigaram os lobisomens, as bruxas e os salteadores, do imaginário dos
nossos avós.
O sol abrasava, punha a atmosfera em vibração e tornava difusas as vinhas carregadas de uvas à espera da vindima.
Todos os anos em Setembro, a aldeia começava a encher-se de malteses que vinham para as vindimas. Depois era aquele corrupio de carroças com tinas cheias de uvas bem calcadas puxadas por mulas e machos e também por cavalos quando o proprietário era mais abastado ou opinioso.
Os malteses vistos ao longe, os mais
desgraçados, a par de comiseração inspiravam também repulsa pelas bebedeiras. Observados de perto, eram diferentes. Eram homens à procura
de uma tábua de salvação no naufrágio que atingia as suas vidas.
A nossa casa de habitação tinha a seu lado,
contígua, a adega. Prolongando esta, sucediam-se os lagares com prensas metálicas que substituíram
os antigos fusos.
Aproximava-me dos lagares a ouvir as conversas dos malteses e por vezes interrogava-os e eles desfiavam as suas vidas. Alguns eram já habituais, ano após ano vinham da região de Alcobaça.
Ouvia-os falar dos filhos, da leira de terra, que alguns também tinham, das dívidas, do desamparo, da precariedade da sua existência sempre à beira do abismo, da vida mortificada de trabalho sem esperança para a qual eles esperavam algum merecido milagre.
Vinham, aqueles, que em nossa casa trabalhavam, da região de Alcobaça. Há vários anos que vinham e observava os que se aboletavam durante as três ou quatro semanas das vindimas, na longa arrecadação que se seguia aos lagares. Pela aldeiam circulavam então muitos malteses para as vindimas e por vezes traziam os filhos, ainda crianças, .
Traziam pães muito grandes, feitos em casa, para cinco semanas. Comiam batatas e sardinhas, invariavel-mente durante todo o mês. E uvas.
Dormiam nos palheiros. Alguns, sem "dono", dormiam debaixo das pontes do rio seco. Ouvia-lhes as histórias. À noite ao serão, no lagar, ou à ceia em torno da fogueira onde assavam as sardinhas. Falavam dos filhos, dos pais, dos vizinhos, de pobrezas, de festas da padroeira, de procissões, de zangas, de pancadarias, de proezas e forças. Eram religiosos e tinham fé. Numa Justiça no Além. Eu dava-lhes razão sem lhes dizer. E pensava no direito que tinham a mais justiça na única vida que me parecia terem, a que levavam nesta amortalhada Terra e naquelas vinhas cheias de uvas de outros.
— Oh senhor Luís então agora que vai fazer?
O senhor Luís tinha trinta e seis anos, era o que ele dizia, mas eu dava-lhe mais. Talvez fosse por causa da barba de vários dias que ele só a fazia ao Domingo, a roupa escura e suja do mosto das uvas, do rosto vincado de muitas labutas com a vida. Era quase um amigo da família. Já era o quarto ano seguido que vinha para as vindimas do meu pai. Trabalhava muito e depressa. Gastava as forças como se trabalhasse para ele. Por isso era muito apreciado e na nossa vindima ele era uma espécie de capataz.
Acabara de lhe ler a carta da mulher, escrita por uma vizinha. Uma carta! Nunca tal tinha acontecido, nem a ele que era maltês nem a mim que apesar dos meus trezes anos já levava alguns anos a assistir a vindimas e lagaragens e a conversas de malteses de origens, falares e idades muito variadas. Pela aldeia passavam de manhãzinha muito cedo, com os pais, já de enxada às costas crianças com os seus 11 anos a caminho da Quinta do Gradil.
Por vezes avantajava-me e saltava para os lagares, enterrava as pernas nas uvas ou ia às vinhas nas carroças e vindimava, com uma tesoura grande de mais, para os cestos de verga dos homens.
Agora estava eu ali especado, junto ao lagar, de carta na mão, olhando incrédulo para o Sr Luís... apontei-lhe a carta, depois de duvidoso me certificar bem que era para ele. Mas estava lá tudo, o nome dele, a nossa morada e o remetente da Praxedes, sua mulher. Ao Sr. Luís passou uma nuvem de espanto e ansiedade pelo rosto. O coração repentinamente duro não o deixava falar. Depois de um silêncio, ainda a levantar as pernas bem alto, ritmadas, para pisar e repisar as uvas tintas, em balsa, que enchiam com o mosto o lagar até acima, pediu-me, por fim, com um nó na garganta:
— O patrãozinho leia-me essas letras se faz favor.
Lembro-me que se aproximou do fuso e o segurou para receber as más notícias com algum amparo. Só podiam ser más notícias e bem más que maltês não recebe cartas de alegrias. Não é só a despesa de carta e selo e o incómodo de alguém que saiba escrever é a agonia de ter de se soletrar e expor, à frente de estranhos, numa e noutra ponta do correio, sentimentos, dores, desabafos, recomendações coisas que se devem manter em resguardo.
Não havia mortes, nem hospitalizados, felizmente. Receara em primeiro lugar pelo filho, da minha idade. No entanto o caso era grave. Pelos prejuízos, pela ofensa, pelo desafio que representava e pelo que havia de se seguir que o Sr. Luís não era homem para deixar as coisas assim. Tinham assaltado a casa de noite e tinham roubado a vitelinha que andava a criar para venda e fazer algum dinheiro que o salvasse dos maiores apertos. E tinham morto a Faísca, uma cadela que era um ás para os coelhos na época da caça e a bem dizer era parte da família. Aproveitavam-se de estar fora porque com ele em casa não se atreviam.
Pareceu-me que ia chorar mas não. O
senhor Luís não era pessoa para chorar. Não chorou e não disse nada. Não se
queixou. Disse só entre dentes: "hão de mas pagar". Mais para ele
do que para mim que ainda não era gente, nem para os outros dois companheiros
de lagar que não eram da mesma terra. Recomeçou a pisar a uva lentamente, com a
cabeça baixa e o olhar cada vez mais turvo. Depois pediu-me para chamar o “paizinho”.
Saiu do lagar, as calças arregaçadas quase até à virilha e molhadas de mosto,
tirou dois baldes de água do poço para uma celha e lavou as pernas vermelhas do
mosto das uvas tintas e restos de engaço. E foi preparar o alforge que estava
no palheiro com as roupas velhas e sujas e o pão. O pão para a semana que ainda
faltava.
Depois o meu pai pagou-lhe as jornas e
ele pediu para dizer ao António, seu cunhado, que tinha vindo com ele e estava
na vinha, que se tinha ido embora.