2007/03/21

De que se fala quando se fala em Salazar?

Agora, quando a propósito do concurso da RTP, tantos querem branquear o regime fascista (mesmo que atípico) de Salazar (vide o Diário de Notícias de hoje) é muito oportuna esta interessantíssima memória do salazarismo do engenheiro e professor catedrático (jubilado) do IST, António Brotas. Dedico-a em especial aos jovens que, mesmo que bem intensionados, falam de Salazar sem saberem bem do que falam.



SALAZAR E AS ELEIÇÕES


Agora que Salazar parece em vias de ganhar pela primeira vez uma "eleição", e logo contra o Afonso Henriques, convém lembrar como eram as votações quando ele era vivo.
No que diz respeito à aprovação da Constituição de 1933, foi simples. As abstenções contaram a favor. A maioria foi esmagadora. Os portugueses nem precisaram de sair de suas casas para exprimir a sua "vontade".
Nas eleições legislativas o método também era infalivel. Nas eleições de 1957, por exemplo, Lisboa, na véspera da eleição, os responsáveis pelas mesas eleitorais foram chamados ao Governo Civil onde receberam a indicação do resultado da votação do dia seguinte com uma margem de erro de 2 %. Assim, na freguesia de São João da Pedreira o resultado devia ser 56 ou 57 %.
No dia seguinte houve guarda republicanos que andaram pelas mesas de voto a levar pacotes de votos de "guardas que estavam de piquete", que foram metidos nas urnas pelos presidentes das mesas. Mas isto teve uma relativa pouca importância.
Perto do fim, depois de assegurada a ausência de testemunhas inconvenientes, os elementos das mesas multiplicaram o número total de eleitores por 0,57 e dividiram o resultado pelo número de páginas dos cadernos eleitorais. Tiveram, assim, o número de eleitores de cada página que "deviam votar".
Procederam, então, sem se preocupar em lançar votos nas urnas, à operação de "compor os cadernos eleitorais", descarregando conscenciosamente nos dois cadernos o conveniente número de eleitores que "tinham" votado. A operação foi acompanhada de comentários do tipo: " Este é comunista, mas desta vez vai votar no governo".
Depois, enviaram para o Governo Civil um documento a dizer: "Percentagem de eleitores: 57 %." Mas não se ficaram por aqui: abriram as urnas, contaram os votos, e enviaram para o Governo Civil um outro documento a dizer. " Percentagem real de eleitores, tantos por cento" .
No caso concreto de uma mesa, a percentagem real de eleitores, incluindo os votos dos "guardas de piquete" e 50 votos riscados foi de 28 %, mas os elementos da mesa enviaram um documento a dizer que a "percentagem real", era de 30 %. É provavel que, quando chegasse ao Salazar, esta percentagem já fosse um bocadito mais alta.
Fui testemunha parcial destes factos em 1957. Uma outra testemunha foi o escritor Luis Pacheco a quem envio, 50 anos depois, as minhas saudações e que devia ser agora ouvido. Como comentador da "eleição de Salazar" e porque pode confirmar factos importantes para esclarecer um país que, 30 anos depois do 25 de Abril, ainda está muito mal informado.
Que, ao falar nas eleições do "antigamente", ainda fala em chapeladas, como se a fraude "dos guardas que estavam de piquete" e de uns tantos legionários fosse a mais importante. Salazar era muito mais subtil. Quarenta anos depois de morto, ainda engana o país.
E não só. Quando em Novembro de 1957 cheguei a França vi que os jornais franceses analisavam a situação portuguesa a partir do resultado de 57% de votos obtidos pelo governo nas últimas eleições legislativas.
António Brotas

2007/03/19

Passar a Fronteira a Salto (1)

Vou deixar-vos aqui, em episódios, um relato na primeira pessoa, de "Carlos" que me autorizou a sua publicação. No fim da leitura se concluírem que este Carlos sou eu numa anterior encarnação não levo a mal. 
 
Na serra de Montezinho

Eram duas horas da manhã e estava escuro como breu. As sombras movediças dos arbustos recortadas no horizonte pareciam pessoas ou animais a aproximarem-se e desconfortavam mais os dezanove anos da Ana do que os meus vinte e oito já tidos por bastante adultos.


Estávamos no meio de uma serrania inóspita, entre Bragança e a raia de Espanha, sentados no chão e encostados a um cômoro de terra e urzes. Recostámo-nos para descansar pois o passador disse-nos que ia demorar. Fora buscar um carro para nos aproximar da fronteira que, apesar da marcha forçada de mais de três horas, ainda estava longe. O frio, apesar de estarmos no verão, fazia má companhia. Por isso, sem cerimónias, abraçámo-nos, aconchegámo-nos e enfrentámos mais seguros e quentes a incerteza da noite que tínhamos pela frente.
Conhecia-a desde a manhã, num encontro no Porto, em que me foi recomendado tomar conta da camarada, como competia à minha idade de maior experiência.
 
Estávamos em Agosto de 1966, um mês depois do meu encontro com Ângelo Veloso que restabeleceu a minha ligação à direcção do PCP, depois dos nove meses de clandestinidade em autogestão a que me vi obrigado na sequência da prisão de Rogério de Carvalho, meu “controleiro”.
Cabe dizer, num parêntesis, que Rogério de Carvalho apesar das torturas a que foi submetido pela PIDE não entregou nenhum segredo nem nenhum militante à polícia. Desde início decidiu que “não falava” com a PIDE. Uma atitude simples. Mas que só alguns conseguiram manter. Era-se levado até à beira da morte e só renunciando à vida era possível não ceder.
Eu e dezenas de outros militantes ficámos a dever então a nossa liberdade a Rogério de Carvalho. Só alguns, talvez algumas centenas, entre dezenas de milhar de prisioneiros torturados pelas polícias políticas do salazarismo, em meio século, conseguiram vencer essa prova que era afinal a fonte, quase exclusiva, das informações que davam à PIDE a possibilidade de conhecer e prender os que lutavam.
Íamos passar a fronteira a salto a caminho da União Soviética e
se esta era a minha segunda ida clandestina a Moscovo era, no entanto, a minha primeira saída do país sem passar pelo posto fronteiriço. Ia frequentar um curso político. Aprofundar os conhecimentos teóricos do comunismo, conhecer o socialismo real e esperar que a organização do PCP em Lisboa recuperasse da vaga de prisões e ficasse a saber quem estava ou não estava “tocado” pela PIDE..
A Ana também ia para a União Soviética mas não sabia ao certo o objectivo. Disseram-lhe que iria frequentar um curso do partido mas não sabia de que curso se tratava. Nem podíamos, sem infringir as regras conspirativas, discorrer sobre tal matéria. O segredo foi desvendado em Paris. Levávamos o mesmo destino. E a nós, em Moscovo, haveria de juntar-se a "Leonor" uns 15 dias mais tarde

O passador não era nosso conhecido. Em geral era alguém de confiança do partido, sem ser seu membro e que estava ali, na sua profissão, para ganhar o seu dinheiro. Fora-me apresentado pelo  Manuel da Silva, na esquina duma rua do Porto para nos podermos identificar em Bragança, ao fim do dia, em frente da igreja matriz.
— Poucas conversas — era a recomendação que ele me dera e provavelmente ao passador também.
Este era um homem de meia idade, enxuto de carnes e aspecto indefinido. Meio rural meio citadino. Esgalgado. De fugir à polícia, observei para a Ana, devagarinho. Duas ou três frases, foi tudo quanto lhe ouvi durante os trajectos citadinos e a longa marcha pelos caminhos agrestes da serra. De tempos a tempos, na montanha, fazia altos, mais para nosso descanso que dele. O passador sentava-se ou esperava de pé, não ao nosso lado como seria urbano e natural mas um pouco afastado como era talvez adequado para evitar conversas que, mesmo involuntariamente, acabam muitas vezes por denunciar identidades.
Manuel da Silva era o verdadeiro nome do funcionário do partido que veio ao meu encontro no Porto. Não nos conhecíamos e o seu nome só o vim a conhecer na primeira sede do Comité Central, em 1974, na Avenida António de Serpa, em Lisboa.
Manuel da Silva tinha então 54 anos de idade e vivia na clandestinidade há vinte anos. Como a Revolução demorou ainda oito anos chegou à democracia com o recorde de vinte e oito anos consecutivos na clandestinidade sem ser preso.
Foi responsável por tipografias, a elaboração técnica e a distribuição da imprensa clandestina. Agora era responsável pelo aparelho de fronteira para as entradas e saídas clandestinas de funcionários do partido. Alto, magro, prático e afável no trato.
Por qualquer razão que não cheguei a conhecer a minha saída do país sofreu uma paragem nos arredores do Porto. Só parti a caminho da fronteira dois dias depois e nesses dias fiquei numa casa clandestina que tinha exactamente a serventia de "hotel" para quem ia para o estrangeiro "a salto" e não tinha as ligações montadas para seguir de imediato para a raia de Espanha. Questões de coordenação.
O Manuel da Silva levou-me para os arredores do Porto de táxi, depois fiz um percurso num outro automóvel, de algum camarada, onde entrei e segui de olhos fechados talvez uma meia hora ainda que me tenha parecido muito mais porque sem paisagem o tempo alonga-se, coisa de que Einstein não se apercebeu na sua teoria da relatividade em que discorreu sobre tempo e espaço.
O nosso trajecto continuou depois a pé numa zona de pinhal ao encontro de outro funcionário que nos ia albergar em sua casa, durante os dois dias.
O funcionário em questão era afinal meu conhecido. Era nem mais nem menos o meu ex-colega e amigo do Instituto Superior Técnico que sete anos antes recolhera a minha assinatura para o abaixo-assinado que exigia a demissão de Salazar. Era o Armando Myre Dores que também interrompera o curso de engenharia para passar à clandestinidade, dois anos antes de mim. Foi uma surpresa agradável encontrar naquele difícil combate contra a ditadura alguém que nos permitia fazer a ponte da nossa vida actual para a vida normal que antes tínhamos.
Quando estávamos sós, o que afinal foi a menor parte do tempo, conversávamos sobre os amigos e velhos conhecidos, actualizávamos informações sobre as nossas vidas, o que se podia contar delas.
Estava com a companheira e um filho muito loiro que era a alegria da casa. Era o Eduardo mas não foi ali que soube o nome dele. Então, nem ele próprio podia saber como se chamava para que numa mudança de casa por razões conspirativas, tivesse também de, incompreensivelmente (para uma criança), de mudar de nome.


O caso da tia e da sobrinha
Uns quinze dias depois, outra clandestina, a “Leonor”, então com dezassete anos, haveria de fazer o mesmo percurso. Para ela também havia uma surpresa. Não encontrou um ex-colega da universidade, foi encontrar, sem que ninguém o suspeitasse, uma tia. A mulher do Armando era irmã da sua mãe. A Luzia não reconheceu a sobrinha que vira pela última vez sete anos atrás quando ela tinha apenas dez anos.
— Ai camarada tens uma voz mesmo igual à de uma pessoa minha conhecida. Mas também não me estou a lembrar de quem seja.
A Leonor reconheceu a tia imediatamente mas não se identificou sem saber se estaria proibida de o fazer tendo em conta as regras conspirativas da compartimentação. Ficou muito nervosa e sem ser capaz de recuperar rapidamente a serenidade. A tia, que não sabia que o era, julgava que o estado de incomodidade da sobrinha resultava, tendo em conta a sua aparente e real juventude, da pouca experiência da clandestinidade (ignorava que ela já levava quatro anos de vida clandestina). Então mimava-a e conversava com ela criando familiaridade.
— Que livro é este que andas a ler? — e folheou o livro da “Leonor”.
— Mas eu conheço esta letra! — disse num murmúrio ao observar uma folha de papel no meio do livro em que a “Leonor” fazia anotações, enquanto fazia um olhar de espanto para a “Leonor”.
Foi então aí que a sobrinha não resistiu mais à emoção.
— Mas então não vês que eu sou a tua sobrinha! — disse-lhe abraçando-a de lágrimas nos olhos.
As compartimentações e segredos na clandestinidade fraccionam as ligações e os conhecimentos. Alguns camaradas, nomeadamente do Secretariado do Comité Central, sabem que a Luzia, com os pseudónimos de Alda e de Filomena e aqui nesta casa com a falsa identificação de Maria Antónia Botelho é a companheira do Armando, de pseudónimo Mateus ou Castro ou Jerónimo e que dá pelo nome nesta instalação de Augusto dos Santos Botelho e que é tia da Maria Machado que usa o pseudónimo de Leonor. Mas no labirinto da clandestinidade o Manuel Rodrigues da Silva não sabe que a jovem funcionária que aí vem, da organização de Lisboa, é filha dum seu amigo que não vê há muitos anos e de cuja vida mais não soube. E menos sabia que ela era sobrinha da Luzia ou sequer que aquela companheira do Armando, que ele apenas conhece por Botelho e sabe ser nome falso, é cunhada do seu amigo Pulquério. Por isso de tanto se compartimentar e se esconder se podem pôr coisas a descoberto e apresentar a sobrinha à tia como se de duas desconhecidas se tratasse. E se não é o tom de voz que não engana, nem a letra que se reconhece, se não são as emoções que às vezes prevalecem, a tia não ficava a saber que tinha estado com a sobrinha. E a sobrinha tinha ficado o resto da vida arrependida de não ter tido aquela grande alegria de abraçar uma tia, que se encontra, na clandestinidade, por um acaso raro e incontrolado. Clandestinidade onde todos pertencem à mesma “família” mas... família mesmo é outra coisa.
Um ano depois casei com a Leonor e foi então que soube daquela proeza do acaso. E que a companheira do Armando na tal casa clandestina dos arredores do Porto era afinal tia dela.
Após dois dias em casa do Armando, falso Botelho, voltei ao Porto, guiado pelo Manuel da Silva, o mais clandestino dos clandestinos, onde me apresentou a Ana num encontro de rua e que agora estava ali comigo, entre penhascos, numa noite fria de verão.
Perdidos na Serra
 
Estávamos no meio duma daquelas serras cujo nome recitava na instrução primária, a Serra de Montezinho, entregues ao senhor Joaquim, nome que eu e a Ana lhe pusemos, baixinho, à distância de dez passos, com que sempre se nos adiantava. Não tínhamos bússola nem coordenadas que nos norteassem. Valia-nos naquelas primícias do nosso comunismo a absoluta e cândida confiança em tudo o que tivesse a mão do partido. Portanto ali estávamos sem réstia de insegurança, cabeceando, a tentar dormir um pouco, sem o agasalho sequer dum casaco, para em Espanha, daí a umas horas, não apresentarmos um aspecto demasiado tresnoitado e clandestino.
Como era de regra não levávamos nada connosco para o caso de alguém nos ver na zona raiana não pensar em emigrantes a dar o salto.
- Ah, não levam bagagem, é gente por aí em passeio!
Levávamos roupa de verão, e o que nos salvou, ou salvou a Ana, como adiante se verá, foi
eu levar num pequeno embrulho, umas calças sobresselentes, por sinal bem finas, para ter melhor aspecto em Espanha.
Aí por essas três, três e meia da manhã, fomos acordados pela aproximação dum fantasma. Assim surgiu a nossos olhos estremunhados, o operativo e saltitante senhor "Joaquim" que alargava o olhar, sem nos ver, enroscados, ali no escuro. Conduziu-nos a um automóvel preto e antigo que, silencioso, de nós se aproximara. Dissemos boa noite ao condutor depois de entrar, mas não tivemos resposta. Como era tudo tão
estranho também não levámos a mal. Calados lá fomos até um cruzamento térreo, umas dezenas de quilómetros mais acima, mais dentro da serra, mais longe de qualquer sítio, para meu espanto, pois esperava ir até uma vilória ou aldeia ou o que quer que fosse de mais urbano. Despejados ali nada dissemos ao sair. Éramos carga clandestina. O passador tartamudeou qualquer coisa para dentro do carro que, tal como nos surgiu, silenciosamente se esfumou à distância. No escuro tinha o perfil dos táxis lisboetas dos anos cinquenta, Austins ou Morris pretos e altos, que cruzavam Lisboa em correria desabalada, em tempos de trânsito desafogado, fintando peixeiras de canastra à cabeça e pregão sonoro. Não ultrapassariam os cinquenta quilómetros por hora mas isso para as velocidades da época impressionava mais que os cem de agora.
Recomeçámos a longa marcha. O descanso nocturno entorpeceu-me as pernas mas o passo lesto do nosso guia não nos dava oportunidade para molezas. Depois de muito andar extinguimos o trilho que vínhamos percorrendo. De estrada passámos a caminhos e de caminhos a carreiros e agora tínhamos pela frente um campo pedregoso que pouco tempo depois se transformou em denso matagal. Depois de muito contrariar esta ideia que me matutava na cabeça fui forçado a concluir que estávamos perdidos. O passador acendia uma lanterna eléctrica despudoradamente, em campo aberto, espalhando labaredas faiscantes pela serra fora, denunciando-nos, sem se prevenir dos guardas fronteiriços.
— Está feito com a Guarda Fiscal, para abrir desta maneira as goelas à pilha, exclamei para a Ana, sem que ele me pudesse ouvir. Não lhe disse nada, apesar de achar excessivo tanto à-vontade. Continha-me. Afinal sabia lá eu as regras da passagem de fronteira a salto! O nosso guia procurava atinar com os caminhos enquanto nós balançávamos por cima do carrascal sem chegar com os pés ao chão. As folhas rijas e espinhosas dos carrascos arranhavam fundo as pernas tenras da Ana e foi aí que as minhas calças de reserva, apesar de finas, lhe valeram.
Começava a preocupar-me com a situação e a embrenhar-me em maus pensamentos quando fomos assaltados, por uma matilha de cães enfurecidos. Tenho de confessar que apanhei um grande susto. Não por ser do estilo medricas que mal vê um humilde e proletário rafeiro o toma imediatamente por temível fera. Mas pelo inesperado, porque eram grandes, porque eram uns quatro ou cinco, porque não os via bem, porque ladravam enfurecidos.
— Quem vem lá! Quem vem lá! — levantaram-se vozes, à mistura com o ladrar dos cães.
Estávamos agora num terreno liso, debaixo de grandes árvores que me pareciam castanheiros. Os homens estavam no chão enrolados em mantas a dormir e estava claro que se tratava de camponeses que dormiam ali para prosseguir os trabalhos do campo, manhã cedo.
— Chit! Chit! Aqui! Aqui! — respondeu aos cães o senhor Joaquim, ao mesmo tempo que batia com a mão na perna.
— É gente de paz, não há novidade, não há novidade — sossegou assim, os do chão, com voz firme de quem já está habituado a estes percalços, o nosso experiente companheiro.
Os camponeses calaram os cães e nós mal refeitos do susto lá seguimos na peugada do nosso perdido passador.
Em Puebla de Sanabria, do lado de lá
 
Ao clarear do dia atravessámos a rua de uma pequenina aldeia. Nunca cheguei a perceber se era portuguesa ou espanhola. As casas feitas de pedra sobre pedra, à vista, eram as de Trás-os-Montes, mas do outro lado da raia, em terras de Astúrias, também eram assim. Uma velhota que nos surpreendeu àquela hora matutina desabafou, meio português, meio galego, meio castelhano, mais para ela que para nós, com certeza habituada à passagem por ali dos emigrantes, a caminho das Franças, das Suíças e dos Luxemburgos.
— Ai coitadinha, tão nova
e já nesta vida.
O que não diria ela se soubesse mesmo ao que íamos! A mim não ligou. Nem eu nem a Ana nos deixámos impressionar. A nossa vida era outra e bem boa. Éramos revolucionários! Cidadãos do Mundo Novo, da Sociedade do Futuro, construtores privilegiados do sistema socialista que haveria de substituir o capitalismo opressor e libertar a humanidade. Tínhamos a honra e privilégio de ser comunistas. O passador não nos ouviu. Nem nós abrimos a boca, mas se tivesse ouvido os nossos corações teria pensado que éramos muito novos e sabíamos pouco da vida. Muito novos! Tudo é relativo. Com a minha idade, 25 séculos antes, já Alexandre da Macedónia tinha conquistado um império do tamanho do mundo.
 
Eram quase oito horas, o nosso guia parou, dez metros à nossa frente, no meio duma comprida rua, praticamente deserta, duma povoação espanhola e virou-se para nós. Percebi que chegara ao fim a sua tarefa e estávamos perto de Puebla de Sanabria, a 40 quilómetros de Bragança, onde poderíamos apanhar o comboio que nos levaria para lá dos Pirinéus e das ditaduras ibéricas.
— Pronto — disse ele — a estação é lá ao fim. Um gesto vago apontava à esquerda e tanto podia ser já ali ao virar da esquina ou uns quilómetros adiante naquela direcção. Lá teria feito a sua ideia a nosso respeito e terá concluído, que não éramos nenhuns meninos de coro nem criancinhas para nos dar a papa na boca. Agora que nos desenrascássemos. Levantou a mão a meia altura. Avancei um passo para a apertar, mas não, não era isso, era um adeus lacónico, pois virou-se logo e lá foi, passada rápida, até à primeira viela em que deixou o nosso caminho.

2007/03/18

Coruche e Couço

Fotografias da visita a Coruche e ao Couço em 10 de Março de 2007, no âmbito da comemoração do Dia da Mulher promovida pelo movimento Não Apaguem a Memória.



Acto de "boas vindas" no anfiteatro da CM de Coruche vendo-se na mesa a antropóloga Paula Godinho com o seu livro Memórias da Resistência Rural no Sul - Couço 1958-1962 (Celta Editora Oeiras 2001), Maria Barroso, o presidente da CM de Coruche, Dionísio Mendes e Ana Gaspar.







No Couço junto ao monumento evocativo das lutas dos trabalhadores agrícolas contra a exploração e o fascismo.