2005/12/04

"O frio é a minha morada"

Fotografia DN-Nuno Fox

Âgela Marques no DN, hoje. Mostra-nos a Lisboa que não vemos. Avenida Almirante Reis, Américo, 75 anos. Dorme sentado num caixote de papelão, com um cobertor a esconder a cara do frio. "Não quero nada... só quero abrir os olhos todos os dias de manhã."
Vivo "um dia, depois mais um dia, depois outro dia". Assim há 15 anos. "Antes disso, fui empregado no Banco Nacional Ultramarino."

A Guerra

Sinto-me como que desarmado - tão grande é a leviandade ou a estupidez ou a ausência de valores - sempre que vejo alguém fazer a apologia da guerra. Qualquer guerra. Colonial, imperialista, disputa de fronteiras, guerra civil. Excepto claro está, depois de esgotados todos os outros recursos, a guerra de libertação.
A guerra é sempre a máxima violência física e moral. É sempre o sofrimento máximo e a máxima tragédia. Veja-se o Iraque, o Vietnam, a Tchechénia, o Ruanda. Ou as guerras coloniais portuguesas.

Vem isto a propósito de um post de um amigo meu, Marques Lopes, num blog de ex-combatentes da guerra colonial, que descobri transcrito pelo João Tunes no Água Lisa. É um depoimento pungente e que nos conta um triste episódio de guerra que ceifou a vida de uma jovem guineense e perseguirá, traumático, por toda a vida o jovem alferes miliciano obrigado pelo colonial-fascismo português a "defender a pátria" na... Guiné Bissau.

A guerra na Guiné tornara-se muito perigosa com o crescente poder militar do PAIGC. O jovem miliciano já tinha sido ferido e estava de novo de volta à guerra. É uma manhã de Julho de 1967. Conduz pela mata o seu pelotão, perigos estão por todo o lado. Deparam com uma força inimiga! A tensão é grande mas é apenas uma escola do PAIGC no mato. Uma jovem professora talvez com 18 anos ensina Português a crianças guineenses. No quadro preto está escrito "um vaso de flores" e por baixo o desenho correspondente.

Surpreendida e assustada a professora lança mão da Kalachnikov pendurada no quadro. Marques Lopes grita-lhe "firma lá" ("está quieta aí"). O que se segue é o perigo, o susto, o medo, a raiva, o pânico. A guerra!

A jovem professora de Português caiu esventrada com uma rajada de metralhadora e Marques Lopes carrega há trinta e oito anos essa cruz.

Ele conta ainda algo mais. Algo terrível. Algo que exemplifica bem no que as guerras podem transformar os homens. Ele tem de impedir à pancada um soldado do seu pelotão (um rapaz vulgar de uma nossa qualquer aldeia) de violar a jovem agonizante.



Uma escola do PAIGC, na mata. ( 1970 ?)


Marques Lopes:

"...Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira [Bissau, 1998], tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus.

Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava.

Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho [de 1967].

Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada.

Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia [cinema de Lisboa], fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)"

O post de Marques Lopes está [aqui] e a transcrição do JT [aqui].