2014/03/07

Faz hoje 43 anos. Tancos e o encontro com a Polícia de Choque

                              Ângelo, "Tavares"               António João Eusébio             Coutinho "Meneses"


Faz hoje, hoje mesmo, 43 anos. A esta hora, às 19:30, estamos a rever a matéria, na "sala oval". Mesmo de propósito, assim, oval, a sala do prédio da Av dos EUA que alugámos para refúgio do Ângelo de Sousa, quando mais logo disser adeus definitivo à Base Aérea 3, em Tancos, onde é piloto dos helicópteros que servem para instruir os pilotos para a guerra colonial. Ângelo, Carlos Coutinho e António João Eusébio na sala oval às escuras exercitam a disposição de fios e mais fios e interruptores que hão-de ligar 20 cargas explosivas e incendiárias em outros tantos aviões e helis. Não se assusrtem que as cargas, estão lá fora, no Volkswagen que vai partir só lá para as 21h.

Mas ontem o susto o grande susto... e era isso que vos queria contar. Copio as páginas 134 a 137 do livro ARA-Acção Revolucionária Armada (2000 D. Quixote, esgotado) que me dá menos trabalho:

Interceptados pela Polícia de Choque

Os nossos preparativos corriam tão bem que não podíamos imaginar que algum perigo inesperado pudesse ainda levar tudo a perder... Depois de ter alugado o Volkswagen com documentação falsa, sem qualquer incidente, na antevéspera da ação, dirigi-me à arrecadação nos arredores de Lisboa onde tinha as cargas explosivas e incendiárias. Com elas enchi o pequeno porta bagagens do automóvel e fui, ao volante do Carro do Povo ter com o Carlos Coutinho que me esperava perto da Praça de Espanha [em Lisboa].

Dali partimos os dois para Belém onde tinha alugado uma garagem e onde o carro ficaria até partir para Tancos. Quando entrámos na Avenida de Ceuta a caminho de Alcântara, seriam umas nove horas da noite, passei o volante ao «Meneses» para ele conhecer o carro e exercitar-se um pouco, antes de no dia seguinte ter de o guiar, desembaraçado, até à base aérea. Seguíamos em descontraída e animada conversa quando inesperadamente esbarrámos com um invulgar aparato policial que enchia a rotunda de Alcântara de agentes da Polícia de Choque e de cães-polícia. Com o carro cheio de explosivos, ficámos siderados. O nosso susto foi maior pelo inesperado. Não vimos à distância todo aquela força policial, que a nossos olhos assustados parecia superior a um batalhão. Vínhamos conversando alegremente e, sem aviso, desaguámos de supetão no meio daquela desproporcionada força policial. Tão fulgurante quanto a presença pouco recomendável dos polícias me veio a lembrança de que um carro alugado só pode ser legalmente conduzido por quem o alugou. Estávamos em transgressão! O Coutinho conduzia o carro bem por dentro da rotunda o mais longe possível dos polícias que pejavam as bermas. Suponho que me encolhi. Pelo menos interiormente. Para incomodar o menos possível suas excelências os polícias, os cães e os rádios. Foi tudo tão rápido que quando ainda íamos no meio do susto já saíamos do Largo de Alcântara totalmente incólumes, a caminho da marginal. Só por milagre nenhum daqueles polícias ali especados a verem-nos passar se meteu connosco. Foi porque fizemos no escuro do carro um ar muito humilde e respeitador da lei, comentava para mim o Carlos Coutinho, uns minutos depois, já a descontrair e com um riso que me parecia ainda um pouco amarelo. Quem sabe se não toparam mesmo quem nós éramos e o que levávamos e decidiram: deixemos lá os rapazes seguir em descanso para não andarem sempre a dizer mal da polícia! Respondi ao meu companheiro.

Já aliviados o Carlos parou o carro e trocámos de lugar passando eu a conduzir. Seguíamos então pela marginal naquele estado de espírito bonançoso que sucede às grandes tempestades. Refazíamos forças com prognósticos de bom tempo. O Carlos Coutinho animava-me e animava-se:

– Encontros destes são coisas que só acontecem de longe em longe. De dois em dois anos.

Dispunha-me a concordar plenamente quando, saindo não sei donde, se me atravessa ao caminho um polícia a mandar-me parar. Fiquei petrificado. Resmoneava, inaudível, indignado, sentindo-me vítima de intolerável injustiça: mas que raio é isto? é uma conspiração ou quê? Simultaneamente veio ao de cima como primeira preocupação não me atrapalhar na condução. Não só a carta de condução era falsa como, sem ter tirado carta nem praticado o suficiente, guiava mal. Parei o carro e procurei responder ao boa noite do bem educado guarda com um tom de voz de descontraída calma.

– Os seus documentos! – Pediu-me o polícia.

Entreguei tudo. Certinho. A carta de condução, o livrete, o título de propriedade, o documento do aluguer, o meu bilhete de identidade. Tudo falso como convinha! Foi o que traiçoeiramente me veio à cabeça dizer. Felizmente que só em pensamento. O guarda examinava os documentos um a um. Pelo canto do olho reparei no escuro da berma da estrada, três motos e mais dois polícias de trânsito. O homem era minucioso o que não me animava. O meu colega não sei como estava. Só reparei que tinha as mãos apertadas sobre as pernas e olhava em frente pretendendo talvez insinuar que estava completamente desinteressado do que se estava a passar. Para criar mau ambiente e acelerar o compasso do meu coração o desagradável guarda começou a tomar umas notas num papelinho qualquer. Talvez para me animar, não sei bem, deu-me na cabeça conversar, com naturalidade, com o polícia.

– Então o que é que se passa? É a segunda barreira por que passa¬mos. É ladroagem?

Não me respondeu. Continuava a escrevinhar. Não conseguia evitar maus pensamentos e deixar de me interrogar, o filho da puta está a tirar notas dos documentos? Ainda abri a boca para dizer mais qualquer coisa que quebrasse aquele pesado silêncio quando conclui que era mau sinal ele não me responder. Calei-me. Por fim após uma eternidade levantou a cabeça do papel estendeu-mo e despediu-se com um boa noite tão lacónico como o primeiro. Ainda sem perceber bem o que se passava soletrei o papel que desconsoladamente não tive outro remédio senão receber da mão do polícia. Afinal, que surpresa! A letrinha miúda e a lápis informava simpaticamente uma eventual patrulha que posteriormente nos interceptasse «que este senhor condutor já tinha sido inspeccionado».

Nem queria acreditar! Era afinal uma espécie de salvo-conduto. Atestado de bom comportamento. Prova… não direi de bagagem legal, que não foi objecto de atenção, mas pelo menos de documentação sem mácula. Rezei a todos os santinhos para não arrancar com o carro aos solavancos. Fui atendido. Deslizei com o Carlos Coutinho e tudo o resto, com surpreendente suavidade.

Perdemos o gosto para mais conversas e só quando finalmente arrumámos o carro, o Carlos exclamou enfático com o ornamento de palavras próprias e sonoras que dispensam reprodução que há dias em que não se pode sair de casa!