2010/11/28

JCP - 30 anos


João (Carvalho) Pina, artista da fotografia, repórter internacional, de momento a viver em Paris, foi surpreendido por uma partida do tempo que corre. Fez 30 anos. Numa emergência assim, não hesitou. Para grandes males grandes remédios. Correu a Lisboa, e reuniu os amigos, em conselho, no LEFT, ali a Santos. Apanhados desprevenidos, sem saberem ao certo que remédio ou estratégia aconselhar, para os 15 anos que ainda lhe restam de juventude, levantaram alto as flutes de champanhe e cantaram os parabéns antes de as despejarem.

Os convivas de primeira geração, findo o dia e alta a noite, foram paulatinamente retirando, abrindo espaço à juventude, mas não sem lhe recomendar todas as cautelas que a profissão exige, especialmente no Afeganistão, em teatro de guerra, por onde tem andado.

Casamento em estado de sítio: 27 de Novembro de 1975

27 de Novembro de 1975, era o dia há muito marcado para o meu casamento. Mais precisamente para a oficialização do meu casamento com a Maria Machado, com registo fixado para as 11 horas, na Conservatória da Avenida Guerra Junqueiro. Na realidade já estávamos "casados" de facto que não de registo em conservatória, desde 1968, na clandestinidade.

O caso não mereceria mais reparo que não o próprio a tal circunstância não fora estarmos apenas dois dias após o confronto militar de 25 de Novembro, que tolheu o passo à revolução, iniciada em 1974 e que ainda mantinha muito incerto o futuro do país e também o futuro e a segurança do PCP e dos seus dirigentes.

Eu estava em local secreto - numa casa da Rua Óscar Monteiro Torres - numa reunião do "comité militar" com Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Ângelo Veloso.

No restaurante Ginjal, em Cacilhas. 27 Nov 1975, a olhar para Lisboa, há 2 dias em estado de sítio. 

Estava já combinado que me ausentaria, por pouco tempo, para o programado registo. Numa corrida à conservatória, por acaso, apenas a uns 500 metros de distância, casámo-nos, registámos o filho, com um ano e meio de idade e "legitimámos" a filha com cinco anos. Num ai-Jesus, voltei à reunião, deixando a meio um sermão da conservadora, que condenava a minha pressa e o "pouco respeito por acto tão sagrado para uma família. Que tempos estes!". 

Eis, pois, um casamento em estado de sítio.

Talvez por isso mesmo e sabendo que o registo estava marcado há muito e que eu não teria tais dotes de premonição que tivesse adivinhado um golpe militar em 25 de Novembro, Cunhal observou com um sorriso: gabo-te a pachorra teres decidido casar numa situação destas!
Os choques político-militares entre as forças que favoreciam as transformações revolucionárias e as que lhes queriam pôr fim culminaram com os confrontos na madrugada de 25 de Novembro de 1975 que deram a vitória a estas últimas. Durante esse dia o Presidente da República declarou o estado de sítio e o PCP viveu o dia sob a ameaça de um grande perigo. As forças vitoriosas iam do PS à extrema direita e não era certo em que mãos acabaria o poder. Receava-se que o PCP pudesse ser ilegalizado, ou que algum grupo terrorista de extrema direita, desses que organizaram atentados e incendiaram sedes do PCP, da CGTP e de outros partidos de esquerda desencadeassem acções terroristas contra as sedes ou os dirigentes do partido.

A direcção do PCP tomou medidas para resguardar, numa clandestinidade provisória, utilizando casas de recuo e reuniões fora das sedes, os seus principais dirigentes que continuavam, no entanto, em redobrada actividade.

Foi assim que na sede do Comité Central, na Av António de Serpa, ao Campo pequeno, em Lisboa, por essas 8 horas da noite de 25 de Novembro apenas estavam além dos "serviços mínimos" dois membros do comité central, Georgette Ferreira e o autor desta memória. Dela ainda ouvi: "ai miguinho" não me posso demorar". Tenho reuniões com o sector operário da cintura oriental de Lisboa. Também não me demorei em sair. O meu trabalho era precisamente entre os oficiais das Forças Armadas. Segui para uma ronda por unidades militares de Lisboa que incluiu o Depósito Geral de Material de Guerra em Beirolas e o Ralis, em cuja parada me cruzei com civis fardados de camuflado, ex-militares mobilizados de emergência e sem despacho do Estado Maior que o momento não era para tal e onde se realizou um plenário de militares da unidade, ao qual assisti, entre outros civis, de variegadas sensibilidades de esquerda.

Foi neste ambiente de pré-guerra civil que, em paz, me casei. Salvo aquela reunião que tive de interromper para ir à Conservatória do Registo Civil tudo sucedeu dentro da mais regular normalidade.

A cerimónia a que a conservadora emprestou a devida solenidade, teve alguns momentos incomuns. Quando a Senhora me perguntou pela profissão declinei "funcionário de partido político". Objectou que isso não era profissão. Garanti-lhe que que fazia parte das novas profissões surgidas com a revolução. Contrariada teve de aceitar porque lhe não dei outra.

A seguir ao casamento fez-se o já acima referidos registo do filho e a "legitimação" da filha. Legitimação? Na clandestinidade conseguimos, no meio de peripécias várias (descritas aqui) registar o bebé no nosso nome verdadeiro apenas com o meu bilhete de identidade verdadeiro mas já caducado que obviamente não usava na clandestinidade, porque a Maria só possuía documentos falsos, com nomes falsos, tudo falso! No entanto, por não estarmos casados, a filha só pôde ser registada, durante a ditadura, como filha ilegítima. Era o máximo que Salazar e a Igreja do cardeal Cerejeira permitiam. Resignámo-nos na esperança de que um dia a legitimaríamos.
Agora, dois dias após do golpe do 25 de Novembro de 1975, neste importante momento das nossas vidas, tivemos o amparo dos padrinhos, o Ernâni Pinto Bastos e a Maria do Céu Monteiro. Finda a reunião do comité militar a que rapidamente voltara, "noivos" e padrinhos fomos a Cacilhas, ao restaurante do Ginjal, almoçar e observar, da outra margem, Lisboa em estado de sítio".