2004/09/18

Carta da Sibéria para Nova York. Em... 1933

A semana de férias na terra mata-nos saudades, permite-nos rever os amigos, saber quem nasceu ou morreu e visitar o único moinho de vento a moer trigo como antes, entre os muitos que alvejavam e alguns ainda alvejam, ao cimo dos montes que se levantam em redor da terra e são a antecâmara da Serra de Montejunto.
E constatamos o envelhecimento da população e também como surgem iniciativas culturais. A terra tem um ginásio, classe de ginástica, futebol de salão, sala de exposições, escola de música, rancho floclórico. Na minha infância só havia o salão paroquial, que ainda existe, onde passavam de longe em longe uns filmes, em 12 partes, em que o padre da terra ocultava com a mão em frente do projector, cenas de mulheres decotadas ou saias curtas e os homens menos respeitadores protestavam com longas assobiadelas contra o zelo do prior com a saúde moral do seu rebanho.

É do Vilar do Cadaval que estou a falar. Sede de freguesia já tem um posto público de internet ainda que só 3 dias por semana.
Mas agora não vinha falar da terra mas sim como aproveitei o tempo a revolver arcas que estão no sótão e guardam coisas velhas.

Entre os papéis encontrei molhos de cartas atados com fitas de cores debotadas e num deles uma carta de um tal F. Lourenço dirigida ao meu pai, em Nova York, com a data de 29 de Julho de 1933.
A carta tem um interesse particular porque é dirigida da... Sibéria.

Infelizmente a carta não tem o nome da cidade de onde é dirigida, talvez não se tratasse de nenhuma cidade, talvez uma vila ou mais provavelmente um povoado perdido na imensidão da Síbéria. Em todo o caso muito perto da linha do Transiberiano linha férrea que atravessa dois continentes.
O meu pai falava-nos de colegas de trabalho, amigos e namoradas, quando evocava com saudade a sua aventurosa vida nos EUA. E falava de um desses colegas, que julçgo ser este F. Lourenço, que tinha ido como "voluntário com outros operários e técnicos especializados para a Sibéria na União Soviética para ajudar a construir o socialismo e o país dos trabalhadores." Sociedade que não teve um fim feliz como ardentemente desejavam.

A carta, com uma pequena mancha ferrosa, está muito bem conservada. Escrita à mão, com tinta que se percebe ter sido azul, letra bonita, muito legível, inclinada para a direita, em papel de carta com linhas, enchendo frente e verso da única folha.
A última mensagem já não coube nas linhas e vai na margem, em cima à esquerda, no verso.
A transcrição que está a seguir, respeita a ortografia da época, erros ortográficos e gralhas.
Ei-la:
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Cruz

Estimo a sua saude, igoalmente de todos os seus, eu bem felismente.
Já há bastante tempo que era para lhe escrever, mas como só agora nos foi dada a nossa localidade permanente, pois queria-lhe dar as minhas impressõis da nossa situação aqui. Começo por lhe diser que quando cá chegamos e que começámos a trabalhar, os nossos diretores de cá nem só nos fiseram uma grande recepção in “Moscow” como apenas viram que nós produsiamos melhor serviço de que eles esperavam trataram de nos transferir para uma localidade maior e melhor, aonde já tinha electricidade, e uma grande oficina com todas as maquinas já montadas temos cazas com aquecimento temos um grande restaurante aonde vamos comer, temos uma grande caza de banho construída a tijolo, assim como a nossa oficina e tambem tijolo. Mas as cazas de viver e o restaurante e fábrica de sarração, e fabrica de “shingles” para construção de telhados, são construídas a madeira uma construção muito sólida – então.
Estão agora construindo uma grande caza moderna estilo americano para nós americanos. Eles teem cá boas cazas, mas o grupo parece que não gosta muito de elas, e então eles para lhes fazer a vontade estão construindo esta caza. Temos rádio na caza de jantar, temos cinema lá uma vêz por outra, em fim não estou desanimado com isto. As comidas não são más, quase todos os dias temos carne duas veses, não é com muita abundância mas é fresca e é mais do que eu comia em Portugal, pão temos 800 gramas é suficiente para uma peçôa.
Já me esquecia de lhe dizer que também temos estação de caminho de ferro neste sitio que ultimamente nos foi dado. Esta é a linha que vai de Moscow a “Vladisvostok” Sibéria. Então como vão as coisas por aí? Então tem visto “a minha Vaccarela” eu escrevilhe á dias. Mande-me diser se ela tem frequentado o movimento radical. Eu queria ver se ela aqui vinha ter comigo. Por hoje nada mais, Sou quem sabe
F. Lourenço.

Agradeço que me escreva e me dê as novidades de aí.

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É claro que para mim e a minha irmã a carta tem um valor estimativo muito especial mas para além disso parece-me, ainda que singelo, um enternecedor testemunho com interesse histórico, que evoca ao vivo a grande esperança dos trabalhadores e muitos intelectuais no mundo novo que se construia na antiga Rússia dos czares desde a Grande Revolução de Outubro de 1917. E dá notícia das condições de vida na imensa taiga siberiana e também do estado de espírito do português-americano na União Soviética.

Fala na sua Vaccarela, provavelmente uma italiana, que não sei se terá ido ou não ter com o seu Lourenço como ele desejava. Lourenço está preocupado com o comportamento político da namorada e quer saber de fonte segura, o meu pai, seu companheiro do movimento radical, leia-se comunista, se ela continua a frequentar o Movimento. Isso seria também uma garantia maior para a eventual decisão, decisão muito arrojada, de se juntar ao companheiro, naquela perdida Sibéria, que apesar da inigualável beleza da infinita floresta, era uma Sibéria sem conforto e sem a oportunidade de uma visita à Broadway, à 5ª Avenida, ao Central Park ou lá acima junto às nuvens, ao terraço do Empire State Building (ainda não havia as Twin Towers).