D. Januário Torgal, o capelão-mor
das forças armadas é conhecido pela sua frontalidade. Fazendo jus dessa sua virtude há dias, nos media, criticou asperamente o governo pela sua insensibilidade
social, por descarregar sobre os mais necessitados os custos da crise e poupar
os ricos que dela beneficiaram e beneficiam. Não receou acusar de “altamente
corrupto" o governo de Passos Coelho e, sem subterfúgios, colocou-se do lado dos
mais fracos.
Os catolicíssimos membros do
Governo e seus papagaios de serviço logo se manifestaram escandalizados com o
bispo, perderam a compostura, produziram acusações e aleivosias contra o
prelado e revelaram assim que a sua igreja é a antiga, a do Cardeal Cerejeira. Passos e Ciª, desnorteados com as vaias que
vão colecionando quando visitam o povo, revelaram-se afinal uns assanhados filisteus.
Sou um contumaz incréu, não frequento
a igreja e não tenho convivência com bispos. Creio, aliás, que apenas uma vez
surgiu a oportunidade de conversar com um bispo e esse foi, não por acaso, D.
Januário Torgal. Não por estarmos ambos do lado dos mais fracos, não por ambos
estarmos visceralmente contra a corrupção ou contra as prepotências de
poderosos. D. Januário Torgal cruzou-se comigo e, dispensando apresentações, convidou-me
para um “cafezinho”.
Foi assim:
As Forças Armadas organizaram no Instituto de Altos Estudos Militares, em Lisboa, à Junqueira, em 1998, salvo erro, um pomposo debate sobre o serviço militar obrigatório, cuja extinção estava em debate na Assembleia da República, em ligação, por videoconferência, com os comandos de todas as outras regiões militares. Presente o ministro da defesa de então, António Vitorino, muitos deputados em especial os da comissão parlamentar de Defesa, qualidade que ali me levou, e umas largas dezenas de generais, coronéis e outras altas patentes militares. Pedi a palavra a seguir a uma intervenção do então deputado do PSD Durão Barroso e, para além de dizer o que me parecera adequado e necessário, acerca do tema em discussão, aproveitei o momento para dizer com bonomia e educação que o que Durão Barroso acabara de dizer era um disparate e revelava que não sabia do que falava. Durão para atrair a simpatia dos chefes militares defendeu a continuação do serviço militar obrigatório mas com um argumento falso o de que em toda a história de Portugal, da fundação à atualidade, o serviço militar tinha tido a natureza que ainda então conservava, de serviço militar obrigatório.
Falou a seguir Ângelo Correia, um
dos grandes especialistas em assuntos militares, e com quem já mais de
uma vez me encontrara em debates sobre assuntos de defesa nacional. Começou por
elogiar a minha intervenção e atirou à ilustre assistência uma “boutade”: “
queria afirmar que o deputado … (e disse o meu nome) é, entre os civis, um dos
maiores especialistas em assuntos militares". Não sei o que levou Ângelo
Correia a fazer ali tal afirmação. É do seu estilo fazer destas coisas. Talvez
que o motivo tenha sido o justo reconhecimento, que eu confirmo e aplaudo, dos
meus conhecimentos mas inclino-me para que pretendeu, por algum despique
partidário, afrontar Durão Barroso, sublinhando a ignorância de que eu o
acusara.
Pouco depois fez-se um intervalo no debate. Foi aí que ao caminhar para o coffe break me cruzei com D. Januário Torgal que, sem que tivéssemos tido anterior conhecimento, se me dirigiu cordialmente e me desafiou: “Venha daí beber um cafezinho”. Uma coisa assim, simples e cativante, da parte de um representante de Deus para um relapso ateu, fez-me ficar amigo do bispo e sem que ele, para meu prejuízo, até hoje, o saiba. Pensei para comigo, terá acreditado naquelas balelas do Ângelo Correia?
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