2006/04/18

O POGROM DE LISBOA, EM 1506

Texto de Alexandre Herculano (1810-1877), historiador, escritor e poeta português, in História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1855).

"Era na Primavera de 1506. A irregularidade das estações nos dois anos antecedentes, irregularidade que se protraiu até ao ano seguinte, deu em resultado a fome. Ainda naquela época a falta de subsistências trazia, em regra, por companheiro um flagelo, então trivial, não só por esta, mas também por outras causas. Era a peste.
Desde Janeiro que a peste redobrava de intensidade em Lisboa, e nos princípios de Abril era tal o progresso da epidemia que a mortalidade subia em alguns dias ao número de cento e trinta indivíduos. Faziam-se preces públicas, a 15 do mês ordenou-se uma procissão de penitência, que, saindo da Igreja de S. Estevão, se recolheu na de S. Domingos, seguindo-se a celebração de preces solenes. Durante elas o povo implorava em gritos a misericórdia divina. No altar da capela chamada de Jesus havia naquele tempo um crucifixo, e no lado da imagem do Salvador um pequeno receptáculo, que servia de custódia a uma hóstia consagrada. No excesso da exaltação religiosa houve quem cresse ver aí, e talvez visse, uma luz estranha. Espalhou-se logo voz de milagre. Ou que os dominicanos, aproveitando a ilusão, realizassem artificialmente a suposta maravilha ou que a credulidade, fortalecida pelos terrores da peste, predispusesse cada vez mais a imaginação do vulgo para ver aquele singular clarão, é certo que ainda nos dias seguintes havia quem afirmasse divisá-lo perfeitamente. Todavia, o voto mais comum era que essa maravilha não passava de uma fraude, e ainda muitos dos mais crentes suspeitavam que o facto existira apenas nas imaginações encandecidas. Durante quatro dias a crença no prodígio foi ganhando vigor. No domingo seguinte ao meio-dia, celebrados os ofícios divinos, examinava o povo a suposta maravilha, contra cuja autenticidade recresciam suspeitas no espírito de muitos dos espectadores. Achava-se entre estes um cristão-novo, ao qual escaparam da boca manifestações imprudentes de incredulidade acerca do milagre. A indignação dos crentes, excitada, provavelmente, pelos autores da burla, comunicou-se à multidão. O miserável blasfemo foi arrastado para o adro, assassinado e queimado o seu cadáver. O tumulto atraíra maior concurso de povo, cujo fanatismo um frade excitava com violentas declamações. Dois outros frades, um com uma cruz, outro com um crucifixo arvorado, saíram então do mosteiro, bradando heresia, heresia!

O rugido do tigre popular não tardou a ressoar por toda a cidade. As marinhagens de muitos navios estrangeiros fundeados no rio vieram em breve associar-se à plebe amotinada. Seguiu-se um longo drama de anarquia. Os cristãos-novos que giravam pelas ruas desprevenidos eram mortos ou malferidos e arrastados, às vezes semivivos, para as fogueiras que rapidamente se tinham armado, tanto no Rossio como nas ribeiras do Tejo. O juiz do crime, que com os seus oficiais pretendera conter o motim, apedrejado e perseguido, teria sido queimado com a própria habitação, se um raio de piedade não houvera momentaneamente tocado o coração do tropel furioso que o perseguia, ao verem as lágrimas da sua esposa, que desgrenhada, implorava piedade. Os dois frades enfureciam as turbas com os seus brados, e guiavam-nas com actividade infernal naquele tremendo lavor. O grito de revolta era: Queimai-os! Quantos cristãos-novos encontravam arrastavam-nos pelas ruas e iam lançá-los nas fogueiras da Ribeira e do Rossio. Nesta praça foram queimadas nessa tarde trezentas pessoas, e às vezes, num e noutro lugar, ardiam a um tempo grupos de quinze ou vinte indivíduos. A ebreidade daquele bando de canibais não se desvaneceu com o repouso da noite. Na segunda-feira as cenas da véspera repetiram-se com maior violência, e a crueldade da plebe, incitada pelos frades, revestiu-se de formas ainda mais hediondas. Acima de quinhentas pessoas haviam perecido na véspera: neste dia passaram de mil. Segundo o costume, ao fanatismo tinham vindo associar-se todas as ruins paixões, o ódio, a vingança covarde, a calúnia, a luxúria, o roubo. As inimizades profundas achavam no motim popular ensejo favorável para atrozes vinganças, e cristãos-velhos foram levados às fogueiras com os neófitos judeus. Alguns só obtinham salvar-se mostrando publicamente diante dos assassinos que não eram circuncidados. As casas dos cristãos-novos foram acometidas e entradas. Metiam a ferro homens, mulheres e velhos: as crianças arrancavam-nas dos peitos das mães e, pegando-lhes pelos pés esmagavam-lhes o crânio nas paredes dos aposentos. Depois saqueavam tudo. Aqui e acolá, viam-se nas ruas alagadas de sangue pilhas de quarenta ou cinquenta cadáveres que esperavam a sua vez nas fogueiras. Os templos e os altares não serviam de refúgio aos que tinham ido acoitar-se à sombra deles e abraçar-se com os sacrários e as imagens dos santos. Donzelas e mulheres casadas, expelidas do santuário, eram prostituídas e depois atiradas às chamas. Os oficiais públicos que por qualquer modo buscavam pôr diques a esta torrente de atrocidades e infâmias escapavam a custo, pela fuga, ao ímpeto irresistível das turbas concitadas; porque além da gente dos navios estrangeiros, mais de mil homens da plebe andavam embebidos naquela carnificina. A noite, que descia, veio, afinal, cobrir com o seu manto este espectáculo medonho, que se renovou no dia seguinte. Mas já as hecatombes eram menos frequentes, porque escasseavam as vítimas. Os cristãos-velhos que ainda acreditavam em Deus e na humanidade tinham aproveitado o cansaço dos algozes para salvar grande número daqueles desgraçados, escondendo-os ou facilitando-lhes a fuga, inútil até certo ponto, porque ainda vários deles foram assassinados nas aldeias circunvizinhas. (…) À medida que faltavam alfaias que roubar, mulheres que prostituir, sangue que verter, a multidão asserenava, e os filhos de S. Domingos, recolhendo-se ao seu antro, iam repousar das fadigas daquele dia.”

2006/03/31

O suave milagre de Santa Margarida

Miúdos, na aldeia, ouvíamos os mais velhos falar da tropa e em especial sobre a ida à inspecção - diziam sortes, "o Toino foi às sortes". E sortes porque havia sorteio e alguns livravam-se - ouvir, mais que ouvir bebíamos as palavras. E depois o sargento disse: tira a porcaria das cuecas ou queres que te vá aí arrancar os cueiros. Estas e outras conversas verdadeiras ou inventadas maravilhavam-nos e até nos assustavam um pouco. Afinal só tínhamos 11 ou 12 anos e ainda faltavam uns seis ou sete para irmos, nós também, às sortes. E depois todos nos ríamos quando diziam "o Jaquim tão fanfarrão... afinal tinha uma pichota que nem se via. E o Elias! É pá, agora é que se percebe o berreiro da Noémia, na noite de casamento! Um chanfalho até ao joelho! Aquilo metia impressão. O sargento até rosnou este deve ter nascido nalguma cavalariça."
As primícias gastei-as em Vendas Novas, em 1959, na Escola Prática RN cadete em Vendas Novas de  Artilharia, como cadete. Cadete é aquele que, vindo da universidade, mas na fase de instrução não passa de um reles recruta, objecto de todos os caprichos do instrutor, para saber como é, para ganhar endurance, e para não se armar em doutor, intelectual e porras assim, depois de promovido, junto dos oficiais da Academia Militar. Mas cadete é também aquele instruendo que será daí a meses oficial que ganhará o direito a ter um impedido, um soldado feito seu criado, que lhe engraxa as botas, arruma o quarto, compra o tabaco e está ali sempre às suas ordens. E ao contrário do que se possa pensar o soldado-impedido não se sente, "criado" nem humilhado. Até prefere. Evita, os serviços de sentinela, de reforço, de faxina e se o oficial não é uma besta até pode ter alguns benefícios e bom trato.

Chegado a oficial o cadete ganhará o direito a tratar com sobranceria, ou até com sadismo os soldados recrutas a si entregues para que deles “faça uns homenzinhos”. Ganhará o direito a frequentar a sala dos senhores oficiais e a ser tratado por Senhoria. Dá-me licença meu Aspirante, saiba Vossa Senhoria que ... em sentido e depois de bater a pala que é como quem diz, depois de fazer a continência.
O segundo ciclo da instrução, dois meses e meio depois, já o fiz no CIAAC, em Cascais. A seguir o Exército mandou-me para o GACA
2, em Torres Novas. Aí sim, já feito Aspirante a Oficial Miliciano, isto é, oficial, o que dá da vida militar, uma perspectiva muito diferente!
Ninguém percebeu? CIAAC quer dizer Centro de Instrução de Artilharia Anti-Aérea e Costa e a outra sigla GACA
2, Grupo de Artilharia Contra Aeronaves nº 2. Grupo, porque se trata da arma de Artilharia. Porque se de infantaria se tratasse era batalhão e esquadrão no caso da arma de cavalaria. É sempre bom aumentarmos a nossa cultura geral.
Contarei noutra altura essa inolvidável experiência de comandar homens. Conhecer jovens. As suas origens, os seus problemas, as suas vidas, as suas aspirações. Conhecer o país. O país dos homens e das mulheres. Na altura era só de homens. Há quem não aproveite esta rara oportunidade e trate os trinta soldados instruendos à sua conta como seres reduzidos a um número, que têm de aprender a marchar e a ser submissos perante os superiores. Deixo claro que, da minha experiência, concluí que os maus tratos ou formas menos dignas de tratar os soldados partiam em geral, não de oficiais do quadro permanente mas de alguns oficiais milicianos frustrados e de mau carácter.
Doze meses de serviço militar foi quanto me exigiram e logo me despacharam o que me fez muito jeito porque assim regressava sem grande perda de tempo à universidade.

Não voltei logo ao Técnico em Lisboa, mas à Faculdade de Ciências, onde se podia fazer os três primeiros anos de engenharia no meio de imensas raparigas que, indecentemente, rareavam no IST.
Menos de um ano após a ida para a tropa, na sequência do início da guerra colonial, logo a Pátria requisitou de novo, a minha expertness militar e a deixar-me, inconsolável com a perda dos carinhos da nova namorada. E lá fui dar com os ossos na gloriosa Divisão Nuno Álvares. É talvez a partir daqui que passei a ficar um admirador do nosso antigo Condestável, um atrevido, corajoso, arrojado e meio doido, fidalgo de meia-tigela, desafiador de castelhanos, místico com visões de santos e do próprio Cristo. É ele que está  na origem da futura Casa de Bragança que viria a ser a mais importante Casa do reino e berço da quarta dinastia, de D. João IV, em 1640 a D. Manuel II em 1910.

Alferes Miliciano no Quartel-General da 3ª Divisão, 1962

Agora estava eu ali, em Santa Margarida, na 3ª Divisão, a Divisão Nuno Álvares, orgulho da nação, em 1962, a responder ao chamamento da Pátria que requisitava os meus serviços neste momento em que os "inimigos" assediavam Portugal em África e em que na Rádio se gritava, sincopadamente "Angola é nossa! É nossa! É nossa!" no programa da Emissora Nacional "Rádio Moscovo não fala verdade", 

Campo Militar de Santa Margarida.

Estava no Campo Militar de Santa Margarida já como veterano e promovido a alferes.  No quartel-general não havia nada para fazer. A minha função era preencher um lugar bem determinado no organigrama da divisão. Oficial de operações. Deram-me uns manuais da NATO para traduzir e eu lá ia traduzindo, entre o almoço e o jogo de ténis com o chefe de estado-maior, entre umas braçadas na piscina do Campo de Santa Margarida ao fim da tarde e o jogo do king ou do póquer, na sala de oficiais, depois do jantar. À quinta feira depois de almoço embarcávamos na carrinha para Lisboa que nem uns pardais em alvoroço, sequiosos de saias, que ali toda a semana, quando não quinze dias, se calhava um serviço ao fim de semana, só havia as das coronelas já completamente passadas aos nossos olhos então muito azougados e inexperientes. Falei em saias porque então as mulheres não usavam calças.

Às vezes havia prestação de serviços de “intendência” mas isso era só para soldados. Os oficiais mesmo à fome, faziam má boca para aquilo. No meio dos pinhais ou numa arrecadação com vigilância à distância, uma que outra mulher de bom coração vinha por ali dar ânimo à tropa. Nos exércitos de quinhentos, seiscentos e depois, estas mulheres, as "aguadeiras", seguiam em trupes, os exércitos e sem dúvida ajudavam-nos a manter senão a moral pelo menos o moral.

Em Santa Margarida, deitada de costas, de pernas abertas em cima dum cobertor a resguardar-lhe as viçosas nádegas do mato áspero, ali estava, numa tarde de Junho, mais uma vez, aquela alma benfazeja entre os 25 e os 35 anos. Por apenas vinte e cinco tostões à peça, que ali a clientela era de parcos haveres, aquela abnegada servidora do Estado prestava um meritório serviço público. Numa tarde despachava uns trinta ou quarenta sequiosos soldados formando bicha. O esquema organizativo, a rapidez e as moedas a crescerem, funcionava a seu favor porque se alguém se demorava com sofisticações despropositadas, logo os da fila, de arma em riste mas ainda embainhada, gritavam vá, vá, vá toca a andar, pá, que é isso agora!?

Mas o caso que eu queria contar era o seguinte: estávamos todos ali, no salão nobre do quartel-general a festejar qualquer coisa – havia sempre um pretexto honesto porque havia 900 contos (era dinheiro então) orçamentados para despesas de representação. Ora com a guerra colonial, os exercícios da NATO estavam suspensos mas não as despesas de representação. Na ausência das centenas de oficiais estrangeiros da Nato que anualmente estavam presentes em exercícios e festanças tínhamos de nos sacrificar e cumprir escrupulosamente os orçamentos. Estávamos portanto ali umas dezenas largas de oficiais de todo o Campo a beber uns champanhes, a comer umas tapas com caviar, salmão e outras iguarias, enfim a festejar a Pátria, enquanto não se malhava com o canastro em Angola, quando um estafeta me chega ali, eu de serviço, por acaso, e me obriga a acorrer a uma qualquer emergência sem importância mas obrigatória. Quando regresso e me dirijo, displicente, para uma mesinha de comes e bebes, reparo num sepulcral silêncio à minha volta, um silêncio que me fez parar e olhar em redor. Deviam ter combinado. Então o chefe de estado-maior, o ten-cor G. J., na presença dos dois brigadeiros, dos comandantes e restante oficialagem do Campo, vira-se para mim e disse de modos que todos ouvissem bem "então afinal o nosso alferes Narciso é que é o comunista cá do Campo!" Julgo não ter sido fulminado por nenhuma síncope ou raio porque momentos depois dei por mim ainda ali especado mas… para morrer. Talvez fosse um instante mas na altura não fui capaz de avaliar. Na minha total estupefacção (porque o caso é que ainda que ninguém suspeitasse, não sendo eu "o" comunista lá do Campo era no entanto "um" dos poucos oficiais comunistas lá do Campo) comecei a pensar, julgo eu, que teria que dizer qualquer coisa. Ficar calado parecia-me pior. Mas dizer o quê? 

Sou sim senhor com muita honra? 

Era parvoíce e pouco engenho. Além de que, é claro... passavam-me a soldado e ia bater com os costados a Penamacor, ao batalhão disciplinar, ou talvez mais certamente ao forte de Caxias ou de Peniche, que a PIDE estava-se nas tintas para regulamentos da tropa. 

Juro que não sou e o meu Chefe é um grande mentiroso. 

Também não me pareceu resposta eficaz. Deus Nosso Senhor ou a Virgem Maria ou o Santo Condestável, dada a nossa cumplicidade, socorreu-me naquele mortífero transe e pela minha boca disse descontraído: “ora meu chefe, se tivesse dito da maçonaria, então é que acertava!” Ainda eu ouvia assustado o resto das minhas palavras quando explode uma gargalhada geral que só a seguir percebi porquê. É que toda a gente sabia, menos eu, afinal, ou se não sabia pelo menos dizia que um dos brigadeiros era "irmão" e usaria o legítimo avental dos pedreiros livres nas cerimónias da praxe. O próprio chefe de estado-maior se virou para ele e riu a bom rir. Um milagre! Se há milagres aquilo foi um milagre! Milagre que ainda hoje recordo agradecido ao Condestável.

Artes plásticas e poesia



O poster é de Olbinski, como se percebe, mas o poema... esse é da minha amiga Monalisa, no Sítio da Saudade:

Se olhar para cima talvez ainda veja
Um resto do céu do dia de hoje

As tardes chegam depois
Cada vez mais tarde

E eu?

Saberei o caminho de novo?

Olbinski: "Homenagem a René Magritte"


René Magritte "A Assinatura em Branco"- 1965. [link]

Olbinski, Rafal  Posted by Picasa

Olbinski, Rafal

2006/03/29

O Museu Hermitage em S. Petersburgo

São Petersburgo. Vista da praça do palácio de Inverno (à direita), com o Edifício do Estado Maior General, à esquerda, integrado no complexo do Museu Estatal do Hermitage, constituído por 5 palácios.
Ao centro vista do Palácio de Inverno do lado da praça e em baixo vista do Palácio de Inverno do lado do Rio Neva.

O museu tem mais de 3 milhões de obras de arte, desde a pré-história aos tempos actuais e desde arte europeia, Médio e Extremo Oriente. [link]

S.Petersburgo, depois Petrogrado e a seguir à revolução de Outubro de 1917 Leninegrado, voltou ao nome primitivo após o fim da União Soviética e foi a capital dos czares até à revolução comunista.

É a segunda maior cidade da Rússia, depois de Moscovo. Foi fundada por Pedro, o Grande (1682-1725), para consolidar a conquista de território até ao mar com o objectivo de abrir à Rússia o caminho do Ocidente. Construída numa zona pantanosa, sobre 100 ilhas, no delta do Rio Neva, abre-se para o Golfo da Finlândia. Os canais e as 700 pontes estão na origem da designação de Veneza do norte.



Algumas obras de arte do Museu Hermitage


2006/03/11

Memórias da Guerra colonial

Marques Lopes, como muitos dos portugueses que hoje andam pelos sessentas, foi a África - no seu caso à Guiné-Bissau entre 1967 e 1969 - arrolado pelo serviço militar obrigatório para fazer a guerra aos povos das colónias portuguesas. Marques Lopes era alferes miliciano e foi ferido. Isso permitiu-lhe muitos anos depois de terminada a guerra ingressar no quadro permanente do Exército e seguir a carreira militar. Hoje é coronel reformado e membro da Associação 25 de Abril (secção do Porto).

Já aqui [link] publiquei um dramático testemunho seu da guerra colonial na Guiné e agora apresento outro que teve a gentileza de me enviar e que já foi publicado em dois muito interessantes sítios da rede, o Blog de Luis Graça & camaradas da Guiné [link] onde se facultam valiosos testemunhos da guerra colonial da Guiné e o site Guiné Bissau Contibuto - de Didinho onde podemos conhecer e amar a Guiné Bissau e o seu povo. Deste último site tirei as fotografias da Guiné que vão com o texto assim como a de Amílcar Cabral. Dele são estas palavras num curso de quadros da Guiné Bissau, em 1969, algum tempo antes de ser assassinado por um comando militar português, na sua residência, na Guiné Konacri.:

" ... jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde.

Eis o testemunho de A. Marques Lopes:

"Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... eles não nos deixaram aproximar mais por
outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas... Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.
Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me vêem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau! Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina? Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exacto e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.
Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres. Tinha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.(...) Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde... por aqui, mais ou menos... estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.
A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo recto.

Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima. Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?... Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.
(...) A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...
(...) Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa.
Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas. A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa.
Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.
Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.
Relax e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "in" e o "turra" são, de facto,
(Continua aqui )

2006/02/23

Frida Kahlo no CCB, em Lisboa

De 24 de Fevereiro a 21 de Maio estarão em exposiçção no CCB em Lisboa, 26 obras provenientes do Museu Dolores Olmedo, no México, onde se encontra a maior colecção mundial da artista.
Esta exposição incluirá também uma colecção de fotografias e objectos pessoais pertencentes àquele museu mexicano e que oferecem um registo da vida da artista desde a infância até à sua morte.



Passados 52 anos sobre a sua morte, a pintura de Frida Kahlo (1907-1954) continua a despertar o interesse do público devido à sua arte controversa e à história da sua vida, marcada pelo sofrimento físico devido à doença e por amores difíceis.
Entre 1926, quando pintou o seu primeiro auto-retrato, e a sua morte, quase trinta anos depois, Kahlo produziu cerca de duas centenas de quadros.
A relação amorosa com o pintor muralista mexicano Diego Rivera despoletou ... (continua aqui)



Frida e Diego Rivera (seu marido)


Auto-retrato (dedicado a Trotsky, 1937)


As duas Fridas(1939. Divórcio de Rivera)


Raizes (1943)

A coluna partida (1944)

A Corçazinha

1949

2006/02/02

Woody Allen no seu melhor

O grande cineasta americano deixou o seu habitat de Manhattan e foi a Londres fazer Match Point. Um dos seus melhores filmes. Parece dominar Londres, as ruas, os parques e os abismos sociais tão bem como os ambientes de Nova York que nos tornou familiar.
Um drama moralmente incorrecto onde os críticos descobrem Fiodor Mikhailovitch Dostoievski, Ingmar Bergman e Alfred Hitchcock. Uma realização magistral.
A história é muito simples. Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers) é um irlandês pobre que chega a Londres para arranjar um job e tentar subir na vida. Dá lições de ténis a gente rica e aí conhece Tom Hewett (Matthew Goode) filho de um grande industrial (Brian Cox) que o introduz na sua requintada família. A irmã Chloe (Emily Mortimer) apaixona-se rapidamente por Chris. O pai que já sofreu o susto de ver fugir a filha com um qualquer, emprega o irlandês que, dadas provas de trabalho, rapidamente promove a lugar de topo. Entretanto Chris conhece a namorada de Hewett uma sedutora e sensual americana, eterna candidata a atriz, Nola Rice (Scarlett Johansson) por quem se apaixona perdidamente. Que fazer? (Interrogação histórica que já Lenin, noutro contexto, tinha em tempos colocado;-)Estatuto social ou o amor? Chris se se conforma provisoriamente (?) com o casamento com Chloe não deixa de se arrebatar crescentemente pela sensual Nola.
Depois Hoody Allen move esta gente rica e aquela gente pobre em volta uma da outra. Coloca em conflito o amor, a dignidade, a paixão com a ascensão social e a fortuna. O dinheiro e o amor. A fidelidade e a traição. A vida e a morte.
Hoody Allen aproveita para dizer de forma muito bem gizada e quase convincente que o destino de um homem não está na sua mão. Mas na sorte. No acaso. Uma aliança de ouro atirada ao rio pode bater esquivamente no parapeito metálico. E ficar por ali subindo de ricochete no ar, revolteando indecisa entre perder-se nas águas do rio ou tombar para o lado do passeio e salvar uma vida.
O filme desenvolve-se nos limites de uma história simples num crescendo de tensão entre opções que se excluem: a paixão e a fortuna. O bem e o mal. Até à explosão final.



Ficha do filme:
Data de estreia:2006-01-19
Título original:Match Point
Realização:Woody Allen
Elenco: Scarlett Johansson; Jonathan Rhys-Meyers; Emily Mortimer; Brian Cox; Matthew Goode; Penelope Wilton; Layke Anderson; Morne Botes; Ewen Bremner; Scott Hanay; Rose Keegan
Argumento:Woody Allen
Produção:Michael Dounaev; Stephen Tenenbaum; Jimmy de Brabant
Estúdios:British Broadcasting Corporation (BBC); Magic Hour Media; Thema Production; Invicta Capital Ltd.; BBC Films
Género:Drama / Thriller
Duração:124 min.
País:Reino Unido



IMAGENS DO FILME


Chris Wilton e Tom Hewett


Chris e Chloe


Nola Rice (no pub com Chris)


Chris (no pub com Nola)


Chris Wilton e o sogro


Chloe, Chris e Nola


C e N


C e N


C e N


Chris e a mulher Chloe

2006/01/29

54% de votos puseram Evo na presidência e a Bolívia no mapa

O turismo é que está cheio de esperança e o maior cartaz é Evo Morales, o presidente índio. (indígena é o nome politicamente correcto. Indio consideram eles que é apenas um erro de brancos que julgavam ter chegado à Índia quando afinal tinham chegado à América).
Anos e anos de instabilidade, golpes militares, rebeliões populares, 5 presidentes em quatro anos, quatro eleições em que nenhum partido tinha maioria e os presidentes surgiam em geral de coligações de partidos minoritários no parlamento, apadrinhados pela embaixada norte-americana, em La Paz, agora a Bolívia está em paz e é um país estável. Pensam alguns. Talvez a maioria indígena. A corrupta aristocracia branca não partilhará tal desígnio.
Evo Morales conseguiu colocar a Bolívia no mapa. Aconteceu o que nunca tinha acontecido. Na sua investidura estiveram 1.300 jornalistas estranjeiros (com a CNN a enviar imagens exóticas para todo o mundo) que assistiram às três investiduras: a primeira foi a investidura em Tiwanaku, como líder indígena de Bolívia e América Latina, uma espécie de entronização com os ritos das culturas Quechua, Aymara e Tiwanakota. (Foto)
Depois a investidura no congresso com a presença de dez presidentes entre os quais o do Brasil, Argentina, Venezuela e pela primeira vez na história da Bolívia do presidente do arqui-inimigo o Chile em missão de paz e cooperação.
E por fim a investidura popular ao encabeçar o desfile sindical e popular, em La Paz.
Antes da tomada de posse já o périplo internacional e o encontro com os respectivos chefes de Estado (em camisola ou em samarra!): começara a chamar a atenção para este ignorado, e paupérrimo país dos Andes. Foi Cuba, Venezuela, Espanha, Holanda, Bélgica, França, China, Africa do Sul, Brasil, Argentina.

Bolívia: a coca e o narcotráfico

"Como máximo dirigente de los cultivadores de coca de esta zona, Morales soportó durante años denuncias de sus adversarios sobre presuntos nexos con el narcotráfico. Ya en la base militar, el Presidente se dirigió a... Chimoré, donde la población de unas 20.000 personas le rindió una cálida acogida en medio de una fiesta popular. También custodiado por una guardia sindical, conformada por jóvenes cocaleros, el Jefe de Estado se trasladó al frente de una caravana de vehículos hasta el poblado vecino de Shinahota, donde una multitud de campesinos le esperaba para escuchar un mensaje sobre la nueva política antidrogas.
El Mandatario fue acompañado por el vicepresidente Álvaro García, el titular de la Cámara de Senadores, Santos Ramírez, y los ministros de Gobierno, Alicia Muñoz, y de Defensa, Walker San Miguel. AFP [link]
"En su primer discurso como Presidente de la República en el Chapare, la zona que lo vio nacer como dirigente cocalero, Evo Morales, puso en claro las líneas de su política de la coca. Ratificó “jamás” habrá coca cero, y que “el cato por familia no se negocia”, hasta que se realice el estudio de su mercado legal. Pero aseguró que el aporte será la racionalización de la producción de la hoja.
Ante cientos de cocaleros, en un encuentro que se realizó en la población de Shinahota, Morales señaló:
“La defensa de la coca nos hizo despertar. El MAS —su partido—, ha sido parido por ella... En nuestro gobierno jamás habrá la llamada coca cero. Tantos engaños de autoridades de gobiernos que pasaron por el Palacio (para lograr el objetivo establecido en la Ley 1008, que establece que la hoja es ilegal en el Chapare), fracasaron”.

Señaló que las fuerzas extranjeras que buscan coca cero también van a fracasar —EEUU, por ejemplo, condiciona su ayuda económica de más de 90 millones de dólares, a las labores de erradicación e interdicción en el trópico de Cochabamba—. “El estudio demostrará cuánta coca se va a producir en el país. El cato por familia no se negocia”, puntualizó.

En el 2004, el ex presidente Carlos Mesa aceptó que en el Chapare se cultivaran 3.200 hectáreas de coca, mientras se realizaba un estudio para determinar si la demanda lícita de la hoja para fines alimenticios, medicinales y rituales ha superado las 12.000 hectáreas previstas en la legislación.

Pero, informes oficiales mencionan que en Bolivia ya hay sembradas más de 27.000 hectáreas de coca, 10.000 de las cuales están en el Chapare y 17.000 en los Yungas, región donde sólo debían sembrarse las 12.000 legales.
En este punto, Evo Morales aclaró: “queremos aportar racionalizando la producción, luchando contra en narcotraficante y no contra el cocalero”.
Además, exhortó a las bases a que el control para evitar la producción excedentaria, estaría regido básicamente por los mismos dirigentes cocaleros.
´Ustedes compañeros son los responsables de respetar y hacer respetar los convenios acordados´,
expresó al insistir que lo contrario restará credibilidad a las bases cocaleras.

El Presidente exige control al cato de coca Una extensión de 40x40 metros por cada una de las 23 mil familias es todo lo que está permitido cultivar en el Chapare, hasta que se concluya el estudio del mercado legal. Pide que sus bases respeten los acuerdos.
La coca servirá, dijo, para el consumo, y también para la exportación e industrialización.
Como ejemplo, mencionó que en Argentina el consumo es legal, pero la importación es ilegal, “por eso trabajaremos para conseguir que nuestra coca sea exportada de manera legal”.

Y esa tarea estará asignada, afirmó Morales, a un nuevo viceministro, el ex alcalde de Villa Tunari, Felipe Cáceres. Además, el Presidente decidió cambiar el nombre de esa repartición, que antes era denominaba de Defensa Social, y que ahora se llamará Viceministerio de Coca y Desarrollo Integral.

Indicó también que la misión del Ministerio de Gobierno, que antes era un ente represor, será iniciar la despenalización de la coca.
“Compañeros, la despenalización no es el libre cultivo. Nosotros vamos a iniciar una campaña para sacar a la coca de la lista de venenos de las Naciones Unidas”.

Pidió a los cocaleros que lo convoquen si en algún momento ven que se “está equivocando”. Hay un congreso de las 6 federaciones del 11 al 14 de febrero. “Voy a asistir allá , para dar mi informe”, señaló. Redacción Cochabamba, AP y ANF [link]

2006/01/09

Inês Fontinha

"Não conheço nenhuma mulher que goste de ou queira ser prostituta" - diz a minha amiga Inês Fontinha, por quem temos todos uma dívida de gratidão, na entrevista da Renascença Diga lá Excelência transcrito no Público de 2006-01-09.
por Sofia Branco (PÚBLICO) e Paulo Magalhães (Rádio Renascença).

"Inês Fontinha, a convidada do programa Diga Lá Excelência, é directora de O Ninho, uma instituição particular de solidariedade social fundada em 1967. Esta madeirense de 62 anos, formada em Sociologia, nomeada para o Nobel da Paz, condecorada por Jorge Sampaio e homenageada pela Assembleia da República com o Prémio de Direitos Humanos trabalha há 30 anos na reinserção social das pessoas que se prostituem. "

PÚBLICO - Qual é o perfil da pessoa que se prostitui?
INÊS FONTINHA - Há um conjunto de factores que interagem entre si e não podemos isolar um, nem um tem mais peso do que o outro. Entre eles estão o trabalho infantil, a violação ou o abuso sexual na infância, o desamor.
O campo pró-legalização fala em histórias de vida "normais", de mulheres casadas, com filhos, muitas vezes com outras profissões, que optam pela prostituição. Esta opção parece-lhe totalmente descabida?
Parece-me uma análise incorrecta da realidade. Uma mulher que tem três ou quatro filhos, ganha o ordenado mínimo, tem uma renda de casa para pagar e o dinheiro acaba-lhe no dia 10 ou 15 pode prostituir-se para alimentar os filhos. Se falar com ela, vai perceber que ela não tem o plano de permanecer na prostituição, o projecto é sempre a saída.
O Ninho já lidou com sete mil mulheres. Não é uma gota de água, já que há quem aponte para a existência de 30 mil prostitutas?
Naturalmente. São números preocupantes... Dizem 30 mil e podem ser muitas mais. A prostituição em Portugal não está quantificada. O que interessa é tentarmos encontrar em conjunto soluções para esta situação. Quando vivemos numa sociedade que se diz moderna, pergunto por que é que o sexo pago ainda existe?
Por que existe?
Vivemos numa sociedade em que, apesar dos avanços no campo dos direitos das mulheres, muita gente ainda concorda com uma situação em que a mulher está completamente subalternizada ao homem, é um objecto, um instrumento de prazer do homem.
Há um estudo da Universidade do Minho que diz que os clientes são pessoas perfeitamente socializadas, "normais", sem comportamentos patológicos. Qualquer homem é um potencial cliente de prostituição?
O conhecimento que temos em relação aos clientes é indirecto, através das mulheres que acompanhamos. O que sabemos é que o cliente é proveniente de todas as classes sociais. Apenas o local onde procuram a mulher é diferenciado consoante o seu poder de compra, de um modo geral. Esse estudo também aponta para a legalização da prostituição, concedendo ao homem o poder legítimo de comprar o sexo a uma mulher.
Não é o poder legítimo de a mulher o poder vender?
Não. É o poder legítimo de o homem querer e poder comprar. Não conheço nenhuma mulher que goste de ou queira ser prostituta. Não conheço nenhuma família, por muito desorganizada que esteja, que tenha como projecto de vida para os seus filhos serem prostitutas ou prostitutos.
A Suécia penaliza desde há alguns anos os clientes. A solução poderia passar por aí em Portugal também?
Temos de reflectir muito sobre a nossa realidade. Estamos preparados para punir o cliente? A Suécia considera que a igualdade de género passa pela punição do cliente e esteve anos a preparar a opinião pública, tanto que hoje 80 e tal por cento da população são favoráveis a esta medida. É completamente diferente de Portugal, em que o cliente é rei e senhor. Não é ter uma lei apenas no papel, é para a fazer cumprir.
Não concorda com a legalização?
Não se legaliza algo que é contra os direitos humanos. O que não quero para mim, não quero para os outros.Acha que o vazio legal existente...Não há vazio legal. Temos um sistema abolicionista, que imperou na Europa durante muitos anos. Porquê este frenesim de alguns países europeus em legalizar a prostituição, dizendo que vão combater o tráfico? É falso, está provado! Legalizando a prostituição, fomenta-se o tráfico. A Holanda é um exemplo disso.
Mas o sistema actualmente existente em Portugal funciona?
Não funciona porque não existe vontade política de fazer prevenção nem de inserir as pessoas.
O que falta?
É necessário invertermos a política que temos neste momento. O ordenado mínimo não chega para uma mulher sobreviver sozinha com um filho, a habitação é um problema grave, as rendas vão aumentar... Há uma desigualdade profunda.
Encara sempre as prostitutas como vítimas?
Acho que lhes deveríamos dar um verdadeiro estatuto de vítima.
Mas isso não as menoriza, fazendo-as depender sempre de ajuda externa, negando-lhes a autodeterminação?
Não, de modo algum. Concordo que devemos dar poder às pessoas para decidirem da sua própria vida. No trabalho de rua que fazemos, elas desejam mudar a sua situação e dizem-nos muitas vezes que ficam mais um ano até resolverem os problemas e depois vão-se embora, mas passado um ano elas mantêm-se lá. Porque a desvalorização é profunda. Por isso, a ajuda externa é de extrema importância, para poder abrir portas e dizer: há esta possibilidade. O que falta são os apoios necessários para dar reais oportunidades às pessoas.
Centra-se na reinserção social. Como encara as declarações do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Jorge Lacão, que afirmou, em entrevista ao PÚBLICO, que "a via da reinserção social é fictícia"?
Se disse isso, ignora o que é a reinserção social. Das sete mil mulheres que passaram pelo Ninho, 90 por cento estão integradas. Se 90 por cento estão integradas, não se aposta na reinserção? Não estou a perceber. É necessário é dar meios, isso sim. E O Ninho não tem, anda sempre à procura de meios.
Falamos sempre de mulheres no caso da prostituição. Há homens que vão ter com O Ninho?Alguns. A percentagem é pequena. Devido às carências, não temos resposta para essas pessoas.
A resposta é diferente para homens e mulheres, é isso?
A violência nos homens ainda é mais profunda.
Porquê?
Porque um cliente é sempre um homem... Eles contam coisas inimagináveis.
Nunca falam de clientes mulheres?
Não, não conhecemos essa realidade.
ão estão as pessoas que se prostituem mais protegidas se forem encaradas como trabalhadoras?
Vender o corpo é um trabalho? Fala-se muito em trabalho digno. Será que isto é um trabalho digno? A prostituição não é um trabalho. Ser penetrada 20 vezes ao dia é satisfatório para alguém? Estamos a falar em prostituição!
Trabalha no sentido de acabar com a prostituição um dia?
O Ninho é membro fundador de uma federação europeia para o desaparecimento da prostituição, criada porque a comunidade europeia está a ser pressionada pelo proxenetismo organizado no sentido da legalização.
Não é uma utopia querer acabar com a prostituição?
A nossa história é feita de utopias.



O Ninho vive do mesmo subsídio desde 1987

Como surgiu o problema da prostituição na sua vida?
Foi através de um amigo meu que dava apoio ao Ninho e me convidou a visitar a instituição. Era uma problemática que eu desconhecia, que estava muito longe de mim. Uma das coisas que mais me perturbou na altura foi ouvir as histórias de vida daquelas mulheres. Para mim foi uma tomada de consciência, a todos os níveis, mas fundamentalmente política.
Como lida com essas histórias complicadas no seu dia-a-dia?
Todos os dias vamos aprendendo coisas novas com as mulheres que estamos a acompanhar. Não podemos sofrer com elas mas compreender o sofrimento e minimizá-lo.
Lida da mesma maneira com cada uma das mulheres que lhe aparece?
Não. Cada situação é uma situação. E cada pessoa sente a sua situação de forma diferente. Na história de vida das mulheres que acompanhamos há factores comuns, de ordem psicológica e social. Não quero dizer com isto, de modo algum, que todas as pessoas que passaram por situações semelhantes irão prostituir-se amanhã ou daqui a um mês. Mas há uma subcultura de pobreza, em que as pessoas ficam vulneráveis, ficam fragilizadas e, portanto, são presas fáceis para o recrutamento.
Sente-se recompensada com os prémios que O Ninho vai tendo?
É sinal que o trabalho é reconhecido. Mas esses prémios não se traduziram em mais apoios. É um reconhecimento, e claro que isso é gratificante. Mas não passa de um reconhecimento.
De que vive O Ninho?
O Ninho tem atravessado dificuldades imensas. Vive de um subsídio mensal dado pela segurança social, que nunca foi actualizado desde 1987.


In SOLIDARIEDADE
...
"As histórias dramáticas destas mulheres não começam apenas quando entram para o mundo da prostituição, mas logo na infância, segundo Inês Fontinha, presidente da associação O Ninho, que apresenta números chocantes. Um inquérito feito a sete mil mulheres portuguesas acompanhadas ao longo de 10 anos denuncia que "cerca de 90 por cento das prostitutas foram vítimas de violação ou abuso sexual entre os oito e os 12 anos", afirmou a presidente da instituição que há 38 anos apoia as mulheres vítimas do submundo da prostituição... [link]

2005/12/04

"O frio é a minha morada"

Fotografia DN-Nuno Fox

Âgela Marques no DN, hoje. Mostra-nos a Lisboa que não vemos. Avenida Almirante Reis, Américo, 75 anos. Dorme sentado num caixote de papelão, com um cobertor a esconder a cara do frio. "Não quero nada... só quero abrir os olhos todos os dias de manhã."
Vivo "um dia, depois mais um dia, depois outro dia". Assim há 15 anos. "Antes disso, fui empregado no Banco Nacional Ultramarino."

A Guerra

Sinto-me como que desarmado - tão grande é a leviandade ou a estupidez ou a ausência de valores - sempre que vejo alguém fazer a apologia da guerra. Qualquer guerra. Colonial, imperialista, disputa de fronteiras, guerra civil. Excepto claro está, depois de esgotados todos os outros recursos, a guerra de libertação.
A guerra é sempre a máxima violência física e moral. É sempre o sofrimento máximo e a máxima tragédia. Veja-se o Iraque, o Vietnam, a Tchechénia, o Ruanda. Ou as guerras coloniais portuguesas.

Vem isto a propósito de um post de um amigo meu, Marques Lopes, num blog de ex-combatentes da guerra colonial, que descobri transcrito pelo João Tunes no Água Lisa. É um depoimento pungente e que nos conta um triste episódio de guerra que ceifou a vida de uma jovem guineense e perseguirá, traumático, por toda a vida o jovem alferes miliciano obrigado pelo colonial-fascismo português a "defender a pátria" na... Guiné Bissau.

A guerra na Guiné tornara-se muito perigosa com o crescente poder militar do PAIGC. O jovem miliciano já tinha sido ferido e estava de novo de volta à guerra. É uma manhã de Julho de 1967. Conduz pela mata o seu pelotão, perigos estão por todo o lado. Deparam com uma força inimiga! A tensão é grande mas é apenas uma escola do PAIGC no mato. Uma jovem professora talvez com 18 anos ensina Português a crianças guineenses. No quadro preto está escrito "um vaso de flores" e por baixo o desenho correspondente.

Surpreendida e assustada a professora lança mão da Kalachnikov pendurada no quadro. Marques Lopes grita-lhe "firma lá" ("está quieta aí"). O que se segue é o perigo, o susto, o medo, a raiva, o pânico. A guerra!

A jovem professora de Português caiu esventrada com uma rajada de metralhadora e Marques Lopes carrega há trinta e oito anos essa cruz.

Ele conta ainda algo mais. Algo terrível. Algo que exemplifica bem no que as guerras podem transformar os homens. Ele tem de impedir à pancada um soldado do seu pelotão (um rapaz vulgar de uma nossa qualquer aldeia) de violar a jovem agonizante.



Uma escola do PAIGC, na mata. ( 1970 ?)


Marques Lopes:

"...Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira [Bissau, 1998], tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus.

Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava.

Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho [de 1967].

Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada.

Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia [cinema de Lisboa], fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)"

O post de Marques Lopes está [aqui] e a transcrição do JT [aqui].

2005/11/27

O 25 de Novembro de 1975 (2)

A entrevista propriamente dita, conduzida por José Manuel Barroso, que dei ao Diário de Notícias, no 20º aniversário do 25 de Novembro, está no post precedente, ali em baixo. Neste vão os comentários do entrevistador.
José Manuel Barroso é um especialista, investigador (quase historiador) que ano após ano, no DN, escalpelizou os meandros da revolução e conseguiu, a pulso, contra as meias verdades e os bem guardados segredos, da esquerda e da direita, expor à luz do dia os episódios e as motivações mais resguardadas da revolução e do 25 de Novembro em especial.


TEMA DE ABERTURA - DIÁRIO DE NOTÍCIAS, DOMINGO 26 DE NOVEMBRO 1995
memória do
25 DE NOVEMBRO

José Manuel Barroso

O Partido Comunista
a esquerda militar
e o 25 de Novembro



RAIMUNDO NARCISO deputado independente eleito nas listas do Partido Socialista no passado dia 1 de Outubro foi militante do Partido Comunista cerca de 30 anos, dirigente da ARA e do Comité Militar do PCP. Era ainda membro do seu Comité Central quando em 1991, abandona o partido, depois de um processo de divergências e de rotura que se acentua no XII Congresso em 1988. Com ele saem António Graça, Victor Neto, Pina Moura, José Barros Moura e José Luís Judas entre outros. Foi membro fundador da Plataforma de Esquerda. Esta é a primeira entrevista que concede sobre os tempos da revolução e o relacionamento entre o PC e os militares, aproximação a uma densa realidade, ela constitui, desde já, um documento indispensável para entender o período revolucionário e o 25 de Novembro de 1975.



A ENTREVISTA que se publica nas páginas seguintes passará a constituir seguramente um do mais importantes documentos até hoje publicados sobre o 25 de Novembro de 1975 e o processo revolucionário em curso nesse ano. Na entrevista que Raimundo Narciso concedeu ao DN não são feitas revelações de pormenor que nos permitam ir ao fundo do conhecimento sobre o papel do Partido Comunista Português nesse evento e sobre o seu relacionamento com a esquerda militar e o MFA. Mas, sem nunca ferir a lealdade e o respeito devidos a pessoas que fizeram um percurso comum, o entrevistado desfaz suficientemente a teia do pensamento e da acção do PCP, nos idos da Revolução, para permitir ao leitor atento tirar conclusões claras das suas respostas.

A entrevista de Raimundo Narciso tem a autoridade que lhe dá o facto de ele ter sido um importante dirigente do PCP, durante muitos anos, membro do seu Comité Central e do Comité Militar do partido — o que lhe deu a possibilidade de, como ele próprio diz, ter acompanhado e participado «em todos o acontecimentos decisivos da Revolução», incluindo o 25 de Novembro. A entrevista tem, também, a ousadia e a inteligência de facultar um conjunto de informações muito importantes sobre esses acontecimentos, por considerar que «vinte anos depois é tempo para disponibilizar todos os elementos aos historiadores», com excepção de alguns «segredos» que não são só seus.

Excepção feita a esses «segredos», Raimundo Narciso faculta-nos, assim, elementos suficientes para compreender quanto a actuação do PCP, junto dos militares, foi a consequência de um plano estratégico, pacientemente aplicado ao longo dos anos, incluindo os quase dois da Revolução. Fica claro, também, quanto o PCP utilizou os seus homens, no interior das casernas, para estar presente no 25 de Abril, para influenciar, por dentro, o MFA e o rumo dos acontecimentos — até aproximar a «revolução democrática e nacional» de Abril de 1974 da «revolução socialista», que na sequência do 11 de Março se toma possível. E a aplicação, sem temores, do programa do partido, fase por fase, exclusivamente dependente da «relação de forças» — até ao 25 de Novembro.

A «porta para o socialismo» (tal como o PCP o entendia, a partir da matriz soviética) que o 11 de Março abre — com as nacionalizações a reforma agrária e a recomposição favorável à esquerda revolucionária dos órgãos do poder político–militar - havia sido quase fechada pela resistência civil, com o PS de Mário Soares à cabeça, e pela resistência militar, liderada pelo Grupo dos Nove.

Tendo perdido, nesse «Verão quente», largo apoio social e poder nas instituições político-militares, o PCP e seus aliados querem recuperar posições institucionais e forçar um entendimento, no seio do MFA, para «derrotar a direita», sob pena de ser por ela mais tarde derrotado. Sem desistir do seu projecto nacional. O 25 de Novembro terá sido isso. Matéria que, naturalmente, fica para o final desta série de trabalhos.

O 25 de Novembro de 1975


Entrevista conduzida por José Manuel Barroso, publicada no DN de 26 de Novembro de 1995,

***
 
Diário de NotíciasO 25 de Novembro foi um conjunto de sublevações miIitares coincidentes ou uma tentativa articulada para mudar a composição dos órgãos do poder a favor da esquerda militar e do PC?
 
Raimundo Narciso – O 25 de Novembro foi o momento em que a esquerda revolucionária, no plano militar, respondeu à última «provocação» do campo oposto com uma parada demasiado alta e que com espanto e desespero, verificou a seguir não estar em situação de sustentar.
Essa parada demasiado alta foi a ocupação das bases e do comando da Força Aérea, por parte dos pára-quedistas de Tancos, na madrugada de 25 de Novembro. Com essa medida os pára-quedistas respondiam à provocação do chefe do Eslado-Maior da Força Aérea, Morais e Silva, que actuando de acordo com o Grupo dos Nove e o de militares mais à direita, seus aliados, ordenara a sua extinção.
Com esta medida, os «páras», a esquerda militar (EM) e a esquerda revolucionária em geral, não pretendiam desencadear a «mãe de todas as batalhas». Pretendiam «apenas» ganhar a importante batalha da substituição de Morais e Silva, no EMFA e no Conselho da Revolução, e se possível, na passada, conseguir a inversão do processo de constante perda de posições nos órgãos do poder político-militar, que ocorria desde a Assembleia do MFA de Tancos, em 6 de Setembro. E não era pouco. Para isso julgavam que podiam contar com Otelo e que conseguiriam, para o efeito, ganhar o Presidente da República, Costa Gomes, para o seu lado.
 
DN – E a força dos «páras» era suficiente?
 
RN - Para sustentar esta subida da parada não bastava que o Ralis e a EPAM accionassem, como o fizeram, o seu dispositivo de defesa (ou ataque?) era necessário que os fuzileiros com a sua formidável força de 12 companhias operacionais entrassem na dança. Não entraram, como se sabe.
As forças militares que se opunham ao projecto do PCP e ao prosseguimento do processo revolucionário, lideradas pelo sector moderado do MFA, os "Nove", conseguiram, neste contexto, a adesão do Presidente Costa Gomes para o seu plano e assim dispor do importante factor legalidade traduzido no controlo da cadeia de comando militar oficial.
Reunidas estas condições, os "Nove", onde pontificavam Vasco Lourenço e Melo Antunes mas também figurava Canto e Castro, juntamente com os seus aliados, desencadearam a ofensiva para a qual há um certo tempo se vinham preparando. Este agrupamento de forças militares, que não respondia só, nem principalmente, à linha de comando oficial que tinha Vasco Lourenço logo abaixo do PR, desferiu um golpe decisivo que pôs fim à revolução e minou de caminho o poder do próprio sector moderado do MFA, os "Nove".
 
DN - Mas os «páras» saíram às ordens do PCP, da esquerda militar, ou por sua própria iniciativa?
 
RN — Sobre o assunto dos pára-quedistas podia-lhe dar uma excelente «caixa» porque, acompanhei ou participei em todos os acontecimentos decisivos da revolução, incluindo este — acontecimentos que, por vezes, mudavam a situação hora a hora ou minuto a minuto. Mas mesmo se vinte anos depois, é tempo para disponibilizar todos os elementos aos historiadores não quero desvendar alguns segredos que não são só meus.
 
DN – A Direcção do PCP e os militares seus aliados acharam que era necessário avançar, para uma acção de força, nesse momento, para evitar que fosse submergida mais tarde por um golpe de direita?
 
RN — Acharam que era necessário fazer qualquer coisa para inverter a crescente perda de posições políticas e militares institucionais. Tinham perdido o Governo, tinham perdido quase toda a força de que dispunham no Conselho da Revolução. Até o incerto mas importante Otelo, comandante do Copcon, tinha sido neutralizado e substituído por Vasco Lourenço no comando da Região Militar de Lisboa, dois dias antes do 25 de Novembro, pelas forças adversárias. Estou convencido que a saída dos pára-quedistas não foi uma acção que fizesse parte de um plano de operações político-militar amadurecido. Tal como o campo contrário, a ala do MFA próxima do PCP estava a organizar-se para uma eventual futura confrontação militar mas não tinha ainda um comando, sistema de forças e dispositivo consistentes.
 
DN— A influência do PCP nos quartéis da área de Lisboa era suficiente para determinar o avanço ou recuo de um processo militar como o do 25 de Novembro? Passava-se o mesmo com os pára-quedistas de Tancos?
 
RN — É uma pergunta a dirigir ao PCP. Como observador posso concluir que essa influência em 25 de Novembro, foi a que se viu. Tanto em Lisboa como em Tancos. Em minha opinião, a influência do PCP, medida pelo número de militares do quadro permanente que lhe eram afectos ou próximos era muito pequena no 25 de Abril mas cresceu sempre até, ao 25 de Novembro.
Já entre, os milicianos, o PCP tinha, em 25 de Abril de 1974, uma grande influência. O papel dos oficiais milicianos na preparação e eclosão do 25 de Abril e em toda a revolução, cuja história está por fazer, foi importante. Pela, sua influência ideológica junto dos oficiais do QP e como seus auxiliares no comando de tropas. Os oficiais milicianos também tiveram um importante papel na derrota do 11 de Março e, posteriormente, nas assembleias e outras estruturas do MFA.

«Uma derrota relativa»

DN— Em termos políticos, o saldo do 25 de Novembro foi uma vitória ou uma derrota do PC e da esquerda militar?

RN – O 25 de Novembro foi uma derrota para o PCP e para a esquerda militar. Em todo o caso, foi apenas uma derrota relativa — devido ao papel moderador de Costa Gomes, Melo Antunes, Vasco Lourenço e, nalguma medida, de Ramalho Eanes, também.
Foi uma derrota porque o 25 de Novembro impediu o prosseguimento da revolução no sentido do projecto de sociedade do PCP e que, à parte as particularidades nacionais, era na essência, igual ao da sociedade comunista de Leste. Derrota por que afastou o PCP do Governo e de um modo geral dos órgãos do poder de Estado, porque impediu a estabilização de conquistas da revolução já adquiridas, tais como a Reforma Agrária, as nacionalizações, etc.
Para o PCP, o 25 de Novembro também pode ser considerado uma vitória no sentido em que uma pessoa que parte uma perna tem imensa sorte por não ter partido as duas.
Assim, o 25 de Novembro representa uma vitória parcial porque o PCP não foi ilegalizado e pôde viver em democracia, numa democracia que, como se sabe, o comunismo nunca facultou aos seus adversários.

DN — No Verão de 75, tendo a esquerda revolucionária sofrido grandes derrotas, porque avança o PCP para a agudização das lutas sociais e militares?

RN — O PCP tentou com a agudização de todo o tipo de lutas, fomentando umas, dando cobertura ou não se demarcando de outras, compensar o seu crescente isolamento político, social e militar e conduzir a revolução por aí fora. Caso República, cerco da Assembleia da República, manifestação dos SUV (Soldados Unidos Venceremos!).
É necessário, para compreender a situação, não esquecer a rede bombista e a vaga de assaltos às sedes do PCP, do MDP de sindicatos e outras organizações de esquerda, no Verão quente, desencadeada pela extrema-direita. A 13 de Julho é assaltada e destruída a sede do PCP e da FSP em Rio Maior, a 16 assaltada a sede da Batalha, a 17 a do Cadaval, a 18 a da Lourinhã e assim até ao 25 de Novembro e depois.

DN — Tendo a revolução entrado em derrapagem e o PCP em perda de posições não deveria antes moderar a sua acção e aproximar-se do PS e do sector moderado do MFA?

RN — Uma particularidade do comunismo português na revolução do 25 de Abril, foi o PCP, muito cedo, pensar que podia dispensar o PS, na sua política de alianças. Para tanto utilizou a fórmula Aliança Povo-MFA em que o povo estaria suficientemente representado pelo PCP e o MDP ou, no Verão quente, em estado de desespero, também pelas outras organizações da FUR. Pareceu ao PCP que a aliança com a base social representada pelo PS poderia ser assegurada através do sector moderado do MFA complementada pela Intersindical.
O PCP reconhece, no plano teórico, no Verão de 75, a urgente necessidade de lutar pela unidade do MFA e de evitar a radicalização da luta que isole o PCP. É esse o resultado do debate havido na reunião do Comité Central em Alhandra, a 10 de Agosto, um dia depois da publicação do Documento dos Nove. Também o discurso de Vasco Gonçalves, em Almada, a l8 de Agosto, é apreciado de modo negativo. O PCP esperava desta intervenção uma tentativa de aproximação aos "Nove" e o que saiu foi radicalização.
Curiosamente a par desta análise teórica a intervenção prática do PCP não vai no sentido de travar a radicalização das lutas, umas por si organizadas, outras pelos sectores da esquerda mais radical, outras espontâneas.
 
A «unidade de pensamento»

DN — Houve no PCP uma luta entre moderados e radicais face ao ritmo do processo revolucionário? Muitos militares, então próximos do partido, e alguns ex-militantes dizem ter ela existido.

RN — Que eu conheça não. Havia — e provavelmente continua a haver — dirigentes mais radicais e outros mais moderados. Isso acontece em todas as formações partidárias, mesmo que não seja reconhecido. Mas a liderança incontestável de Álvaro Cunhal não dava abertura para um debate que pudesse pôr em causa a sua orientação – e em risco a tão desejada «unidade de pensamento».

DN — Que representa a FUR no contexto do Verão quente de 1975?

RN — A necessidade de ocultar o crescente isolamento político do PCP resultante da crescente radicalização da sua acção política.

DN — O comportamento do PCP teve por objectivo um regime de matriz soviética ou democrática do tipo ocidental?

RN — Logo a seguir ao 25 de Abril e até ao auto-afastamento de Spínola, a preocupação fundamental do PCP era a consolidação do regime democrático do tipo ocidental. Depois do 11 de Março o PCP orientou a sua luta para as conhecidas «grandes conquistas da revolução».
No entanto, em momento nenhum, o PCP esquecia que o objectivo último da luta era o socialismo. Isso mesmo fazia questão de constantemente lembrar, internamente, aos militantes. Havia a fase da revolução democrática e nacional e a fase da revolução socialista. Mas a passagem de uma a outra fase não era tanto um questão de meses ou anos mas de relação de forças.

DN — Até que ponto PCP acompanha as movimentações da área militar?


RN — Não só acompanha como intervém, no sentido de influenciar os acontecimentos militares. Os próprios acontecimentos militares do 25 de Novembro não aparecem como um acto isolado, mas de sucessivas acções da esquerda militar, dos “Nove” e da direita — no sentido de cada um ganhar posições, para o seu lado. E havia o claro entendimento de um provável choque militar.

DN – Pode dizer-se haver uma clara aliança entre a esquerda militar e o PCP?

RN – Pode dizer-se, com clareza, que a esquerda militar foi-se constituindo como a expressão da influência militar do PCP no MFA.

DN — Havia, portanto um relacionamento constante, entre a direcção do PCP e a da esquerda militar?

RN – A esquerda militar era o sector do MFA que estava mais próximo do projecto político do PCP e o que melhor podia defender as suas posições no plano político-militar.

DN – Otelo foi uma cartada mal jogada, no 25 de Novembro?

RN—Foi uma cartada que não foi possível controlar, apesar de haver esperanças e esforços no sentido de o aliar à esquerda militar. Como se sabe, houve um período em que dirigentes do PCP se deslocaram com alguma regularidade ao Copcon para troca de opiniões políticas — e que não tinham outro objectivo que não fosse poder aproximar Otelo da posição do PCP, com vista a uma unidade entre o sector do Copcon e a esquerda militar.

DN — Quando foi compreendido por parte do PCP, que essa unidade não era possível?

RN — O 25 de Novembro comprovou, definitivamente, que o PCP não podia contar com Otelo Saraiva de Carvalho.

DN – O PCP tinha uma significativa influência, entre os graduados do corpo de pára-quedistas de Tancos?

RN – Tinha, sobretudo, uma grande influência entre os sargentos «páras». Foram públicas várias sessões de esclarecimento para sargentos da Força Aérea — que incluía, em especial, sargentos pára-quedistas – num cinema da região.

DN — Seria normal que militantes do PCP, sobretudo sendo militares, tomassem decisões de grande importância, no campo da acção, sem aviso ou consulta ao partido?

RN — Não era normal — mas, por vezes, sucedia.

DN—E no caso da saída dos «páras» de Tancos?

RN — O partido teve informação da movimentação dos «páras», ante destes terem saído.

DN — O «trabalho militar» do PCP constituía uma área de actuação privilegiada?

RN — A actividade e a atenção do PCP às Forças Armadas é uma orientação muito antiga. Seria de uma grande irresponsabilidade e negaria a natureza revolucionária do PCP se, numa revolução como a do 25 de Abril, não prestasse a maior das atenções aos militares.

DN— Quando, logo a seguir ao 25 de Abril, António Spínola não consegue um apoio claro dos militares do MFA, no final do plenário da Manutenção Militar (que precedeu a crise Palma Carlos) que análise fez o PCP?

RN — Considerou ser urgente a coordenadora do MFA se auto-institucionalizar e traduzir assim no plano institucional, o seu papel de verdadeiro autor do 25 de Abril.
Sabia-se que o «imparável» movimento popular antifascista, liderado pelo PCP não deixaria de influir muito o MFA, ou parte dele, no sentido da revolução.

O PCP e as eleições

DN — Houve debate Interno e divergências, no PC, sobre a realização de eleições para a Constituinte?

RN — A realização de eleições livres era um dos principais pontos do programa do PCP na clandestinidade — estávamos no fascismo, não no comunismo! Após o 25 de Abril, as eleições para a Constituinte era um objectivo a conquistar tanto mais importante quanto Spínola preferia um referendo que lhe conferisse poderes mais ou menos ditatoriais. Num encontro, em que participei, de uma delegação do PCP com elementos do MFA, suponho que em 1974, foi informalmente colocada a questão. Vasco Gonçalves que estava presente, respondeu que a data era um compromisso inalienável do MFA. Mais tarde, e em especial após o 11 de Março, surgiram dúvidas sobre a bondade de tal acto, a tão curto prazo. Mas foi assunto discutido à puridade.
No PCP, os resultados eleitorais das primeiras eleições livres, em 25 de Abril de 1975, eram aguardados ora com receio, porque comunismo e eleições eram coisas que nunca ligaram bem, ora com esperança. Neste caso, assente nos comícios sempre maiores do que os de qualquer outro partido, nas sondagens obtidas pelos camaradas em conversas de autocarro — ou, até, porque a gratidão do povo, de cuja representação julgávamos ter monopólio, não nos faltaria nesse momento.
As primeiras eleições, ao darem 12,5 por cento dos votos ao PCP e quase 38 por cento ao PS, revelaram um quadro de opções dos Portugueses completamente diferente do que era dado pelas mobilizações populares e foram um factor decisivo para a derrota a prazo do projecto do PCP.

2005/11/08

A gripe das aves




Como surpreende, melhor dizendo, maravilha, a diversidade do entendimento humano sobre a mesma realidade que a todos cerca. Não a existência de tal diversidade que a idade, seguindo-se à escola, a todos mostra. Mas a sua álacre manifestação em nossa presença.

Era para combinar um almoço mas a conversa resvalou para o pavor. Se acho que devemos tomar medidas desde já? mas que medidas? Pois... mas... o caso é que assim alguém da família vai morrer... de acordo com as estatísticas. Tentativas bem dirigidas para desviar. Então sempre é verdade que o Martinho já está mesmo separado da Sofia? E a Célia, a Célia! disse-me a Joana que vai mesmo abortar a Badajoz. Consegui. Consegui livrar-me da Teresa, do pânico, das aves, da gripe e sem dar fôlego, fingi que tinha acabado e pim na tecla vermelha.
Meia hora depois. Metropolitano. Linha azul. Sete e meia da tarde. Cada um consigo mesmo e aquelas duas, descuidadas ou sem cerimónia, a fazerem-se ouvir. Oh, oh, oh, então vou lá agora ligar a isso! Ora, ora, essa é boa! se se quisessem preocupar com epidemias preocupavam-se com a droga e com o álcool. Vê lá se falam em vacinas para isso! Mas... mas... Qual mas, oh oh, quais aves! quais gripe! vou lá agora acreditar nisso. Fizeram mas foi alguma vacina que não se vende e agora querem que a gente vá a correr comprá-la. Ná, ná, eu cá não, eu não...

Se isto é assim com as aves... com as aves... com as aves... que admiração uns serem pelo Soares e outros pelo Manel.

2005/11/01

O terramoto de Lisboa (3)

As Igrejas

"...ARRUINOU e destruiu o terramoto e incêndio a melhor parte da populosa cidade de Lisboa. O terreno destruído pelo fogo ocupou mais de uma légua de circunferência, pelo círculo que se descreve. Principiando da Igreja de São Paulo, decorreu por uma grande parte da marinha: desde esta igreja vem o círculo pelos Remolares, Corte-Real, Ribeira das Naus, Terreiro do Paço, Ribeira da Cidade, Cais de Santarém até ao Chafariz d’el-Rei; daqui sobe ...

Nesta circunferência destruiu o fogo inteiramente os bairros chamados da Ribeira, da Rua Nova e do Rossio, e grande parte dos bairros dos Remolares do Bairro Alto, do Limoeiro e de Alfama, que eram os mais ricos populosos dos doze em que então se dividia a cidade.

Nesta grande parte de Lisboa consumida pelo fogo foram compreendidas inteiramente a santa Igreja Patriarca e as freguesias da Basílica de Santa Maria (antiga catedral de Lisboa), de Santa Maria Madalena, de Nossa Senhora da Conceição, de São Julião, de Nossa Senhora dos Mártires, do Sacramento...

Neste recinto ficaram reduzidos a cinzas os sumptuosos conventos da Santíssima Trindade, de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de São Francisco, de Nossa Senhora do Rosário dos Irlandeses, do Espírito Santo, de Nossa Senhora da Boa-Hora, de Corpus Christi, de São Domingos e de Santo Elói, com as suas majestosas e bem ornadas igrejas...

...se queimou a sumptuosa Igreja de Santo António edificada na antiga casa, em que o mesmo santo nasceu, com a magnífica e bela casa que antes da divisão da cidade servia para as conferências do Senado da Câmara; e na mesma igreja muita e bem lavrada prata, e ricos ornamentos, de que se achava enriquecida. ... havendo o fogo na igreja sido tão violento que derreteu toda a prata, bronze e outros metais, que nela achou". [o relato prossegue com o registo de muitas dezenas de igrejas destruidas]

E os palácios

"...Os palácios queimados foram: o Paço Real da Ribeira que, sendo principiado pelo senhor rei D. Manuel e continuado sumptuosamente por Filipe II, se havia depois acres centado com dilatadas e formosíssimas galerias de soberba arquitectura, e ultimamente com a real Casa da Opera, obra admirável; o Palácio de Corte-Real (que já havia padecido o incêndio que fica dito no tomo XII, a fol. 64), com o tribunal da Casa do Infantado; os palácios dos duques de Bragança (que servia de Tesouro), de Lafões, de Aveiro, de Cadaval; dos marqueses de Valença, de Marialva, de Angeja, de Fronteira e de Cascais... [a lista continua com muitos mais palácios]

Padeceram a mesma desgraça os edifícios de Alfândega Real, Casa da India, Vedoria, Consulado, Contos do Reino, Sete Casas, Terreiro do Pão, Ribeira das Naus e armazém dela, Casa do Tesouro, ao Arco da Consolação...

e os tribunais do Desembargo do Paço, Junta dos Três Estados, Conselho da Fazenda, Conselho Ultramarino, Mesa da Consciência, Casa de Bragança, Contadoria-Geral de Guerra, Tenência, armazéns com as suas grandes secretarias, e as de Estado do Reino, Guerra e da Marinha, cujos tribunais estavam no recinto do Paço, nos quais se perderam cartórios numerosíssimos livros e papéis, com grande detrimento da fazenda real e da dos particulares... "

E as preciosidades

ENTRE as muitas preciosidades que o fogo consumiu, foi muito sensível aos eruditos a perda de muitas e numerosas livrarias. Tem o primeiro lugar a biblioteca real que era numerosíssima e selecta: o senhor rei D. João V a tinha aumentado com grande número de livros modernos, e todos os antigos que se descobriram pela Europa; e uma grande cópia de manuscritos, assim originais como cópias bem escritas, tudo efeitos da sua sabedoria e magnificência.
A do marquês de Louriçal enchia e ornava quatro grandes casas, e era selecta em livros raros e excelentes manuscritos. Tinha sido formada pelos sábios condes da Ericeira, e ultimamente aumentada pelo conde D. Francisco Xavier de Meneses, cuja erudição ainda hoje admira, não só Portugal, mas toda a Europa.
A biblioteca do Convento de São Domingos estava em duas grandes casas e tinha muitos livros raros e grande número de manuscritos, que para ela deixou o erudito beneficiado Francisco Leitão Ferreira. Foi obra do padre frei Manuel Guilherme, que a constituiu pública com assistência de dois bibliotecários e renda grande para o seu aumento.
Na Casa do Espírito Santo havia uma grande e selecta livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a maior colecção de livros que tratavam de Maria Santíssima obra do padre Domingos Pereira.
Ficaram também reduzidas a cinzas as excelentes e antigas livrarias dos conventos do Carmo, São Francisco, Trindade e Boa-Hora. Tiveram o mesmo sucesso todas as dos palácios que arderam, em que havia algumas muito estimáveis.
As particulares foram muitas, e entre estas era muito preciosa a do inquisidor José Silvério Lobo por numerosa e selecta. Em cinco casas de mercadores de livros franceses, espanhóis e italianos, e vinte e cinco lojas e casas de livreiros portugueses, se consumiram grandes livrarias...

[Extractos de "Memórias das Principais Providências"... de Amador Patrício de Lisboa, 1758]